Uma moeda de três faces escrita por Leandro Paiva


Capítulo 1
PREFÁCIO – QUANTO CONFUSA PODE SER UMA HISTÓRIA




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Ele mal se barbeava, os olhos com olheiras visíveis mesmo que sem aproximação eram de causar espanto, o cheiro de roupa limpa era tão instigante quanto à forma que apanhava seu cigarro no bolso da camisa polo. Usava camisas que pareciam iguais todos os dias. A forma como segurava seu cigarro era tão cuidadosa como se uma fumaça não pudesse escapar entre os dedos sem causar a melhor das sensações no pulmão antes de se desfazer, não abria mão do vício jamais. A vida era apagada, misteriosa e silenciosa, pautada numa educação primorosa e incomum. O mau-humor rotineiro e inconstante traziam tons cômicos ao dia monótono de um aposentado servidor público entediado, que era observado com bastante apreço, embora sua vida ranzinza e solitária, por vizinhos curiosos. A chuva na varanda no dia vinte e dois de março de um ano qualquer transformava o cenário em algo ainda pior, um cenário macabro, de sentimento horripilante e de calor inexistente, o céu nublado trazia tons cinzentos a toda ação desenvolvida na terra, era como se a fertilidade não acontecesse mesmo se gotículas de chuva tocassem ao solo, em estado totalmente seco e inóspito. Relações sólidas mantinha apenas com operadores de telemarketing no qual ele fazia questão de dizer: “- Não consegue me deixar morrer feliz? Todo dia é necessário atormentar-me? Boa tarde.” (Desliga-se o aparelho celular que não acompanhou o crescimento tecnológico). Era de se espantar. Todas as frases que se referiam a alguém eram de mensagem sem afeto e despretensiosas, ao menos que fossem ameaças! As ameaças eram dirigidas com todo o ódio do coração, uma firmeza assustadora. Detestava o balanço que havia no quintal, faziam nesta data cinco anos que fora pela ultima vez por lá. Nem mesmo sabia ele se o jardineiro cuidava com zelo do espaço no quintal, por não ir até lá. Apenas ordenava que fosse mantido o máximo de originalidade e limpeza. Nenhuma folha seca era permitida caso caísse da árvore que tinha perto. Era uma preocupação banal, porque gastar de um funcionário que viveria a tratar de um local da casa na qual ninguém poderia ir? Porque cuidar de um espaço onde ninguém poderia se divertir no balanço das horas? Que inconstância essa vida, esse senhor, essas escolhas, quanta vida desperdiçada, presumia eu. Ele mal poderia se descrever em uma estrofe de um texto qualquer. Talvez nunca quisesse, afinal ele detestava pessoas cuidando da sua vidinha. Preferia amargurar momentos sozinhos ao invés de caminhar no parque ao ar puro. Limitava-se a tomar sol religiosamente antes das dez horas da manhã, horário em que o entregador de jornais, do outro lado da rua arremessava o jornal diário, a única forma – diria eu prazerosa – de entreter aquele velho com olhares confusos. Um documento público único na qual ele se entregava. Era nesses momentos de leitura sobre as desgraças do mundo – seu caderno preferido – que ele desenrolava toda uma história de rancor, ódio e frustração. A cada nota um cigarro novo, a cada trago um arrogante comentário e um desejo de perda. Perda do mundo quanto suas próprias lutas. Nunca vi ou verei viva uma pessoa com tanta negatividade em um só local. O sol parecia se esquivar da casa dele, ao passar pelo ipê florescido da vizinha o sol escondia seus raios luminosos para que não aquecesse a casa sombria daquela rua. Crianças? Elas amedrontadas não brincavam de bola por ali, por medo elas nem mesmo passavam na calçada daquele senhor. O número duzentos e quarenta e sete era o número do terror. Era estampado na caixa de correio tradicional de Albert Hanson. O homem mais tenebroso e intrínseco que já não conheci. Era como se um soneto milenar fosse traduzido em uma vila. A vila da esperança. Onde poucas casas pequenas e sem brilho traziam em seu currículo de existência momentos de loucura, insanidade, vida e paz. Quem saberá informar-nos o que poderia realmente existir em um local tão sombrio e ‘normal’? Um local onde a palavra contradição parecia ser pintada com tintas vivas de Picasso, caso ele pudesse a conhecer. Não, não teria eu uma definição para o devaneio tão assombroso que me causava recordar. Como se um sonho ruim acompanhasse minha vida toda noite. Lembrar daquele senhor a principio era como se minha energia fosse sugada, meu sorriso preso e meus pés congelados. Quanta amargura cabe num coração humano? Quanta tristeza? Quantos motivos? Albert sabia bem o que era vida. Afinal seus setenta e nove anos traduziam, em marcas fortes, uma existência diversificada. Albert não era um comum cidadão da vila, creio ele ter fundado aquele distrito. Físico abastado não lhe passava a imagem de fragilidade, pelo contrário, um jovem bastante saudável, se não fosse o cigarro, alguns traços cansados seriam evitados, com certeza. A vida de Albert daria um livro, não sei se um livro extenso, mas com certeza um livro que traria bastantes reflexões sobre o que ser o humano escolhe pra si enquanto a vida (ou o destino, dizem os incrédulos) providencia pra nós.


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