O Desfastio de Mara Dyer escrita por Layla Magalhães


Capítulo 18
18




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/655626/chapter/18

NOAH

Hoje é um belo dia. Sem dúvida, o sol está brilhando para todas as pessoas de todos os mundos. Passarinhos cantam músicas felizes em todo lugar, flores se abrem e colorem todas as direções que você olhar. É lindo. É mágico.

E em questão de segundos se tornou assustador.

— Mara — respiro fundo, umedecendo os lábios —, eu sei que você tem tempo até as contrações ficarem verdadeiramente fortes, mas não é melhor irmos logo para o hospital?

Sem desviar-se da geladeira para me olhar e com as mãos ocupadas preparando um sanduíche, ela responde.

— Minha bolsa acabou de estourar. Você sabe melhor que eu que ainda tenho horas para a verdadeira ação começar. E, além do mais, não sairei sem comer.

Observo-a devorar seu desejo monótono dos últimos meses, sanduíche de salame com salada de alface e limão. Mara ainda acrescenta um pouco dos milhares de molhos de nossa dispensa.

— Eu sei que você quer esperar mais um pouco, mas já esperamos nove meses. Você pelo menos avisou o Doc?

— Aham — sua boca está cheia e ela lambe o resquício de catchup em seus dedos —, ele fora a primeira pessoa a ser avisada.

— Como assim? — pensei que ela tivesse dito primeiro à mim.

— Estava escovando os dentes enquanto folheava um livro no celular. Percebi que minha bolsa tinha estourado e passei um sms pro Clark, e em seguida te avisei — ela diz simplesmente.

Doutor — corrijo-a e prossigo —, como é que você está tão calma?

— Bem, não estou tão calma, só não estou... pirando.

— Dá na mesma.

Ela termina de mastigar antes de argumentar.

— Não dá. Esses nove meses que esperamos foram cheios de preparos. Informei-me o bastante para saber que só Deus sabe que horas me alimentarei novamente. Portanto, deixe-me comer em paz.

Suspiro, derrotado.

— Você pode, pelo menos, comer no caminho para o hospital?

— Claro — concorda ela, o que acho bem razoável —, só deixe-me preparar outro sanduíche.

Encaro-a em silêncio, desacreditado.

— O quê? — ela tenta entender — Você quer um?

— Não — dispenso o sanduba e o assunto, com pressa —, colocarei suas bolsas no carro.

Carrego as bolsas que foram arrumadas há algumas semanas para este momento. Em seu interior, sei que há roupas de Mara, assim como de Ani, além de alguns utensílios que elas podem precisar. Percebo também um peso extra na bolsa, e tenho certeza de que Mara adicionou mais de seus lanchinhos.

Ajusto a cadeirinha para bebês novamente, só para ter certeza de que está corretamente posicionada. Minhas mãos tremem levemente e sei que não deveria ficar assim, mas fico. Como médico, sei tudo o que pode dar errado num parto, desde as coisas mais simples até às mais catastróficas. O risco é grande. Grande demais. E qualquer chance sombria de perder qualquer uma das duas já assola meu peito.

— Ei, comilona compulsiva — puxo uma mecha de seu cabelo. Mara senta-se para pôr o chinelo mais feio que já vi na vida (mas que a deixa confortável) e ajudo-a a calçá-los.

— Acho que, no meio da compulsividade, perdi meus pés. Mal posso vê-los!

Ela balança os dedos de ambos os pés e sorri para mim, não lamentando em nada todo o peso a mais. Sua boca se abre para fazer algum comentário sarcástico e adorável, mas sua expressão se desconfigura com a dor. As primeiras pontadas, as primeiras contrações fortes.

Posto-me ao lado de Mara e assisto seu rosto ficar lívido e suas mãos apertarem a minha.

— Acho que é hora de ir — diz ela. Não dou chance para que ela pense duas vezes. Saco a última bolsa e apoio Mara em meu braço, ajudando-a em seu caminho até o suv preto.

Em todo o trajeto até o hospital, ela mantém uma respiração estável e tranquila, seus dedos até mesmo batucam a canção que se espalha pela caixa de som do carro.

— Você está nervoso? — não olho-a para confirmar minha suspeita, entretanto, tenho quase certeza de que ela está caçoando de mim.

— Eu não deveria?

— É você quem vai parir?

— Não.

— Então não — vislumbro seu sorriso de lado por uns instantes —, não deveria. Mas, Noah...

— Por favor — sussurro baixo, num pedido —, agora não é a hora para um mas.

Mara suspira.

— É sério, Noah, e precisa ser dito.

É a minha vez de suspirar.

— Será mais fácil se eu disser tudo de uma vez? — Mara parece estar tão ansiosa por essa conversa quanto eu estou, o que, somando nós dois juntos, não dá nada. Zero.

— Sim. — Não. De modo algum.

— Se algo acontecer hoje, Noah... se minha saúde ou de Ani estiver sob risco... — sua respiração sai entrecortada, e sinto que não é apenas pela dor — quero que você priorize a nossa filha. Quero que você a salve.

Fico em silêncio, sem encará-la, até parar em um farol vermelho. Respirando fundo, olho para ela. As lágrimas marejam os olhos de Mara.

— Não.

Ela me encara sem entender.

— Não salvarei Ani se algo acontecer. Não escolherei entre uma de vocês. Posso, algum dia, ter feito promessas que não cumpri, mas essa é uma da qual não me desfarei jamais. Trarei vocês duas à salvo para casa.

— Não há como você ter certeza.

— Eu tenho. Eu prometo.

Pegando a mão que segurava o câmbio, Mara a leva até a boca e beija meus dedos.

— Sendo assim, prometo fazer o melhor de mim.

Aperto suas mãos e escuto mais atentamente o coração de Ani. Está disparado, está firme, está pronto.

E sei que ela está nessa promessa conosco.

O procedimento de entrada no hospital é rápido, e logo estou na sala de cirurgia junto de Mara. O plano é que o parto seja normal, mas Doc preferiu ficar preparado para qualquer coisa.

Por falar em Doc, pergunto-me onde ele possa estar. Espero o que parecem horas e o bom doutor não dá sinal de vida. Ajeito novamente o travesseiro de Mara e fico ao lado da maca, segurando sua mão.

— Tem certeza de que quer o normal? — assim como ajeitá-la no travesseiro não fora a primeira vez, já perdi as contas de quantas vezes questionara-a sobre a natureza do parto.

Tenho, Noah — ela grunhe, se pela impaciência ou pela dor, não sei dizer.

— Posso pedir uma senhora anestesia para você, amor, ou qualquer outra coisa que você queira —

— Eu quero mesmo pedir uma coisa à você.

Dou um saltinho por dentro, não me sentindo mais tão inútil.

— O que seria? Farei tudo e qualquer coisa que você desejar.

— Silêncio, Noah. Eu quero silêncio.

Tento sufocar a voz maluca em minha mente que matraqueia várias perguntas, muitas das quais eu já tenho resposta e mesmo assim voltam a me atormentar.

A impotência me enlouquece. Ficar do lado de Mara sem poder ajudar com a dor faz-me estremecer de medo e inutilidade.

Sem contar que sinto-me mal por ter cooperado para fazer Ani e, agora, apenas assistir enquanto Mara, sozinha, faz todo o trabalho.

— Os Shaw — ouço Doc exclamar quando se aproxima —, como estão?

— Bem — Mara responde ao mesmo tempo em que digo — Mal.

Doc sorri e anota alguma coisa naquela papelada dele.

— Há divergências, portanto minha opinião de médico é de que está sim, tudo bem. Muito normal até, eu diria.

Faço uma careta e imito-o de mal gosto.

— Vamos ver sua dilatação, querida.

O estalo da luva sobre as mãos dele me dá arrepios. Já com as pernas erguidas, Mara apenas as abre mais, expandindo o acesso ao doutor.

— Bom — ouço-o dizer —, muito bom. Você está pronta. Nunca vi alguém ficar com dez dedos de dilatação tão rapidamente.

Solto um suspiro aliviado.

— Então podemos começar?

— Claro — Doc responde de um jeito entusiasmado, como se ele fizesse partos todos os dias e amasse isso. O que provavelmente é verdade.

O suor já escorre da testa de Mara e passo um algodão molhado por seu pescoço e pálpebras.

— Vamos ver do que essa pequenina é capaz. — O médico diz no iniciar de uma contração — Faça força, Mara.

E ela faz.

É assustadoramente bonito, o que não deixa de ser um inferno de assustador assustador.

 Mara aperta minha mão na dela e comprime os lábios, concentrada como um goleiro defendendo um pênalti.

Não sei quanto tempo levou, mas sei que não demorou muito. Ouço Doc dizer que mulheres como Mara nasceram para ser mães, pois tem uma facilidade incrível para parir.

O choro de Ani parece uma canção. Quero pegar Mara e sair dançando por aí. Doc deixa que eu corte o cordão umbilical de minha filha e quase me assusto com a coisinha descabelada e cheia de sangue que espera por mim.

Corto habilmente o cordão e Clark deixa que eu leve Ani até Mara. Ela é tão leve e pequena em meus braços. Seus bracinhos agitados parecem estar dançando uma música que só ela ouve, seus cabelos castanhos e levemente encaracolados cobrindo praticamente toda sua cabeça.

Mas o principal são os olhos.

Ela tem os meus olhos.

— Shhhh — nino-a quando ela ameaça ficar agitada e chorando —, olhe para nossa filha, Mara.

Mara penteia os cabelinhos finos de Ani com o polegar e deixa as lágrimas escorrerem por seu rosto.

— Eu sei — caçoo dela, apesar de estar tão emocionado quanto Mara —, bebês deveriam ser bonitos, certo?

— Cala a boca, Noah.

— Por falar em boca, Ani tem meus lábios.

Mara me encara como se eu fosse o homem mais ignorante do planeta. O seu olhar faz com que eu me sinta o homem mais ignorante do planeta.

— Ela está inchada ainda. É cedo pra dizer — Mara funga.

Desculpas. Você está jogando desculpas para cima de mim. Ani tem até meus olhos.

Ela pega a bebê nos braços e apoia-a em seu peito. Por um momento, ouço seus corações juntos, próximos e distantes, e sei que melodia nenhuma no mundo se assemelhará a essa.

— Você pode ter os olhos e os lábios do seu pai — Mara sussurra para Ani —, mas puxe coisas de mim também. Você precisará ter características redentoras.

— Características redentoras? — soo indignado porque estou indignado.

— Temos de levá-a ao berçário — uma enfermeira diz.

Não — eu e Mara fazemos um muxoxo.

— Logo vocês poderão levá-la para casa. — A enfermeira do mal pega Ani ainda dormindo e acena para gente, se afastando.

Mara bufa.

— Quem ela pensa que é para levar nossa filha assim?

— Não reclamem, crianças — Doc ri da nossa cara. Não sei como esse médico consegue achar graça de tudo o que fazemos e falamos. — Ela passará por uns exames de praxe e será liberada ainda hoje, provavelmente. E, por falar em alta, daqui umas duas horas você também estará pronta para ir, Mara.

Ela dá um gritinho de felicidade

— Mandarei alguém trazer um lanche para vocês.

Mara dá outro gritinho de felicidade.

Olho-a em silêncio e mal acredito que tudo correu bem e com tranquilidade.

Sento ao lado dela na cama e a observo.

Fico quase decepcionado. Nove meses de estresse e angústia para isso?

— Não foi fácil demais? — Pergunto a uma Mara suada e cansada esparramada na cama.

Ela me fuzila com o olhar.

— É sério. Mulheres fazem um drama tão grande sobre partos que quase esperei a trilha sonora de uma novela mexicana durante o procedimento.

Mara deve achar que quero morrer hoje, porque ela me olha como se quisesse me matar.

— Se você acha fácil expelir algo de carne e osso para fora de você por um buraquinho, então não posso fazer nada. Na próxima, por favor, tenha você a criança.

— Será que no fora rápido assim porque você desejou que fosse rápido? — Questiono-a.

Ela dá de ombros.

Conscientizo-me o suficiente para deixar de zombar dela, mas não o bastante para tirar o sorriso do rosto.

— E na próxima?

Ela não é forte o bastante para não responder meu sorisso com o dela.

— Sim. — Ela pega a minha mão e me beija os dedos —, na próxima.

— Não esqueçam que o útero dela precisa se recuperar antes de ter outra criança! — ouço alguma das enfermeiras dizer.

— Digo a elas que tenho o poder de curar pessoas? — sussurro para Mara.

— Não — onde seus lábios estavam outrora, seus dentes se posicionam, beliscando a ponta do meu indicador e arrepiando até onde chatos fazem residência nas pessoas —, vamos fazer mistério.

E assim fizemos.

Horas mais tarde, Doc vem até o quarto com Ani nos braços. Com uma expressão feliz e deslumbrada, ele nos diz que não há motivos para mantê-la mais tempo no hospital.

— Ani está perfeita — ele conclui.

Ani é perfeita, assim como um anjo deveria ser.

Com muita insistência, levo Mara em uma cadeira de rodas até nosso carro. Ani parece enfeitiçada por nossa voz, seus olhos e boca abertos, olhando para nós dois sem realmente ver-nos.

Deixamos-a deitada na cadeirinha, o mais confortável e seguro possível. Sigo Mara até o assento ao lado de Ani para ajudá-la, mas ela me dispensa com a mão. Folgo um pouco mais o cinto dela, prendendo-a bem.

— Fico pensando se terei a mesma sorte nas próximas vezes — suas palavras aquecem meu rosto enquanto termino de arrumá-la no lugar. Nós conversamos baixinho, sem querer incomodar nossa filha.

— Não sei se você terá a mesma sorte, amor — acaricio a maçã do rosto —, mas só há um jeito de descobrir.

Ela me sorri, sacando a linha de pensamento.

— E qual seria?

Beijo seus infinitamente doces mas nunca enjoativos lábios.

— Tentando de novo.

A mão dela me penteia os cabelos.

— Eu topo. Por tudo o que é sagrado, eu topo. Mas vamos esperar Ani ter uns dois anos, pelo menos. Vamos enlouquecer com duas crianças pequenas.

— Concordo.

— E continuarei a escrever — avisa-me —, nossa história está longe de acabar e preciso documentá-la.

Dou partida no carro, mas não saio com ele.

— Aceito isso com uma condição.

Seus olhos estão desconfiados. Sua sobrancelha se arqueia, mais desconfiada ainda.

— Devo me preocupar?

— Não mesmo — esnobo sua sugestão —, só quero escolher o nome do nosso próximo filho.

Ela não cede.

— Vamos lá, você me confiou a música do nosso casamento. Qual a diferença agora?

Mara morde o lábio. Pensando.

— Apenas prometa-me — ela sussurra —, prometa-me que não colocará Noah Júnior se tivermos um menino. E nem o nome da sua tataravó se for menina.

Dou de ombros.

— Prometo.

E sorrio.

Sorrio pra valer.

— Devo me arrepender agora ou mais tarde por topar isso?

— Você não deverá se arrepender.

— Devo sim.

— Não deve e não vai.

— Devo.

— Não deve.

— Noah...

Saio com o carro. Atravesso alguns quarteirões. Olho para Ani no retrovisor. Ao contrário de sua mãe, ela parece estar sorrindo.

— Ok, você deve.

Mara resmunga algo ofensivo.

— Eu te amo também.

Ela fecha os olhos e tampa o rosto com as mãos.

— Argh, Noah — sua voz sai abafada —, eu te amo. Eu te amo mais do que você imagina. É uma das coisas que faço mesmo quando quero te afogar na privada.

Lanço minha mão para trás, procurando a dela.

— É o que você deve fazer sempre que quiser me afogar na privada.

Ouço-a suspirar. Depois rir. Apertando minha mão, ela me presenteia com todo o seu amor.

— Sim, eu devo. E irei.

Sorrio para ela.

Continuo a sorrir enquanto olho para Ani.

E não lembro de ter tirado esse sorriso bobo do rosto desde então.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Falta só um pouco para terminarmos essa história. O próximo capítulo já será o penúltimo, e começo desde já a sentir saudade dessa fanfic, saudade de vocês.

Espero que tenha valido a pena para vocês, leitores, como valeu para mim.

Beijos.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Desfastio de Mara Dyer" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.