Reinos de Neve e Areia escrita por Gerome Séchan


Capítulo 3
Sandy


Notas iniciais do capítulo

Tomado de curiosidade, Jack Frost sai em busca da identidade da mulher em seus sonhos e acaba encontrando um velho amigo. O encontro revela haver estranhos eventos acontecendo pelo mundo que requerem a atuação dos guardiões mais uma vez.
Enquanto isso, um misterioso homem se consulta com as forças espirituais que detém o controle do destino atrás de respostas para os males que assolam o Mundo dos Sonhos.



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Frustrado, ele assistiu a areia escorrer de suas mãos, liberando o último grão que restava. O sonho havia sido interrompido antes que o guardião e a rainha pudessem dizer seus nomes um para o outro. A algibeira contendo a areia dos sonhos agora estava vazia.

– Está tudo bem, Morfeu. Você fez o possível. –disse o homem encapuzado, erguendo a palma.

– Agora você vai me dizer por que era importante que estes dois mortais se encontrassem? – disse o criador do sonho.

Ele era um homem alto e magro, e trajava um sobretudo escuro. Seus cabelos negros e rebeldes compunham uma massa de fios lisos e arrepiados permanentemente bagunçada que enfeitava sua cabeça. Morfeu não sabia por que eles cresciam daquele jeito ou por que nenhum pente dos mortais era capaz de penteá-los. Não que ele se importasse com isso. Ele preferia manter um visual gótico, talvez porque ele instintivamente soubesse que o estilo combinava com sua natureza melancólica e depressiva.

– Está escrito no Livro que você encontraria a chave para adentrar o abismo. E que o caminho para encontrar esta chave seria reunindo estes dois jovens. – o encapuzado respondeu.

– Eu já descobri a chave, mas não sua relação com os dois sonhadores. O que mais está escrito no Livro? – Morfeu o pressionou.

– Isso eu não posso revelar. Essas são as Regras. Você sabe disso. – o homem se limitou a dizer.

Morfeu suspirou de frustração. – Pelo menos me diga uma coisa: eu tenho chance de recuperar uma parte do meu território? Ou aquela parte do Sonhar está para sempre perdida para mim?

– Morfeu, eu sou apenas o guardião do Livro. Nem mesmo a mim é autorizado ler o final antes da hora certa. Você pode ser um perpétuo, mas a ninguém, seja um mortal, seja um deus é permitido conhecer seu destino.

O encapuzado desapareceu em pleno ar enquanto caminhava para fora do castelo.

– É o que acontece quando você pede ao Destino que lhe dê respostas precisas. – Morfeu murmurou para si mesmo na penumbra.

...

Após anos de uma existência tranquila como guardião, Jack vinha tendo uma sucessão de pesadelos sem fim. Há uma semana ele sonhava com a morte da irmã, e a cada noite, acontecia uma versão mais perturbadora do que a anterior.

Quando ele estava prestes a ter um colapso nervoso, ele experimentou em uma única noite um sonho tão agradável que fez com que ele se recuperasse de todo o cansaço e que acabou abalando suas estruturas. O sonho no lago congelado com aquela jovem mulher havia sido tão real... ele ainda tinha dificuldade de colocar em palavras a experiência que o sonho lhe proporcionara porque ele sequer era capaz de compreender direito o que havia acontecido.

Pessoas sonhavam com eventos e outras pessoas que eram de sua convivência e a quem encontravam todo dia, não com, com... com princesas de reinos distantes com poderes mágicos, uma história de vida tão parecida quanto a sua e uma complexa mistura de beleza com orgulho e vivacidade.

E acima de tudo, capazes de deixar seu coração agitado com um simples beijo...

Quem era ela? Por que eu sonharia com alguém tão parecido comigo, e ainda assim tão diferente, tão...tão provocante? Aquela mulher mais parecia ter saído de algum canto escondido do inconsciente, onde os desejos mais íntimos se formavam, e se materializavam de um jeito inesperado...

Enquanto ruminava tais pensamentos, Jack girou o corpo para o lado para se deitar melhor e esqueceu que estava em cima de um galho. Ele perdeu o controle dos movimentos e despencou na grama fofa, soltando um ‘Ai’. Apesar de ser um guardião por mais de trezentos anos, ele sempre se esquecia de que podia planar à vontade. Alguns hábitos de sua vida anterior nunca mudavam.

– Hora de procurar Sandy. Talvez ele possa me dizer se essa mulher existe de verdade ou se é ele quem está interferindo com minhas noites de sono de novo. – disse o guardião, içando voo e desaparecendo pelos céus noite adentro.

...

Jack sobrevoava os céus de Ontario quando reconheceu à distância a inconfundível silhueta rechonchuda daquele homenzinho doce e simpático.

– Sandy! Ei, Sandy! Aqui!

Sanderman Mansnoozie, ou Sandy como seus amigos costumavam chamá-lo virou-se na direção da voz e, na mesma hora, ficou agitado.

– Ué? O que há com ele? Por que está assustado em me ver?

Jack parou de gritar e se aproximou do amigo. Sandy o puxou pelo braço e os dois zuniram pelo ar a toda velocidade, desviando de prédios no caminho. Quando eles atravessaram os limites da cidade e foram parar na área campestre nos arredores, Sandy se escondeu com ele em uma caverna e finalmente parou.

– Whoa, o que está havendo, Sandy? Eu nunca te vi desse jeito! Por que está fugindo?

Sandy então começou a narrar uma série de eventos criando imagens de areia que se sucediam, compondo uma longa e intrincada história. As imagens dispensavam explicações. Sandy havia nascido sem a habilidade da fala e passara sua vida comunicando-se através de mensagens visuais. Não era à toa que o Homem da Lua havia lhe nomeado Guardião dos Sonhos e lhe atribuído a habilidade de construir cenários majestosos na imaginação das crianças, protegendo seu sono.

Após minutos que pareceram horas, a história havia chegado ao seu fim. Toda a extroversão que havia no rosto de Jack havia se convertido em sisudez. O que o amigo acabara de lhe contar não era nada bom.

De acordo com o guardião, desde a derrota de Pitch, uma criatura que habitava nos confins do Pesadelo, uma área deserta e inóspita do Sonhar, havia deixado ele se alimentar de seus poderes, fazendo Pitch crescer de novo em poder e influência. Ainda de acordo com Sandy, a criatura estava presa dentro de Pesadelo por vários séculos. Qual razão estaria por trás de seu encarceramento, Sandy desconhecia, mas cedo ou tarde, Pitch pretendia libertá-la e deixá-la contaminar para sempre os sonhos das crianças. Os efeitos dos poderes combinados de Pitch e daquele monstro já eram sentidos. Há uma semana, Sandy vinha tentando desfazer os pesadelos das crianças e não conseguia. A areia negra agora era impermeável aos efeitos da areia dourada do guardião. Mas isso não era tudo.

– Está dizendo que os adultos também estão sofrendo com os pesadelos?

Sandy fez com a cabeça que sim. Jack coçou o queixo, pensando em como eles poderiam lidar com essa nova crise.

– Primeiro nós temos de avisar os outros guardiões dessa ameaça. Não podemos enfrentar essa criatura por conta própria. Se nem você consegue dar conta do poder dela, então vamos precisar de ajuda.

Mas Sandy fez que não com as mãos, sacudindo-as em um movimento frenético. Jack cruzou os braços, torcendo para que o amigo não sugerisse o que ele estava pensando.

– Se você tentar me convencer a investigar essa criatura com você, você está louco, Sandy.

O guardião explicou que o problema era outro. Usando-se de mais imagens, ele disse que os pesadelos haviam vazado do Sonhar e ido parar no mundo real. Se eles avistassem um dos guardiões, não hesitariam em caçá-los e destruí-los, como somente uma criatura nascida do medo poderia fazer.

– E você encontrou uma destas criaturas em Ontario, é isso?

Sandy bateu palmas uma vez, confirmando sua assertiva. Em seguida, ele voltou a evocar imagens na areia, continuando a história anterior quando um barulho distante ameaçava se aproximar cada vez mais de onde eles estavam.

Sandy e Jack espionaram para fora da caverna e foram acometidos de uma visão aterradora. Uma nuvem maciça parecida com uma parede negra avançava pela zona campestre, prestes a entrar no território de Ontario. Nas raras ocasiões em que um raio iluminava a nuvem, em seu interior eram visíveis tornados negros, que se entrelaçavam e se fundiam, voltando a se separar numa dança letal, estraçalhando tudo em seu caminho.

Sandy entrou em pânico e puxou Jack consigo, zarpando a toda velocidade pelo ar sem explicar o que era aquilo ou como aquele fenômeno havia surgido. O vento passava com tanta força que seu moletom e calças estavam colados contra seu corpo e seus cabelos brancos agora estavam eriçados para trás. Jack precisava manter os olhos fechados, tamanha a velocidade com que viajavam, sentindo a pressão da atmosfera ferir seu rosto.

– SANDY, VÁ MAIS DEVAGAR!

Mas o guardião ignorou seu pedido até um vulto negro ascender pelos ares e atropelá-los, abocanhando Sandy.

O guardião dos sonhos invocou uma redoma dourada e espirrou um jato de areia na boca da criatura, fazendo-a engasgar e tossir várias vezes. Em seguida, ele invocou uma jaula ao redor dela e uma longa corrente dourada serpenteou pelos ares, prendendo uma das pontas em uma chaminé. A criatura permaneceu se debatendo em sua jaula e Sandy voltou a puxar Jack consigo... mas a tempestade os havia alcançado.

O guardião dos sonhos então usou uma habilidade que seu criador havia lhe avisado para somente invocar como um último recurso. Sandy fez Jack adormecer tacando um punhado de areia em seus olhos e se concentrou em transportá-lo pela fábrica do espaço-tempo através das dimensões do Sonhar. Jack viajou sem saber por mundos paralelos até ir parar em uma distante fábrica no Polo Norte, onde mais um guardião residia.

Quanto a Sandy, a manobra para salvar Jack havia consumido muito de seu poder e ele perdeu a consciência. Seu pequeno e frágil corpo flutuou pelo ar ao sabor do vento, sendo finalmente engolido pela tempestade e dissolvendo em infinitos grãos de areia dourada. Morria assim Sanderman Mansnoosie, um dos apontados guardiões pelo Homem na Lua e o protetor dos sonhos das crianças.

...

O homem alto e magro de jaleco negro e cabelos negros rebeldes caminhava pela alameda turva, composta de contornos incertos, assim como tudo mais que fazia parte daquele reino estranho. As paisagens eram inconstantes, indecisas como o senhor daquele mundo e mudavam conforme seus passos, transitando de belas pradarias a céu aberto para um vale negro atormentado por tempestades furiosas.

A estrada continuava em direção a um deserto, atrás do qual não havia nada, nem mesmo o Universo. O homem, deus ou criatura que ousasse se aventurar além dos limites daquela terra árida se veria caindo no Vazio Absoluto.

À frente do homem havia três mulheres de diferentes idades e trajadas de formas distintas. Para as religiões antigas da humanidade, elas representavam as três fases da vida: juventude, maturidade e velhice. As Moiras, as três fiadoras da trama do destino e as guardiãs do passado, presente e futuro. E as únicas que detinham as respostas para as questões que assolavam a humanidade desde a Aurora dos Tempos: a verdade por trás da criação da vida, o sentido da existência e o que aguardava o ser humano antes do Fim do Universo.

O homem espreitou cada uma delas com seus olhos de pupila negra e um único brilho estelar que compunha sua íris. Em seguida, ele se dirigiu às mulheres como se fossem velhos conhecidos.

– Vim até aqui, como vocês me pediram. Não sei qual o problema em me visitarem no Castelo dos Sonhos.

– Nós precisávamos saber o quão sério você falava quando disse que queria descer ao Abismo. –disse a mais jovem.

– Para fazer você entender a gravidade do que está em questão, tínhamos de removê-lo da sua zona de conforto. – disse a mulher de meia idade.

Morfeu soltou um suspiro aborrecido. As Moiras adoravam brincar com ele.

– Suponho que as senhoras já estejam a par do que pretendo fazer.

As três abriram um sorriso satisfeito, como sempre faziam, minutos antes de se divertirem ao torturar o homem com suas respostas vagas e palavras ambíguas.

– Ele pensa que sabe o que vai acontecer. –disse a mais velha – Morfeu, você não esteve naquele Abismo há milênios.

– Não deve ser pior do que o inferno. Se nem Lúcifer conseguiu me destruir, não vai ser um mero demônio do medo que vai conseguir. – ele comentou.

As três mulheres gargalharam em uníssono.

– Deixe de ser convencido. Isso não vai ser como um passeio aos Campos Elíseos! – exclamou a mais velha – Seu inimigo pretende fazer pior do que te matar, rapaz.

– Ah, Morfeu, se ao menos você soubesse no que está se metendo... – disse a mulher de meia idade.

– Eu poderia, se vocês me contassem o que eu preciso saber. –ele insinuou.

As mulheres voltaram seus rostos com expressão extasiada e exclamaram: - Pois então pergunte-nos!

Respectivamente, a jovem, a matriarca e a idosa falaram:

– Mas apenas...

– ... uma pergunta...

– ...para cada uma.

Morfeu já estava familiarizado com aquele jogo. As Moiras nunca davam respostas diretas ou precisas. Quanto mais vaga a pergunta, mais vaga seria a resposta recebida. Se o interrogador quisesse arrancar qualquer informação das guardiãs do destino, teria de ser mais inteligente do que qualquer uma delas.

Ele moveu a cabeça para a mais jovem e perguntou: - Qual a chave que me dá acesso ao Abismo dos Pesadelos e destranca o a maldição que envolve aquela dimensão?

A Moira se aproximou dele, caminhando voluptuosa em seu vestido elegante e disse: - Você deveria me perguntar o que são as chaves, Morfeu. Como me perguntou qual é, só posso responder que as duas servem para destrancar o Abismo.

O perpétuo resistiu ao impulso de perguntar o que a moira havia insinuado e moveu a cabeça na direção da mulher de meia idade.

– Os pedaços do Apanhador de Sonhos estão dentro de quais áreas do meu reino?

A moira sorriu e percebeu a segunda pergunta implícita na frase.

– Parabéns, Morfeu. Está deixando de ser tão ingênuo. – O perpétuo se controlou para não responder à provocação – Os pedaços estão na zona limítrofe do Sonhar com o Abismo, antes e depois. E não, não vou responder quantos pedaços são. –ela acrescentou.

Mas a resposta da mulher já lhe dava toda a informação que ele precisava. O lugar de que ela falava era conhecido pelas entidades espirituais como o Precipício da Fé Antes do Desespero. Morfeu raramente visitava o lugar, pois era povoado de anjos e demônios que perscrutavam o lugar em busca de almas que vez ou outra haviam perdido seu caminho em vida. Devido a algum milagre que escapava até mesmo à compreensão de um dos sete perpétuos, não acontecia uma batalha ali mesmo entre as duas forças antagônicas e o lugar não acabava em ruínas. Como se Morfeu precisasse de mais um território do seu reino destruído após o inferno que foi obrigado a passar nas mãos de mortais gananciosos.

O perpétuo fitou a velha e fez a última pergunta:

– Vou encontrar o Apanhador de Sonhos e derrotar meu inimigo?

A mais velha moveu seus olhos para trás da cabeça, consultando o futuro e respondeu:

– Não. O que não significa que o apanhador não será encontrado, nem que o inimigo não vá conhecer seu fim muito em breve.

Morfeu foi tomado pela ansiedade e ia arriscar fazer uma quarta pergunta, mas as moiras invocaram um redemoinho e desapareceram de vista enquanto davam risos sinistros, deixando um confuso rei dos sonhos para trás com mais dúvidas do que respostas.

– Tsc, elas sempre fazem isso.


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram da introdução de Sandman (do Neil Gaiman)?
.
— Destino é um homem encapuzado, vestido feito um monge e que segura um livro grande, onde estão escritos os destinos de todas as coisas. Ele fala pouco e é visto nos quadrinhos criando eventos que colocam em movimento as forças do destino.
— Sanderman Mansnoozie é o nome original do guardião dos sonhos que aparece em A Origem dos Guardiões, uma vez que a animação da Dreamworks foi inspirada na série de livros infantil escrita por William Joyce.
— Há um motivo para a existência mútua de Sandman e Sandy na fanfic como guardiões dos sonhos. Mais para frente, tudo ficará claro.



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