E mais uma vez Luana chegava em seu apartamento depois de uma exaustiva manhã de trabalho. E para sua surpresa, encontrou Ellen na cozinha.

— Já chegou?

— Ah oi, Lua. Me deixaram voltar pra casa mais cedo hoje.

— Bem, milagres acontecem. – Ela disse comicamente. – E o que está fazendo?

— Preparando alguma coisa pra comer.

— Hum.

— O que foi?

— Nada. – Luana deixou a bolsa sobre o sofá, e sentou-se ao lado do balcão que separava a sala da cozinha. Escorou-se no mármore e passou a observar os movimentos da outra com atenção. 

— Por que está olhando pra mim desse jeito?

— Eu preciso falar com você.

— Até hoje tenho medo de frases como essa.

— Medo?

— Sim. Sempre que minha mãe falava assim comigo, lá vinha bomba.    

— Talvez seja isso mesmo.

— Tem a ver comigo?

— Tem mais a ver comigo.

— Então...?

— Quero que pare por um instante. Senta aqui.

— É tão sério assim? – Luana assentiu. Sem esperar mais, Ellen deixou tudo de lado e foi até o outro lado do balcão, sentando-se perto dela.

— Sabe, Ellen, hoje mesmo eu estava numa reunião com o pessoal do trabalho, sobre um projeto novo.

— Que projeto?

— É um projeto que surgiu há alguns meses, e tem sido debatido e organizado desde então. Ele pretende levar profissionais qualificados em diversas áreas até a Bélgica, pra trabalharem em orfanatos e hospitais de lá. A viagem dura três anos e vai ser daqui a cerca um mês.

— E você...?

— Fui uma das selecionadas.

— Caramba, Lua! Bélgica! Que demais! – Ellen abriu um largo sorriso no rosto. – Então você vai mesmo?

— Sim, eu vou. – Luana retribuiu com um sorriso fechado.

— Isso é muita responsabilidade. Espero que não tenha decidido espontaneamente, e que tenha pensado bem antes de tomar qualquer decisão.

— Sim, há semanas penso nisso e achei melhor contar a você quando eu tivesse a certeza do que queria. Durante esse tempo tive muitos motivos pra ir e muitos pra ficar. Embora a distância, o tempo e a saudades sejam muitos, eu vou conhecer um lugar novo, pessoas novas, vou trabalhar num projeto incrível e receber em Euros, mais que o dobro do que ganho hoje. Vai ser como um recomeço.

— Você não sabe o orgulho que sinto de você agora! Me dá um abraço, cabelinho de fogo! – Ellen levantou-se de imediato, levando a outra consigo e dando-lhe um de seus abraços mais apertados.

— Só tem mais uma coisinha que você precisa saber.

— O que? 

— Eu vi a lista de todos os selecionados de São Paulo, e o Lucas está incluso.

— O Lucas o que?! O Lucas vai?

— Ao que tudo indica, sim. Até já falei com ele sobre isso.

— Lua...

— Ellen, você sabe que a gente está voltando a se falar, e que diferente do que eu pensava, nossa relação pode muito bem voltar a ser como antes.

— Mas agora que o caminho está livre, ele vai querer se aproveitar de ti. Sei bem como o Lucas é. Não desiste de mão beijada. E tenho até receio que a situação de tempos atrás se repita, e que ele volte com aquela obcessão maluca por você. 

— Eu sei me cuidar, e se depender de mim, isso não vai voltar a acontecer. A questão é que o cara fala quatro línguas, entre elas o francês e o alemão, que são os idiomas oficiais da Bélgica. As possibilidades dele ser chamado não eram poucas.

— Tudo bem. – Ellen disse mesmo com receio. – Ele tem talento, tenho que admitir. Mas agora, temos que comemorar!

— Você é incrível, Ellen. Teu apoio é indispensável em tudo que eu faço, e isso há anos, desde os tempos do colégio.

— Pensei que você não gostasse de momentos melosos.

— E como queria que eu agradecesse?

— Ah sei lá. Algo do tipo “Valeu, sua vaca” já estava de bom tamanho. – Luana riu.

— Tantas pessoas no mundo pra fazer amizade e eu fui me juntar logo a você.

— Eu sou demais. – Luana riu ainda mais com seu jeito de gesticular. – Agora anda logo! Temos que abrir um champagne ou fazer qualquer tipo de celebração à altura! – Definitivamente, Ellen sabia fazer os feitos bons se tornarem ainda melhores, fosse pela alegria contagiante ou por seu jeito cômico que vez ou outra marcava presença.

Aquela viagem prevista mudaria muitos fatos. Deveras, mudaria tudo. Porém Luana estava disposta a passar pelo que fosse preciso, pois como ela mesma disse, seria como um novo começo.  

                                       ...

Do outro lado da cidade, Daniel estava esparramado em seu sofá, batendo um dos pés contra o chão no ritmo da música que tocava em um programa de TV. Ele não sabia ao certo de que música se tratava, porém era contagiante. Tudo estava um tédio. Até mesmo no show de calouros que assistia, o participante para quem torcia havia sido eliminado. Pegou então o celular, na possível chance de enganar a monotonia.

Suas redes sociais, ele checava uma a uma, e inevitavelmente ousou em verificar a de uma certa ruiva. Bem como na vida real, na web ela não demonstrara quaisquer vestígios de saudades, lembranças, pesar ou mágoa. Muito pelo contrário, ela lhe parecia totalmente fria quanto a isso. Aquilo lhe doía. Achar que ele não lhe fazia falta e que a quebra entre ambos não fora de sua importância, o trazia uma imensa melancolia.

Se as circunstancias de agora já lhe causavam tormento, ele mal podia esperar pelas que ainda estavam por vir.