O Retorno dos Antigos escrita por João Victor Costa


Capítulo 3
Mundo de Cicatrizes




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Katy ficou tensa quando viu novamente o muro da mansão onde morava e a luz acesa dos cômodos. Parecia tão diferente, como se fosse uma lembrança distante.

— É aqui que você mora? - perguntou Chris.

— Sim.

Havia parado de chover e já estava escuro. Algumas pessoas que deveriam ser os vizinhos que Katy não conheciam chegavam em casa do trabalho, olhando para os dois como se fossem um casal de delinquentes que ameaçavam invadir a casa dos ricos da região. Katy olhou para trás e, de relance, viu uma silhueta parada na janela de outra mansão.

— Você tem que ir. - disse Katy. - Eu posso ser uma pessoa bastante perigosa.

Ela não falou aquilo com nenhum tom de sarcasmo e Chris percebeu.

— Tudo bem. Nos vemos amanhã então.

— Tchau. - se despediu ela.

O menino olhou para trás algumas vezes quando foi embora. Chris gostava bastante de Katy. Ela era especial.

Quando Chris se perdera de vista, Katy lançou um olhar para a janela que antes havia a silhueta de uma figura desconhecida. A luz agora estava apagada e não dava para ver nada lá.

Quando se virou novamente para sua casa, Bernard estava ali, parado bem na porta.

— Estávamos a esperando. Vamos, entre.

Katy entrou com o coração nervoso, com Bernard logo atrás dela. O mordomo não estava agindo como ela esperava, lhe dando broncas ou coisas do tipo. Talvez estivesse apenas deixando essa parte para os seus pais fazerem, afinal. Imaginou nervosamente o momento que os reencontraria e qual seria a reação deles depois do que ela havia feito.

Katy não havia pensado muito naquele estranho vizinho na janela, que já desconfiava que algo estava errado na casa dos Bruhmar. Ele havia visto uma estranha silhueta invisível na chuva pulando aqueles muros e agora, uma garota igualmente esquisita voltando para lá. Uma garota que ele jamais havia visto e se perguntou sobre os segredos daquela casa. Até então, o homem velho era a pessoa mais perto de Katy capaz de denunciá-la para a Cavalaria. E as coisas que viriam em seguida, não seriam nada boas.

Mas Katy era uma garota esperta. Ela sabia o risco que corria.

Por isso não podia simplesmente depender apenas de sua família para protegê-la, pensou, com um batom vermelho roubado preso na cintura pela nova calça.

As vezes tinha que depender de si mesma.

Blake viu a filha entrar na casa junto com Bernard e observou enquanto ela encarava brevemente ele e Lissandra, antes de seguir para o seu quarto.

— Katy. - chamou Blake. - Ela o ignorou e continuou subindo as escadas. - Katy!

Ela hesitou por um momento, mas continuou andando. Não era de desobedecer.

— Vou falar com ela. - e saiu, deixando Lissandra encarando seu próprio prato de comida. Havia acabado de perder a fome.

Katy entrou no quarto e se jogou na cama. Ela aguardou o momento em que o pai chegasse pela porta e começasse a falar um discurso sobre suas irresponsabilidades, mas não foi sobre isso que ele quis conversar.

— Como você saiu? - perguntou ele, sentando-se ao lado dela. - Bernard não te viu quando fugiu.

— Usei o mel para ficar invisível.

Ele lançou um sorriso de lado.

— Garota esperta.

Katy levantou uma sobrancelha.

— Você não está com raiva? - perguntou ela.

— Não. Apenas preocupado. - explicou ele. - e os outros também

— Por que vocês não me contaram? Não me contaram que também estavam correndo perigo por me proteger? E por que exatamente estão me protegendo?

Lissandra entrou no quarto

— Não podíamos deixar você se preocupar tanto com a gente. - disse ela - Você sempre foi nossa missão Katy. Você é... Especial.

Katy pensou a respeito daquilo, como se o mundo girasse ao redor dela.

— Quem sou eu?

Blake e Lissandra se entreolharam. Não esperavam essa pergunta, que por sinal, tinha uma resposta consideravelmente complexa.

— Você quer mesmo saber a verdade? - perguntou Blake.

Katy assentiu. Ela precisava ouvir.

Lissandra respirou fundo e começou a falar.

— Há um tempo, antes mesmo de você nascer, Minerva estava procurando por hospedeiros que poderiam estar escondidos. Refugiados que poderiam ser úteis à causa, dispostos a se unirem à resistência e nos ajudar a enfrentar a Cavalaria. Foi quando conhecemos, graças a um outro hospedeiro, uma velha senhora chamada Naomi, que morava sozinha em sua casa, na antiga capital da água. Essa mulher nada mais era que uma hospedeira das palavras. Assim como você, as palavras escritas dela tinham o poder de se tornarem reais, Katy. Assim como você ela podia usar a magia da Escrita Sólida.

“O problema é que fomos denunciados. Nunca soubemos como isso aconteceu exatamente e a Cavalaria chegou na casa de Naomi no final daquele mesmo dia. Eles marcaram um perímetro ao redor do local com símbolos de proteção contra os poderes de todos os doze deuses primordiais. Ficamos enfraquecidos. Sem poderes. Não havia como escaparmos.

Sabíamos o que iria acontecer. Naomi e o outro hospedeiro iriam ser pegos e aprisionados. Já Blake, eu e uma outra mulher, que também estava junto conosco, iríamos ser executados.

Entretanto, por algum motivo, os símbolos não tinham tanto efeito sobre o poder da escrita sólida de Naomi. Ela era muito mais forte. A Cavalaria atirou bombas de gás na casa. Estávamos começando a desmaiar quando a pobre senhora procurou desesperadamente algo para poder escrever, achando somente uma agulha. - Os olhos de Lissandra ficavam vermelhos de tristeza com as lembranças - Não houve tempo para salvar a todos nós. Apenas Blake e eu conseguimos sair de lá, enquanto o gás fazia efeito nos outros, que em poucos segundos desmaiaram no chão.”

Blake virou de costas para Katy e levantou a parte de trás da sua blusa, revelando as cicatrizes em sua pele. Katy estendeu a mão e tocou no revelo das linhas que formavam a palavra “escapar”. Lissandra também se virou e levantou a camiseta. A mesma palavra cravada na pele de suas costas.

— Nós conseguimos graças a ela. - disse Blake abaixando a blusa e se virando de novo para Katy. - Ela sacrificou os últimos segundos para conseguir nos salvar. E até hoje a palavra que ela escreveu nas nossas costas têm poder com aquela agulha. Por isso conseguimos não ter muitos problemas com a Cavalaria. Mesmo depois desse tempo todo, Naomi sempre nos ajudou a escapar.

Katy ficou em silêncio por longos segundos, imaginando as terríveis lembranças que os dois tinham e a marca delas em suas costas.

— O que aconteceu depois? - perguntou ela.

— Naomi pegou... - continuou Blake. Uma lágrima escorreu. Katy nunca havia visto seu pai chorar. - Pegou aquela mesma agulha e enfiou no próprio pescoço.

Katy pôs a mão na boca e engoliu em seco. Os olhos tão terrivelmente brilhantes quanto o do pai e da mãe, quando contavam a história.

— Até hoje nos lembramos de suas últimas palavras. - Lissandra suspirou pesadamente. - “Proteja-me na outra vida. Tenham esperança em um mundo melhor.”

— Até então não tivemos notícias do outro hospedeiro e da mulher que estava com a gente. - contou Lissandra, depois de se recompor. - Não estávamos perto quando aconteceu, mas pudemos ver pela televisão. A mulher fora executada na guilhotina, em praça pública. Milhares de pessoas assistindo, urrando feito loucos para que a mulher pagasse pelos seus crimes. E o homem estava lá, amarrado por uma camisa de força com o símbolo de proteção do deus do Destino, sendo detido por quatro homens enquanto se debatia e gritava pelo nome dela. Mary… Foi tão alto e forte. Seus sentimentos de raiva, ódio e desespero tomando a forma berros tinham a força capaz de abrir buracos vazios em almas, enquanto as outras pessoas urravam em aprovação àquela execução

— De acordo com nossa inteligência, o hospedeiro foi para uma prisão na capital Ahgus, antiga capital Lunari. - disse Blake. - Até então não tivemos muitas notícias dele e nem de outros hospedeiros que estariam presos por lá. Também sabíamos que a Cavalaria não iria matá-los. Ela não deixaria que eles simplesmente renascessem. Foi por isso que Naomi se matou. Ela queria o quanto antes que nascesse a próxima hospedeira da escrita, para que esta pudesse salvar o mundo.

Katy se sentiu extremamente triste, com ódio do mundo e das pessoas que viviam nele. Raiva de si mesma, por ter o dom que poderia tornar o tudo um lugar melhor e não estar fazendo isso. Ao mesmo tempo se sentiu culpada. Culpada por tudo o que acontecera, como se toda aquela história girasse em torno dela, o que de certa forma, era verdade.

— Depois de alguns anos, conhecemos Minerva e uma hospedeira estelar chamada Andrea, que sempre foi a nossa peça chave para encontrar e contatar hospedeiros que eram obrigados a se esconder. - explicou Lissandra. - Com a ajuda dela, fomos à procura de uma nova criança que teria nascido com o poder da escrita sólida e encontramos você, quando tinha feito três anos de idade. Seus pais tentaram lhe proteger. Tentaram fazer de tudo para que ninguém descobrisse a verdade, mas eles não conheciam sua magia e o poder dela. Sabiam que era apenas uma questão de tempo até que as palavras que você escrevia ganhassem vida e chamassem atenção o suficiente para que a Cavalaria a achasse.

Katy permaneceu perplexa enquanto ouvia tudo que os dois tinham a lhe dizer, com lágrimas escorrendo pelos vales de seu rosto. Aqueles dois também não eram seus verdadeiros pais. Era muita coisa, muita informação para um momento, e Katy tentava ao máximo ser forte.

— Seus pais entregaram você para nós. Para que pudéssemos protegê-la. - disse Blake.

— Você está dizendo que meus pais verdadeiros abandonaram a própria filha…

— ...para que ela não fosse achada. - continuou Blake. - Eles abriram mão de você porque a amavam. Essa é a verdade.

A garota ficou em silêncio durante longos segundos. Silêncio bastante desconfortável para os dois, que se viam obrigados a contar tudo, não para o bem de Katy, mas para o bem de todos. Eles criaram a garota desde que ela era pequena e realmente era como se fosse a filha deles.

— Onde eles estão agora? - perguntou Katy. - Quer dizer, ainda estão vivos?

— Acreditamos que sim, mas não sabemos a localização deles. - disse Lissandra. - Não temos notícias há um tempo.

Minutos atrás, a grande preocupação de Katy era sobre a bronca que iria receberia por ter fugido. Em vez disso, seus pais, que na verdade não eram seus pais, lhes contava sobre a história dela, o que era uma situação bem mais difícil.

Blake olhou para Lissandra.

— Acha que precisamos?

Lissandra franziu a testa.

— Não, não é necessário.

— O que não é necessário? - disse Katy, mais alto do que esperava. Era como se os dois estivessem falando e por um momento, ela não estivesse ali.

— Ah, tudo bem. Eu já volto.

Lissandra saiu do quarto e procurou por Bernard, para que este pegasse uma pasta específica em um dos diversos compartimentos secretos espalhados pela mansão.

— Vocês realmente irão mostrar isso para ela, senhora? - perguntou Bernard para Lissandra, preocupado com o estado da garota.

— Sim. Katy precisa saber da força de seu poder.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado do capítulo. Sei que pode ter sido bem forte. feelings :(
Qualquer coisa, enviar uma crítica, sugestão, discutir sobre a história, contar o que está achando, é só comentar e até o próximo capítulo.



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