Reinos de Neve e Areia escrita por Gerome Séchan


Capítulo 4
O Baile [Parte 1]


Notas iniciais do capítulo

Agradecimentos a Larisol, que vem acompanhando e comentando a história! ♥
[Capítulo bem ao estilo Guerra dos Tronos]
Elsa é a estrela da noite no baile real, que celebra os cem anos da independência de Arendelle. As horas passam e a rainha se vê conflitada entre dois destinos: um casamento de conveniência ou esperar pelo verdadeiro amor?
O que ela não espera é que o destino talvez lhe traga as respostas de que precisa sob a figura de um misterioso príncipe a quem sua irmã faz questão de lhe introduzir.
Enquanto isso, um certo guardião aprende que o mundo está sob maior perigo do que ele imaginava. E que a causa talvez seja a misteriosa princesa de seus sonhos.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/653346/chapter/4

Jack...Jack, você está me ouvindo? Jack...

Não adianta. Ele não acorda de jeito nenhum.

O que há de errado com ele?

As vozes vinham de um lugar distante, chamando seu nome. Vozes familiares, que evocavam as feições de três guardiões que ele conhecia muito bem.

Jack fez um esforço para abrir os olhos e ficar acordado. Ele reconheceu um coelho e uma fada debruçados sobre seu rosto. Mais atrás, um homem de barba longa e braços cruzados, contendo as tatuagens Naughty e Nice, lhe observava com igual preocupação.

Bunnymund, Toothiana e Nicholas St North respiraram aliviados ao ver que Jack Frost não estava morto. Bunny lhe ajudou a se sentar, verificando se ele continha algum machucado.

– Você ficou desmaiado por quatro horas, Jack! Mas o que foi que aconteceu?

– Eu não sei. Não sei direito, Grumpy. Minha cabeça ainda dói. – Jack disse, chamando o amigo pelo apelido favorito – Me dê um segundo.

Os guardiões trocaram um olhar significativo. Jack então começou a narrar como foi se encontrar com Sandy em Ontario... e algo aconteceu.

– Jack, nós estamos tentando falar com Sandy desde ontem à noite. – Nicholas exclamou - Ninguém sabe onde ele está. Daí você aparece na minha fábrica cercado de areia dourada. O que aconteceu?

Jack sentiu uma pontada de insegurança. Ele se lembrava de ter ficado inconsciente enquanto ele e Sandy fugiam de uma tempestade negra. O guardião supôs que seu amigo havia escapado do perigo com ele. Se Sandy não havia aparecido até agora, então...

Bunny o interrompeu.

– Espere. Você e Sandy foram apanhados por uma dessas tempestades?

– Tempestades, no plural? Explique isso, Bunny. – Jack pediu.

– É melhor se nós mostrarmos a você. – ele sugeriu.

.

...

.

Os guardiões estavam reunidos em frente ao grande globo terrestre que adornava o escritório. A maior parte dos seis continentes estava entremeada de nuvens negras. Olhando mais de perto, Jack enxergou redemoinhos se formando nos litorais e tornados no interior dos continentes, rodopiando em um movimento maligno.

– Tem mais de uma tempestade? –ele indagou, assustado.

Nicholas fez que sim com a cabeça. E apontou para a trajetória das tempestades, que avançavam sem parar em direção às capitais dos principais países do mundo.

– Isso é muito pior do que Sandy deu a entender. – Jack murmurou.

Nicholas pediu que ele explicasse ao que ele se referia e Jack contou tudo sobre seu encontro com o falecido guardião. Os guardiões escutaram seu relato sem interromper. Ele não levou mais do que vinte minutos para narrar tudo que Sandy havia lhe contado naquela caverna e de sua fuga daquela estranha tempestade.

Um silêncio se abateu sobre o escritório. Ninguém sabia direito o que dizer.

– Então Pitch está de volta. – Nicholas comentou.

– Nós nunca o derrotamos, velho. Ele só voltou a se esconder no subterrâneo esse tempo todo. – Bunnymund observou.

– Que tipo de criatura é esse demônio do medo? – Toothiana murmurou, temerosa.

– O que quer que seja, Pitch parece ter... se alimentado dele. – Jack disse, hesitando de desgosto.

– Eu nem quero pensar em como ele fez isso. – Bunny comentou.

– Nem eu. – Jack disse.

Nicholas cruzou os braços, fitando as tempestades com preocupação.

– Se ao menos Sandy estivesse aqui, nós teríamos como nos preparar melhor contra essa crise.

Jack perguntou se realmente não havia nada que eles pudessem fazer. Os guardiões tinham seus poderes. Eles não serviam de nada numa hora dessas?

– A não ser que você saiba criar uma areia dourada mais poderosa que a de Sandy, estamos de braços cruzados. – Bunnymund respondeu.

– Bom, eu posso criar correntes frias! Deve impedir essa tempestade de avançar.

Nicholas avisou que Jack corria um enorme risco se tentasse impedir as tempestades sozinho. Se nem Sandy, que era bem poderoso, podia impedi-las, imagine ele.

– Além disso, as tempestades são feitas de neve negra, uma neve mágica sobre a qual entendemos muito pouco. – Bunny acrescentou.

A expressão neve mágica chamou sua atenção.

– Como assim? Explica isso direito, Bunny.

Bunnymund disse que voltava de sua visita a Austrália quando emergiu de um dos túneis subterrâneos que usava para viajar e assistiu em primeira mão a devastação causada pela passagem de uma das tempestades.

A destruição causada pelos tornados, trovões e a chuva de granizo arruinaram inúmeras casas e prédios. Os carros e demais veículos na rua foram destroçados. Sinais foram envergados, cabeamentos de telefonia e eletricidade, completamente arrebentados. Pessoas morreram atingidas por objetos voadores, lançados pelos tornados. Outras morreram soterradas pelo entulho que desabava após uma construção ser atingida pela força dos raios e dos ventos.

Mas o mais assustador foi descobrir o que a neve negra fazia às pessoas.

– Todos os habitantes de Nashville estavam deitados no meio da rua, inconscientes. Dentro das lojas, a mesma coisa. As pessoas simplesmente desmaiaram no meio do trabalho. Como se arrebatadas por um sono muito forte, do qual era impossível despertar. Eu tentei de tudo para acordar alguns dos sobreviventes e saber o que tinha acontecido – eu não sabia que a culpa era da tempestade até procurar North -, mas nada do que eu fazia funcionava. –ele concluiu.

Jack foi tomado de uma sensação nauseante ao ouvir aquele relato, como se alguma verdade terrível se escondesse nas palavras de Bunnymund. O guardião se pegou pensando no sonho com aquela princesa e seu estranho dom de manipular a neve. Aquilo não poderia ser apenas coincidência...poderia?

Nicholas bufou, coçando a careca. A maioria das cidades devia estar experimentando o que Bunny descreveu naquele momento. Ele encarava o globo terrestre com ar aflito quando reparou numa pequena parte completamente limpa rodeada de um mar de tempestades.

– Ei. Que região é essa?

Todos se aproximaram do globo, fitando o ponto no continente norte, apontado pelo seu indicador gordo. Um pouco da areia negra entrou sem querer no focinho de Bunny e ele espirrou, ao que os outros responderam “saúde” em coro.

– Eu reconheço esse lugar. É o reino de Arendelle. – disse Toothiana.

– Como sabe disso? – ele questionou.

A fada narrou sua viagem até Arendelle há muitos anos, quando teve sua identidade descoberta por uma menina de tranças chamada Anna, que lhe implorou por ajuda para poder falar com a irmã.

– Pensei que as crianças não pudessem te ver. Não é esse o propósito de ser um guardião, aliás? Fazer o bem e proteger os pequenos sem nunca ser visto?

Toothiana se desculpou, dizendo que a menina era esperta, além de muito falante. Anna elogiava a irmã, dizendo que ela era divertida e carinhosa, que ela fazia coisas incríveis, que era muito talentosa, mas que as duas haviam se afastado por alguma razão. Ela implorou tanto, mas tanto que a fada se comprometeu a ajudá-la. Mas no fim, sua ajuda não adiantou muito.

– Por quê? O que tinha de errado com ela e a irmã? Uma delas era adotada ou o quê? – Bunny questionou.

– Não. Ela me contou que houve um acidente e que Elsa vivia agora trancada em seu quarto, proibida de ter contato com Anna.

O sangue de Jack congelou. A história se aproximava demais do que a garota em seus sonhos lhe confessara.

– Mas que família ruim. – Bunny comentou horrorizado, coçando a parte de trás da orelha com a pata.

Elsa... – o garoto repetiu em voz baixa.

O coração de Jack pulsava agitado, pensando nas implicações de tudo que havia escutado. Um sonho com uma princesa de um lugar frio, ao norte ou ao sul, capaz de manipular a neve...uma neve mágica que avançava pelo mundo...e uma princesa de Arendelle que possuía uma irmã e viveu a infância trancafiada no quarto...

Não podia ser apenas coincidência. Mas aquela mulher, tão apegada à irmã, tão bem intencionada, ser capaz de cometer um ato desses? Por quê? Seria alguma forma de vingança contra sua família, contra o mundo? Seria a mulher que lhe beijou de um jeito tão espontâneo a mesma pessoa responsável por matar milhões sem nenhum remorso?

Um pensamento sombrio lhe sobreveio. E se ela soubesse da existência dos guardiões e houvesse fabricado aquele sonho para confundi-lo de propósito? Por acaso não fora essa a tática usada por Pitch contra Jack no passado? Se Elsa e Pitch estivessem trabalhando juntos, então a explicação faria todo o sentido.

Qualquer que fosse a verdade, Jack precisava descobrir. Ele precisava encarar aquela mulher e ter certeza de que ela não tinha nada a ver com essa situação.

O guardião do inverno fitou o globo uma última vez, gravando na memória a localização de Arendelle e desapareceu pela janela. Os demais somente se deram conta de seu sumiço quando não podiam mais ignorar uma corrente de ar glacial que penetrou no escritório e espalhou os papéis na escrivaninha de North por todo canto.

.

...

.

Com os esforços redobrados do exército de Arendelle, a maior parte da neve nas estradas havia sido removida e carruagens de todas as regiões trafegavam pelas vias. Soldados patrulhavam o caminho, garantindo que o tráfego ficasse livre para os veículos que transportavam toda a aristocracia do norte.

O castelo real tinha sido completamente redecorado. Tapeçarias contendo os brasões da aristocracia do continente norte foram hasteadas pelo saguão principal, em homenagem aos convidados. As velhas estátuas e armaduras nos corredores foram polidas e pareciam novas. As pinturas dos artistas mais renomados foram realocadas em lugares de destaque.

Cortinas velhas foram trocadas, quartos foram arrumados com lençóis e móveis novos, um extenso trabalho que, aos olhos da população, indicava que a rainha gastava dinheiro com bailes supérfluos.

Se ao menos rumores de uma aliança com um herdeiro de uma família bem posicionada se alastrassem pelos ouvidos de toda Arendelle antes do fim do baile, então Elsa talvez teria uma chance de adiar as preocupações de seus súditos até encontrar uma solução permanente.

.

...

.

Anna se entretinha com a leitura de um dos muitos livros da biblioteca pessoal da irmã enquanto a aguardava terminar de se arrumar para o baile. O título da obra era A Bela Adormecida.

– Ela acordou com um beijo? Como assim, a madrasta colocou um feitiço poderoso nela! Como que um beijo vai acordar alguém se nem a magia das fadas conseguiu? Eu esperava mais desse final! Sinceramente, viu...

– Você já está muito velha para continuar lendo contos de fada, Anna. – Elsa disse de dentro do provador.

– Eu não falo nada dos seus romances, Elsa. Para de implicância!

A mais velha riu da resposta da caçula.

Anna se virou para a pequena bola de pelos brancos que repousava em seu ombro com um olhar chateado. A bola em questão a encarou de volta com seus grandes olhos azuis e sacudiu o corpo para os lados, dando a entender que deixasse a irmã para lá. Anna voltou a sorrir e esfregou os pelos na parte de cima de seu corpo em sinal de afeto.

O animalzinho em questão se chamava Pétit e era uma criaturinha exótica que Anna descobriu durante uma excursão que fez com Kristoff verão passado. Eles a encontraram em uma caverna, após caçar um urso polar que se acreditava ter migrado do derretimento das calotas polares. Segundo moradores de um vilarejo, o urso foi avistado nas proximidades e teria feito sua moradia em uma das muitas cavernas na cordilheira que jazia em uma das fronteiras de Arendelle.

Acontece que o urso em questão estava fraco e mal nutrido. E quando Anna e Kristoff foram encurralados pela criatura e estavam prestes a virar almoço, o urso diminuiu de tamanho até virar uma inofensiva bolinha branca, desmaiando poucos minutos depois.

Sempre muito generosa, Anna deu sua comida ao animalzinho e cuidou dele durante todo o caminho de volta à capital. Após trazê-lo em segurança ao castelo, Kristoff a reprimiu por querer adotar o bichinho.

– Ficou doida? Nós não sabemos do que essa coisa é capaz! Não venha fazer essa careta de coitadinho para mim! Você se transformou em um urso! –ele exclamou, apontando o dedo em riste para a criatura.

– Para com isso, Kristoff! Não tá vendo que está assustando ele? –Anna respondeu, trazendo o animalzinho para mais perto do colo, que ronronou de prazer.

Anna acabou implorando à irmã que a defendesse e a Elsa não restou senão ceder às vontades da irmã. Kristoff marchou para fora do castelo de cara fechada enquanto Anna pulou em cima de Elsa e a agarrou em um abraço apertado, quase esmagando a criaturinha entre as duas.

– Anna, ainda está aí? – exclamou Elsa, espreitando de uma fresta.

– Estou. Anda, deixa eu ver como ficou! – ela disse, saltando da cadeira.

A jovem mulher deixou o provador e caminhou a passos elegantes para o centro do quarto.

Elsa trajava um vestido de gala inigualável a qualquer um do reino. Ele começava em um tom azul claro no decote decorado por plumas brancas de cisne. O decote era um tomara que caia em forma de coração, expondo seu colo e a curvatura dos seios. O colar que sua mãe lhe dera repousava no centro, um floco de neve tão polido que seu brilho chegava a doer a vista, tão frio quanto a luz das estrelas do norte.

Sua cintura fina era adornada por um corpete ricamente adornado com joias prateadas, tão pequenas que pareciam grãos produzidos de um diamante pulverizado. O corpete era preso por uma tira prateada nas costas, com uma opala decorando a fivela. E na parte dos quadris, as camadas do vestido compunham um dégradé de azul, indo do azul celeste ao azul marinho. Nas bordas, finos fios de prata brilhante foram bordados, fazendo o vestido cintilar contra a luz.

Elsa deu uma volta, rodopiando para deixar Anna apreciar seu visual. Ela levava as mãos ao rosto, boquiaberta, admirando a transformação. Anna nunca vira a irmã tão elegante na vida.

– Elsa! Você está...você...ai, você está tão linda!

Anna foi até a irmã e segurou suas mãos, admirando como o vestido lhe caía bem.

– Nenhum dos príncipes vai resistir lhe fazer a proposta. – ela insinuou com uma piscadela.

Uma pontada de insegurança lhe incomodou, mas Elsa fez o máximo para não demonstrar.

O relógio de corda badalava a nona hora da noite. As irmãs caminharam pelo hall que antecedia o salão principal. Os guardas abriram os portões e por eles caminharam primeiro Elsa, depois Anna, que apertou sua mão uma última vez, emprestando-lhe confiança.

Anna se afastou indo conversar com um grupo de velhos conhecidos, deixando a irmã ocupar o lugar de destaque. Naquela noite, Elsa é quem seria a princesa do baile.

.

...

.

Após a introdução dos membros da corte, uma cerimônia tradicionalmente entediante e demorada, Elsa havia sido bombardeada com as perguntas mais constrangedoras sobre seu estranho sumiço. Nas rodas de conversa, cada barão, duque e marquês que ela cumprimentava não resistia tomar satisfações sobre o espetáculo que tinha sido o baile anterior. A rainha havia estranhado que toda a aristocracia tivesse feito questão de comparecer ao baile da independência, uma comemoração tradicional, mas irrelevante do ponto de vista político. Agora tudo fazia sentido.

‘Essas pessoas vieram satisfazer sua curiosidade sobre os rumores de que eu teria poderes de verdade, e que meu sumiço não foi uma encenação para que minha irmã tomasse o poder.’

Elsa girou o rosto na direção de Anna e a irmã lhe deu um aceno carinhoso. Anna era pura e inocente. Ela nem desconfiava das manobras que algumas das famílias a quem ela chamava de aliadas jogariam as irmãs uma contra a outra pela chance de colocar no trono uma herdeira favorável aos seus interesses.

Três horas haviam se passado e ela havia feito o possível para ignorar os olhares furtivos e maldosos que a acompanhavam onde quer que ela fosse. A rainha trocava minúcias sem importância com o príncipe de Nordecllife e a viscondessa de Montaignon. O servo já trazia sua terceira taça de champagne quando ela recusou a bebida e pediu licença, deixando o salão tão rápido quanto o protocolo permitia e quanto seus saltos podiam conduzi-la.

.

...

.

Elsa havia se refugiado no segundo corredor da ala norte, em um quarto inacessível aos convidados. Chegara um momento no baile em que sua cabeça girava com o monte de nobres demandando sua atenção em tempo integral. Nas raras ocasiões em que era organizada uma festa, ela se limitava a ser uma figura distante. Elsa de Arendelle, a rainha glacial era seu apelido desde a cerimônia de sucessão ao trono. O apelido era merecido. As pessoas a comparavam com sua irmã, com seu jeito alegre e efusivo e viam o óbvio contraste entre o estilo das duas. Elsa gostava de pensar em Anna como sendo a relações públicas da família real, enquanto ela era o cérebro por trás das decisões políticas.

Agora que era esperado de Elsa encontrar um pretendente adequado, suas posições estavam invertidas.

‘Eu não tenho o charme de Anna ou sua doçura. Sou a mais velha, responsável por ela e por todas as responsabilidades da família. Se Anna comete um erro, todos estão prontos a perdoar. Mas se sou eu, então o erro não é de Elsa, mas da rainha de Arendelle e do principal reino do norte.’

Como fazer a escolha certa? Como equilibrar o que ela desejava encontrar em um companheiro com seus deveres como rainha? Como satisfazer o que todos esperavam dela e ainda assim garantir que seus dias futuros seriam permeados de felicidade, como foi o casamento de seus pais?

Elsa não era ingênua. Ela conhecia o que se passava na cabeça de cada um dos príncipes que conversavam no salão. Os herdeiros das principais Casas do norte a viam como nada mais do que uma oportunidade de melhorar sua posição no jogo político. E era esperado de Elsa que pensasse da mesma forma. No jogo político, não havia espaço para sentimentalismo. Sua escolha definiria se sua família sobreviveria à tempestade que estava por vir ou se sucumbiria às tramoias que eram planejadas a portas fechadas.

Talvez ela estivesse sendo exigente demais consigo mesma. Talvez sua falta de experiência com um homem a fizesse considerá-los uma ameaça. A bem da verdade, seu temor podia se resumir a uma única razão: a de que nenhum de seus pretendentes era remotamente metade do homem que seu pai fora em vida.

Enquanto se abraçava no escuro, Elsa se pegou pensando no passado e nas poucas e preciosas memórias da vida em família. Na escrivaninha ao lado repousava uma foto de seus parentes, com a filha ainda criança no meio. Sua mãe estava grávida de Anna. Elsa apanhou a foto e sua mente se voltou para as lembranças da primeira infância, vivida em um casamento amoroso.

– Não posso fazer isso. Meus pais se casaram por amor. Minha mãe adiou sua escolha pelo tempo que foi necessário até fazer a escolha certa. Não posso apressar as coisas, não importa o que esteja em jogo!

Ninguém está forçando você a fazer isso, sabe... –disse uma voz dentro de sua cabeça.

Não quer dizer que as pessoas não tenham expectativas a meu respeito. Toda Arendelle vai me cobrar um casamento cedo ou tarde, agora que atingi a maioridade. –respondeu outra voz, soando rancorosa.

E daí? Sua mãe só se casou aos vinte e cinco anos. Você só tem dezoito! –a voz retrucou, firme.

Mamãe teve o apoio dos meus avós e mais seus tios, que a protegeram até encontrarem um candidato ideal. Eu não tenho esse privilégio. – a segunda voz respondeu, cheia de ressentimento. Mas as dúvidas não a deixavam em paz.

Sua sobrevivência vale o sacrifício da sua felicidade?– seu coração voltou a perturbá-la.

Não é apenas pela minha sobrevivência que eu luto. É também pela de Anna e pela preservação do seu estilo de vida. Se os inimigos da minha família tiverem sucesso, eu e Anna enfrentaremos pior do que o exílio. Nenhum membro da aristocracia voltaria a abrir portas para nós se soubesse que os rumores são verdadeiros. Que tipo de irmã eu seria se jogasse tudo fora em nome de um sentimento egoísta? – respondeu sua consciência.

Em nome de encontrar o verdadeiro amor? Acha que essa é uma busca egoísta de verdade?

– Me deixe em paz, droga! – Elsa exclamou na escuridão do quarto, sentindo vergonha ao ver que falava sozinha.

Ela sentia o peito pesar com alguma angústia indefinida e pousou a foto de volta onde ela pertencia. Sua vida adulta estava apenas começando. E logo de cara, tudo parecia tão difícil... Se ao menos um candidato digno, um homem sério e honrado como seu pai, que lhe inspirasse confiança, se destacasse dentre seus pretendentes...

De repente, ela se pegou pensando no misterioso garoto que ela conheceu em sonhos. E em como ela não sentira nenhuma vergonha de agir por impulso. Em seus sonhos, ninguém poderia recriminá-la. Ela era livre para agir segundo os ditames de seu coração.

– Você não perde tempo, mesmo. E eu nem perguntei seu nome ainda...

A lembrança do beijo agiu como um tranquilizante para uma noite tensa. Elsa jamais havia beijado alguém antes na vida. Mas não hesitou em unir seus lábios sem nem saber seu nome ou de onde vinha.

Ele havia aparecido de repente, sem anunciar, como a primeira geada de inverno. Após trocarem não mais que duas palavras, Elsa se deu conta de que ele já vinha lhe observando há algum tempo. Assim como ela, ele era senhor do frio e do gelo. Ele também sabia o que era ter uma irmã para proteger, e o que era ser assombrado pela memória de ter colocado em risco um ente querido.

Mas nada disso importava. No fim, o que Elsa havia visto de especial naquele garoto era apenas uma coisa: ele era tão especial quanto ela, tão único, tão diferente das pessoas comuns. Se alguém nesse mundo sabia o que era estar na pele dela, sofrer tudo que ela passou e ter de se reerguer a cada dia, como se nada tivesse acontecido, era o garoto de cabelos brancos.

Mas ele era só um sonho...

Quem sabe se eu chamá-lo em pensamento, ele não aparece na minha janela?

Elsa fechou os olhos e se permitiu ser apenas uma moça sonhadora por alguns instantes, desejando reencontrar um antigo namorado. Ninguém saberia. Ninguém precisava saber.

Seria engraçado eu aparecer com ele na corte. Imagine a reação dos convidados depois de eu anunciar que havia escolhido aquele garoto de roupas esquisitas e descalço para se casar comigo!

E ao pensar no prospecto do casamento, sua alegria inocente foi substituída por tristeza. Pois Elsa sabia agora que nenhum marido no mundo seria compreensivo a ponto de aceitar a existência de seus poderes. Não importa quantas juras de amor seu futuro esposo fizesse ou o quanto a convivência de anos de casado o fizesse se afeiçoar a ela; em seu íntimo, a esposa seria e nunca deixaria de ser aquilo que toda Arendelle pensava, mas não ousava dizer: uma bruxa.

.

...

.

Dentre os convidados, um estava visivelmente nervoso, movendo a cabeça pelo mar de rostos à procura de uma pessoa em especial. Ele havia chegado com quase três horas de atraso. A culpa não era sua; a carruagem havia tido um problema e o conserto demorou a aparecer.

O príncipe Demétrius dirigiu seu olhar ao trono e seus arredores, esperando encontrar a rainha, mas ela havia desaparecido. Após ver que seus esforços seriam em vão, ele aproveitou que o séquito de damas deixou Anna por um momento e se aproximou da princesa, perguntando em voz baixa:

– Anna, onde está sua irmã?

– Ora, ela está bem...ali...

A princesa girava o rosto pelo salão, mas não havia nenhum sinal de Elsa. Ela murmurou um ‘uh-oh’ e abriu um sorriso sem graça para Demétrius, sem saber o que dizer. Como era típico dela, Anna pensou em uma desculpa conveniente para satisfazer o príncipe e pediu licença para ir buscar Elsa.

– Ai, meu deus, Pétit, me ajuda! Se Elsa me deixar na mão agora, a avó de Demétrius e matriarca da família dele vai achar que eu humilhei o precioso neto dela de propósito. – ela sussurrou para seu bichinho de estimação, marchando em direção ao corredor que dava para a ala dos dormitórios.

.

...

.

O ruído de garras arranhando a superfície da porta despertou a rainha de seus devaneios. A voz de Anna veio em seguida, chamando por ela.

– Elsa? Elsa, você está aí dentro? – ela exclamou, fazendo a voz reverberar pelo corredor - Por favor, não faz isso. Você sabe que eu odeio quando você não fala comigo. Me responde!

A rainha se apressou para abrir a porta antes que Anna chamasse a atenção dos convidados. Por que ela tinha de ter uma irmã tão escandalosa? Ainda mais tendo de esconder um segredo que poderia colocar tudo a perder... que os deuses a perdoassem por pensar blasfêmias, mas depois de tantas enrascadas em que Anna havia se metido - e que Elsa invariavelmente era obrigada a se virar para salvar a irmã (e quem mais ela tivesse envolvido em suas empreitadas) - ela não tinha dúvida de que os deuses adoravam torturá-la.

Elsa abriu a porta visivelmente irritada com um puxão. Pétit pulou para trás na mesma hora, indo se esconder e se aninhar no colo de Anna.

– Anna! O que pensa que está fazendo?

– Eu que pergunto! O Demétrius está lá no salão agora, me perguntando onde você está!

– Quem é Demétrius?

– O príncipe de quem eu tinha te falado mês passado, lembra? Aquele de quem você ia gostar... –ela disse, sussurrando por algum motivo. As irmãs estavam sozinhas no corredor.

Elsa soltou um suspiro e passou a mão na testa, vendo que seu momento de paz estava completamente arruinado. Não tinha jeito de evitar o compromisso. Ao menos ela tinha conseguido fugir da multidão sufocante no salão e tido alguns minutos para recuperar seu equilíbrio interior.

Elsa respirou fundo, fechando a porta. Enquanto Anna a guiava de volta ao salão, ela foi dando uma série de conselhos à irmã. A lua estava alta na janela, iluminando a figura das duas jovens mulheres no trajeto.

– Fique calma. Demétrius vai gostar de você.

– E quem não gostaria? Qualquer herdeiro está interessado em casar com a rainha de um dos reinos mais prósperos e tradicionais do norte. – ela acrescentou em tom amargo.

– Não seja assim, Elsa. A avó de Demétrius era amiga de Irina. –disse Anna, mencionando a avó de Pyotr, pai de Elsa e sua irmã- Ambas foram amigas para toda a vida. Nossa família tem muito a ganhar se reaproximando da de Demétrius. Precisamos estreitar nossos laços com os amigos.

– É claro, Anna. Me desculpa pelo meu mau humor. – Elsa respondeu- É que...

Anna tomou suas mãos e disse que a irmã não precisava se explicar. Ela entendia tudo. As duas estavam paradas no inicio do corredor, protegidas pela penumbra.

– Está vendo aquele rapaz de costas, o de cabelos escuros espetados e uniforme branco? Agora vá até lá e caminhe daquele jeito altivo que você adora ostentar.

Elsa deu um tapinha amigável na irmã com a insinuação debochada, ao que Anna mostrou a língua. ‘Abusada’, disse Elsa baixinho, ao que Anna respondeu ‘Violenta’ em tom de piada.

Os convidados se viraram para a rainha, fazendo mesuras polidas e cumprimentando seu retorno. Elsa educadamente acenava com a cabeça, controlando-se para não gritar em meio a todo aquele ritual torturante. Tudo para garantir que o trono permanecesse seu até o final da noite.

Dois casais que conversavam com Demétrius se inclinaram à presença dela e se afastaram, permitindo que os dois conversassem em particular. Assim que o príncipe se virou, o coração de Elsa acelerou.

– Majestade. Permita-me lhe agradecer pelo convite para comparecer ao seu gracioso baile, Elsa de Arendelle.

O homem se curvou e tomou sua mão, beijando seu dorso. Elsa fora tomada por tamanha surpresa que quase se esqueceu de dar a resposta formal ao cumprimento. Demétrius ergueu seu rosto para ela e Elsa se viu fitando o mesmo par de olhos azuis límpido em um rosto magro, de traços pequenos. Exceto pelas mechas negras e pela ausência de um cajado, Demétrius era desde o queixo pequeno e retangular até o último fio de cabelo arrepiado idêntico ao misterioso rapaz mágico que Elsa conheceu em sonhos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Demétrius é um nome derivado de Dmitr, nome russo. Como Arendelle fica ao norte e neva bastante, imaginei que fosse um reino vizinho ao Império Russo. Pétit é um adjetivo francês que significa Pequeno. É uma criaturinha de minha invenção. O que ele é, ninguém sabe ao certo. Mas Anna rapidamente se afeiçoou a ele.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Reinos de Neve e Areia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.