Rua do Castelo d'Água escrita por Laura Machado


Capítulo 4
Capítulo 4: Place du Général de Gaulle




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Eu já tinha tido minha fase jovem e inconsequente. Tive anos da minha adolescência em que meus pais não me entendiam e que eu queria estar o mais longe possível deles. Naquela época, eu praticamente memorizava o que eles diziam para ir completamente contra. Não podia sair com minhas amigas? Eu saía. Não podia beber? Eu bebia. Não podia falsificar minha carteira de identidade e entrar em baladas? Era exatamente o que eu fazia. Usava a desculpa de que só estava querendo acumular experiências. Tinha decidido muito nova que seria escritora e aquilo era necessário. Então, mesmo quando meu instinto me dizia para escutá-los, eu ignorava. Mesmo quando eu podia sentir o medo das possíveis consequências arrepiando cada centímetro da minha pele, eu ainda caía de cabeça. Nunca sabia direito aonde estava pisando, mas ia mesmo assim.

Quando entrei na faculdade, já me contava como vitoriosa por ter sobrevivido todas as furadas nas quais tinha entrado. Mas dali para frente tudo se acalmou. Conheci Kendra e nós nos encontramos como amigas. Mas ela era bem mais calma, bem mais caseira. E eu fui descobrindo a beleza naquilo. Morar longe dos meus pais também tinha me ajudado a perceber que eu sentia a falta deles. E nós acabamos ficando muito próximos. Depois de vários anos vivendo tudo intensamente e me sentindo invencível, eu tinha colocado os pés no chão e virado até bastante entediante. Nem pensava mais em meus dias de liberdade, como gostava de chamá-los. Nem sentia mais que fazia parte da minha história. Ainda lembrava de cada detalhe, às vezes até tinha saudades de poder viver sem ter noção de problemas, só que ainda parecia ter acontecido com outra pessoa.

Mas ali, sentada logo atrás de Johann, eu podia sentir os vestígios daquela garota que eu tinha sido, aquela que tinha medo de tudo e, ao mesmo tempo, não tinha medo de absolutamente nada. Ele dirigia sua moto como se ela fosse uma extensão de seu braço, equilibrando perfeitamente a velocidade e o peso dela em todas as curvas que fazia. Eu me agarrava a ele, sentindo o atrito do ar nos meus braços fazer minha pele arrepiar. E o medo descia frio na minha espinha toda vez que ele parecia prestes a nos derrubar, mas subia de volta como euforia quando ele conseguia manter o controle.

Não que eu não confiasse nele. Eu tinha racionalidade o suficiente dentro da minha cabeça para confiar que ele não nos mataria. Ele sabia dirigir uma moto, tinha vindo da sua cidade na Alemanha assim, seguindo o caminhão de mudanças. E ele mesmo tinha usado aquilo como argumento para eu aceitar subir atrás dele. Eu sabia que tudo ficaria bem. Senão por tudo isso, então pelo jeito que ele tinha me sorrido quando me entregou o capacete naquela tarde, convencido e confiante.

Mas o resto do meu corpo não tinha tanta certeza. Eu não podia controlar os arrepios. E nem o frio na minha barriga. Definitivamente não conseguia controlar todas as vezes que algum carro passava por nós e eu fechava os olhos e o abraçava mais apertado. Eu repetia para mim mesma que já tinha feito coisa muito pior, que estava tudo bem. Mas não adiantava. Abria os olhos e ria nervosamente em seu ombro, mas ainda sentia o frio na barriga me fazer segurar Johann mais firme.

Não era minha primeira vez. Já tinha andado de moto antes, algumas poucas vezes. O suficiente para ter me feito sonhar em arriscar mais, pelo menos quando era mais nova. Só que nunca tinha ido tão rápido, nunca por tanto tempo. Nunca em uma estrada tão estreita e mal sinalizada. Me sentia como os corredores da Tour de France, que se matavam para conseguir se manter em cima da bicicleta. O que encaixava bem, já que Johann tinha dito que eles costumavam passar por boa parte daquele caminho. E quem sabe nós não os encontraríamos por ali?

"Tudo bem por aí?" Eu podia jurar ter ouvido Johann perguntar, mas seu capacete abafava muito e o vento garantia o resto do serviço de fazer nossa comunicação ser impossível.

Eu balancei a cabeça, o que ele podia sentir no seu ombro. Ou pelo menos era o que eu esperava.

Pude ouvir rastros de uma risada. Ia rir também, mas ele tirou uma mão do guidão e apontou para o outro lado do rio. Ainda fez questão de virar a cabeça o máximo que podia na minha direção, o que não ajudava no meu nervosismo.

"É para lá que nós vamos," ele disse.

Segui o que ele indicava com os olhos. De onde eu a via, parecia outra cidade que ficava à beira do Loire. Não tinha o castelo incrível de Amboise tomando conta do rio, mas a própria cidade tinha algumas poucas elevações que fazia a vista dali ser de tirar o fôlego.

Johann fez uma curva que me obrigou a agarrá-lo outra vez. A moto era pesada demais, eu sempre tinha a impressão de que ia cair de lado e me amassar. Mas ele a dirigia parecendo nem fazer esforço e eu vi o que devia ser a linha de chegada se aproximar.

Era aquilo. A estrada estava acabando e nós estávamos chegando. E eu ainda não tinha feito o que eu sempre tinha sonhado em fazer com uma moto.

E eu não faria, né? Não seria louca. Já tinha estourado toda a minha cota de imprevisibilidade por anos. Gostava mesmo de me sentir como se estivesse dentro de um sonho louco da minha adolescência, mas a realidade era que eu já era adulta. Eu não faria aquilo, me juntaria às outras pessoas da minha idade e colocaria meus sonhos em uma caixa escondida em algum lugar.

Johann fez a última curva para entrarmos na ponte e eu senti a urgência daquela oportunidade crescer dentro de mim. Eu queria muito, muito arriscar. Queria tanto, que praticamente podia sentir minhas pernas se esticando sozinhas. Eu só tinha mais alguns minutos. Com a velocidade que ele ia, talvez nem isso. Não queria ser mais uma pessoa que esquecia dos seus sonhos. Por que eu precisava ser como elas?

Mas e se eu caísse? E se me estabanasse? E se terminasse aquele dia lindo de verão estirada no chão, ouvindo franceses gritarem que eu era louca?

Mas e se eu não caísse? E se fosse ótimo?

Meus dedos instintivamente se agarraram mais forte a Johann. Se eu perguntasse a ele, tinha certeza de que diria para eu ir em frente e não me segurar. E podia já imaginá-lo depois, comigo contando que tinha sido medrosa demais. Podia já imaginar seu olhar de desapontamento. E eu definitivamente não queria desapontá-lo.

Minhas pernas começaram mesmo a se esticarem sozinhas. E quanto mais eu levantava, mais eu queria voltar a me sentar. Mas eu já tinha começado, não fraquejaria agora. Com movimentos rápidos para não parar de sentir que estava me segurando a ele, eu soltei minhas mãos da cintura de Johann e o segurei pelos ombros. De leve, fui soltando deles, testando para ver se mantinha meu equilíbrio. Mordia meu lábio, ainda fechava os olhos, um por vez, esperando que algo terrível fosse acontecer. Mas não, eu estava bem. De vez em quando, me dava um pouco de pânico e eu voltava a me agarrar ao seu ombro, amassando sua jaqueta de couro entre meus dedos. Mas a estabilidade continuava e eu respirava fundo.

E agora só faltava a parte final.

Era uma reta. Uma única reta até o final. E minha última chance.

Levei as mãos ao meu capacete, tirando o com cuidado da minha cabeça. Johann não tinha ideia do quê, mas sabia que alguma coisa estava acontecendo. Ele tentava olhar por cima do ombro, mas mantinha sua atenção à nossa frente.

"Quero testar uma coisa," disse para ele, quando estava sem capacete.

Ainda demorei alguns segundos para conseguir esticar minhas pernas por completo, que foram tremendo cada mais que eu me afastava mais de Johann. Mas agora já tinha assumido o que eu queria e levaria em diante.

Ele devia ter entendido o que eu estava fazendo, pois ofereceu sua mão para pegar o capacete de mim e levar no seu colo. Assim que minhas mãos estavam livres e vi que só tinha mais alguns metros de estrada à nossa frente, eu apoiei de volta em seus ombros e descontei ali todo o meu nervosismo.

E fiquei de pé.

Ou pelo menos tão de pé quando precisava ficar para sentir toda a nossa velocidade. Ainda segurava Johann com toda a força que tinha, mas dos meus ombros para cima, eu estava leve. O vento fazia meus cabelos quase me puxarem para trás, mas ainda era maravilhoso! O sol batia quente na minha pele, contrastando com a brisa gelada e juntos eles criavam a melhor sensação do mundo. Fiz até questão de arriscar um pouco mais, soltar de leve de Johann até conseguir esticar meus braços por completo, mesmo que, para isso, tivesse que manter minhas pernas tensas. Me deu uma vontade louca de rir, de histeria mesmo. E não me segurei. Devia parecer uma desvairada por fora, mas, por dentro, eu estava plena. Ainda sentia o medo perfurar minha barriga, mas ele se espalhava pelo meu corpo como mais do que só medo. Era até mais que adrenalina, era uma pura sensação de euforia. E, naquele momento, eu tive a certeza absoluta de que nunca tinha sido tão feliz na minha vida.

Fiquei até decepcionada quando senti que Johann diminuía a velocidade. Nós entramos na cidade e eu voltei a me sentar devagar. Mas dessa vez, mal me segurava nele. Claro que o abraçava, mas não precisava ser forte, podia ser só o suficiente para eu encostar minha cabeça nas suas costas e apreciar muito poder sentir o cheiro do perfume dele em um momento como aquele.

Nós ainda demoramos para chegar aonde ele queria. Quando ele finalmente parou a moto, Johann decidiu que não queria esperar até estar de pé. Ele se esforçou ao máximo até estar virado quanto desse para mim, tirou seu capacete e me puxou para um beijo. Eu não estava esperando, por mais que torcesse por algum outro durante o dia. Era a terceira vez que nós saímos e, depois da noite em que passamos bebendo vinho e assistindo filmes na sua casa, ele tinha se dado a liberdade de me beijar quando lhe desse na telha. Por sorte minha, era bastante.

Eu nem precisava sair de moto com ele. Nem precisava me esticar e abrir os braços. Só de ele me beijar, eu já senti toda minha pele se arrepiar e o frio na barriga aparecer outra vez.

Ele se afastou logo em seguida, sorrindo.

"Bem-vinda à Orléans," disse, agora saindo da moto e segurando um capacete em cada mão.

"Orléans, é?" Perguntei, passando minha perna para sair logo depois dele. Acabei batendo e ameaçando jogar a moto no chão, mas ele a segurava e evitou uma catástrofe. "Nós temos uma Orléans," completei.

Ele riu. "New Orleans não é a mesma coisa."

"Não sei, nunca fui," admiti, dando de ombros, enquanto ajeitava minhas roupas. O que eu realmente precisava ajeitar era o meu cabelo. Mas tinha feito um rabo de cavalo para entrar no capacete, então não tinha muito como estar tão armado. "Mas ouvi dizer que tem muita coisa de cultura francesa lá."

"Bom, aqui praticamente tudo é cultura francesa," ele disse, abrindo os braços como se me apresentasse mesmo a cidade.

Nós estávamos bem na frente de uma feira de rua, que tinha como papel de fundo as mesmas casinhas brancas com telhados cinza escuro de Amboise. Era até pitoresco e incrivelmente adorável.

"Como é que é?" Perguntei, só para ele repetir.

"Aqui é tudo cultura francesa," ele disse, se virando para me olhar.

"Não, fala 'praticamente' de novo," pedi, apertando meus olhos para ele como quem o analisava.

Ele revirou os olhos, divertido. "Vai encanar com meu R outra vez?"

"Praticamente!" Tentei imitar seu sotaque, começando a andar na direção à feira. "É para lá que vamos?" Perguntei, apontando para ela, sem parar de tentar falar com ele.

"Wenn du willst, dass ich Deutsch spreche, sag mir."

Eu parei de andar para mirá-lo. "Não tenho a menor ideia do que você acabou de dizer."

"É essa a ideia," ele falou, orgulhoso de si mesmo. Passou por mim e foi na direção da feira.

Eu o segui. "Tá. E então, o que nós precisamos comprar?"

"Deixa eu ver," ele pegou a nossa lista do seu bolso, onde cada ingrediente tinha sido escrito por um de nós aquela tarde, antes de sairmos de Amboise. "Bom, os ingredientes principais são a batata e o couve-flor."

"E queijo. Não podemos esquecer de queijo."

Ele parou de andar para me mirar. "Ninguém em território francês se esquece do queijo, Audrey."

Revirei os olhos. "Só os americanos," falei, quando voltamos a andar, e ele riu.

Ele até tinha perguntado se era melhor nós nos separarmos para pegar tudo da lista mais rápido. Mas eu garanti que meu francês não era dos melhores. E, mais importante ainda, eu adorava ouvir o sotaque dele quando ele conversava com outras pessoas. Em inglês, ficava ótimo. Em francês, ficava extremamente graça.

Mais graça ainda era vê-lo ali. Ele parava na frente das barracas e sorria para os vendedores. Fazia o que eu imaginava ser uma piada e começava a tocar nos ingredientes. Cheirava folhas verdes e me pedia para escolher as batatas das quais eu gostava. Nunca nem tinha chegado perto da seção de legumes do supermercado, mas eu tentava. Pegava cada uma na mão e apertava, às vezes tão forte que deixava marcas nelas com minhas unhas e obrigava Johann a comprar.

Depois de alguns bons itens escolhidos, vários dos quais eu nem sabia o nome, nós nos afastamos para a próxima barraca.

"Por que nós viemos até aqui comprar?" Perguntei de lado para ele, passando por todas as pessoas que tinham cara e jeito de franceses felizes e apaixonados por comida. "O que tem de tão especial nessa feira que nós precisamos vir de Amboise para comprar as coisas dela? As cenouras nem estão tão bonitas, cada uma de um tamanho. E tem uma minúscula aí na sua sacola."

Johann riu. "É exatamente por isso que nós viemos aqui."

"Você não gosta de cenouras bonitas?"

Ele olhou por cima do ombro na minha direção, o céu de verão logo atrás dele. Parecia ter toda a intenção do mundo de me responder, mas, antes que pudesse, me coloquei na sua frente e nas pontas dos pés, só ficando satisfeita quando nossos lábios se encontraram. Se ele tinha a liberdade de me beijar quando quisesse, eu não seguraria nenhum impulso.

E ele não pareceu se importar. Pelo contrário, eu podia ter tomado a iniciativa, mas ele parecia pegar aquela ideia para ele, ignorando todas as sacolas que segurava para me abraçar pela cintura.

Quando nos afastamos, eu já até tinha esquecido do que falávamos antes, mas ele ainda lembrava.

"Nós viemos aqui porque as coisas daqui são orgânicas, de fazendas pequenas até de perto de Amboise. As coisas não são tão bonitas quanto as que você encontraria em um Carrefour, mesmo aquele pequeno perto do seu hotel. Mas comprá-las ajuda os fazendeiros pequenos."

Se antes eu o tinha achado maravilhoso demais para não o beijar, agora ele estava completamente irresistível. Por sorte, eu ainda estava à sua frente, com seus braços me sustentando o mais perto possível dele. Fiz questão de lhe beijar de novo, dessa vez rápido e intenso, segurando seu rosto de leve com minhas duas mãos.

"Obrigada por me trazer aqui," falei, assim que nos afastamos.

Pelo resto das compras, eu até tentei participar de todas as vezes em que ele falava com os vendedores. Agora não eram só caras que queriam vender um produto. Eles eram pessoas que tinham famílias e uma casa no meio de um terreno enorme, que acordavam cedo todos os dias para plantar e colher aquilo que estava na nossa frente. Eu podia quase ver o carinho que eles tinham por cada uma das suas maçãs maltratadas e de tamanhos diferentes. Sem agrotóxicos e só bastante trabalho duro deles. E eles todos me olhavam com gratidão, mesmo que fosse só por Johann que nós estivéssemos ali.

E era impossível não o abraçar quando ele fazia as pessoas rirem. Ele era simpático e amável e conquistava todos à sua volta. Enquanto eu só conseguia olhar para ele, Johann sorria para todos e fazia acenos de cabeça. Era cativante demais. E difícil de acreditar que ele estava ali comigo, que eu tinha tamanha sorte.

"Como chama isso daqui?" Perguntei para ele quando estávamos na barraca de maçãs, enquanto o vendedor olhava curioso de mim para ele.

"Pomme," ele disse. "C'est une pomme, non?" Ele pegou a maçã da minha mão, a indicando na direção do vendedor, que abriu um sorriso enorme.

"Ouais, c'est une pomme. Mais celles-ici sont mieux," ele escolheu outras maiores e mais vermelhas e entregou na mão de Johann, todo animado como um garotinho.

Enquanto eu estava perdida.

"Não tenho a menor ideia do que está acontecendo," cochichei pra Johann baixinho, que pareceu não ouvir.

"Oh, merci," disse, pegando cada uma das maçãs do cara e colocando na nossa sacola. "Mais celles-la sont bonnes aussi. J'ai prové tes pommes déjà, elles sont merveilleuses. Et on en va prendre dieux, merci."

"Dieux! Dieux eu sei que é dez!" Exclamei, sabendo que estava sendo tonta, mas não me importante.

Johann se virou para mim, me dando um beijo rápido, enquanto o vendedor ria sozinho.

Ele terminou de embrulhar as dez maçãs que levaríamos e me entregou a sacola. Eu abri um sorriso e podia sentir meu coração palpitando quando falei:

"Merci beaucoup."

O cara abriu outro sorriso, todo orgulhoso. "De rien, chérie. De rien," ele disse, sua voz misturando em uma risada como se ele fosse parte de um desenho animado. Quase tive vontade de dar a volta na barraca e abraçá-lo, de tão simpático que era. "Bonne journée!" Fez questão de desejar quando nos afastávamos.

Isso também eu sabia o que era. Ele estava nos desejando um bom dia. E eu teria desejado de volta, mas as palavras simplesmente não saíram da minha boca. Então me contentei com um aceno de cabeça.

Francês fazia aquilo comigo. Tinha me sentado algumas noites no meu hotel para reaprender algumas coisas. O máximo que eu já tinha estudado antes tinha sido só o necessário para passar de ano na escola. E tinha sido há tanto tempo, que eu não me lembrava de nada. Mas mesmo depois de algumas várias frases estudadas e escritas até no meu celular para eu testar no dia seguinte (com algum atendente, a faxineira do hotel ou até mesmo Johann), eu sempre engasgava quando a hora chegava. Só o 'merci beaucoup' já tinha usado todas as forças que eu tinha. E era a frase mais besta do mundo.

"Eu achava que 'pomme' era batata," falei para Johann quando nós nos afastamos. "Podia jurar ter ouvido você falar 'pomme' para comprar as batatas."

Ele riu. "Pommes de terre é batata. Pomme só é maçã."

"Então batata é uma maçã da...terra?!"

"Para os franceses sim," ele parou de andar, me olhando estranho, como se esperasse alguma reação maior. "Sabe aonde estamos?"

Eu olhei à nossa volta. Tínhamos nos afastado um pouco de toda a feira e pisávamos em cima de trilhos do que devia ser um trem de rua.

"Não se preocupe, ele não opera enquanto tem feira," Johann disse, seguindo meus olhos. "Onde estamos, Audrey?"

"Orléans," falei prontamente, sabendo que não era isso que ele queria.

"Aonde de Orléans?" Ele insistiu, mas eu dei de ombros. E então ele apontou para a casa atrás dele e na minha frente. "O que tem de diferente ali?"

Era óbvio. A casa não era branca como as outras, nem tinha telhado cinza escuro. Era marrom, com taras mais escuras de madeira formando vários X por toda a sua fachada. Parecia ainda mais velha que o resto, quase como se precisasse de cada X para se manter de pé.

"O que que tem ali?" Perguntei, dando alguns passos na sua direção e apontando também para ela.

Johann veio ficar do meu lado. "Essa é a casa onde morou Joana D'Arc." Me virei na hora para olhá-lo.

"Sério?"

"Sério," ele disse, orgulhoso de como eu parecia interessada. Até começou a andar na sua direção, querendo chegar mais perto.

Eu fui logo atrás. "Ela morou em Orléans?"

Ele parou. Se virou para mim. "Ela é considerada a responsável pela Libertação de Orléans. La Pucelle d'Orléans. É claro que morou aqui."

Eu arqueei as sobrancelhas. "Não tenho a menor ideia do que é a Libertação de Orléans," disse. "Ou essa outra coisa aí que você falou."

Ele riu, jogando a cabeça para trás. "Se nós tivéssemos mais tempo, eu te levava ao museu dela." Ele colocou o braço em volta do meu pescoço. "Mas temos um jantar para fazer."

Apesar disso, ele ainda continuou parado na frente da casa e voltou seus olhos para ela. Eu o acompanhei. Não tinha ideia de quando Joana D'Arc tinha vivido, ela só tinha sido uma personagem de quem eu tinha ouvido falar na minha infância - e que sempre me pareceu terrivelmente entediante. Mas dava para ver que era bem mais antigo que o resto e eu estava gostando de compartilhar com Johann aquela adoração que ele tinha por coisas antigas. Então fiquei ao seu lado e ainda fiz questão de buscar sua mão livre de sacolas com a minha

"Não sabia que ela era daqui," falei, meus olhos se desviando sem querer para o final da rua, onde uma igreja branca e bem francesa imperava.

Mesmo parecendo bastante Amboise, era impossível não me apaixonar por Orléans sozinha. Parecia que cada igreja, cada casinha, cada pequena boulangerie estavam localizadas no lugar perfeito para formar uma vista encantadora em todos os cantos. Não importava para onde eu virava ali, se era pra casa da Joana D'Arc, para a feira ou para a igreja. Tudo ali era de tirar o fôlego e me fazia sentir como se fizesse parte de uma pintura.

"Ela não é," Johann me corrigiu, ainda mais interessado na casa dela, mesmo que eu estivesse encantada pela igreja. "E eu realmente preciso te trazer no museu," completou, se virando para me beijar.

Não sabia se era falta de respeito. Uma coisa que eu lembrava dela, era que ela era religiosa e falava com os anjos ou coisa parecida. Mas Johann continuava irresistível demais para eu contestar alguma coisa.

Dali, nós voltamos para a moto, ajeitamos tudo entre ele e eu e colocamos nossos capacetes de volta. Fiquei impressionada de eles ainda estarem ali, quando Johann só os tinha apoiado em cima da moto. Em Nova York, as chances de te roubarem quando você estava segurando uma coisa já eram grandes. Imagina se deixar o capacete solto em qualquer lugar!

Ainda bem que eu tinha me levantado quando estávamos indo até lá, pois seria impossível na volta. Eu tinha que me segurar a Johann e às sacolas e ter certeza de que nem as pommes e nem as pommes de terre sairiam voando pela estrada.

Ele estava certo quando disse que morava no final de Amboise. E eu também quando falei que demoraria cinco minutos do meu hotel até lá. De moto, era ainda menos. Era uma sexta-feira, um dos dias mais cheios de turistas pela cidade. Mas logo depois do centro, as ruas ficavam vazias e eu quase podia apostar que era uma cidade fantasma. Nos meus primeiros dias, aquilo até tinha me assustado. Mas Johann jurou que era normal e que tinha gente morando lá sim.

Nós passamos por várias ruas com nomes parecidos até entrarmos na sua. Ela era a mais estranha de todas. Enquanto as outras se chamavam de alameda disso, boulevard disso, rua disso (e insistiam em usar o mesmo isso, achando que alguém ia mesmo conseguir diferenciá-las), a rua da casa de Johann se dobrava em três e tinha o nome mais diferente que eu já tinha ouvido falar.

E assim que eu avistei a sua placa, velha e gasta, mas ainda majestosa com o pôr-do-sol a fundo, eu sorri. Rua do Castelo de Água. Bem justo mesmo, já que ele morava na cidade do castelo mais bonito da França, que por coincidência ficava bem à beira do seu rio mais famoso.

Ele fez as duas curvas que acompanhavam sua rua e nós paramos na frente da sua casa. Ela era grande e bastante moderna, comparada com o do resto da cidade. Mas eu gostava dela. Tinha cara de casa de família e era ajeitadinha. Ele tinha explicado que era a única que tinha encontrado para alugar quando conseguiu o emprego, senão até preferiria morar em um lugar menor. E pensar que o mercado mobiliário ali estava mais escasso que em Nova York.

"Eu definitivamente devia ter vindo para cá antes," falei, deixando as compras em cima da bancada da cozinha dele depois de entrar.

Ele parou do meu lado, segurando duas pantufas na minha direção.

Droga. Tinha me esquecido da mania de não usar sapatos dentro de casa dele. De onde os alemães tinham tirado aquilo, sério? Ele tinha me obrigado a checar bem minhas meias antes de sair de casa naquela tarde.

Peguei as pantufas dele e tirei meus sapatos, voltando para deixá-los do lado dos dele no hall de entrada. Era estranho vesti-las. Tinha sido até mais no primeiro dia que eu fui ali, já que eu definitivamente não estava esperando (e nem achava muito normal aquele costume). Mas ainda era bem estranho. Dava muito a sensação de estar em casa. E aquela não era a minha casa!

"Já conseguiu voltar a escrever?" Ele perguntou da cozinha e eu fui até lá.

Torci o nariz. "Tá, não," e, honestamente, tinha passado o dia inteiro sem nem pensar naquilo. "Mas aqui tudo parece tão mais animado. Feliz. Sei lá, diferente mesmo."

"Não é a cidade, Audrey. É você," ele disse, tirando cada ingrediente das sacolas e os organizando em cima da bancada.

Eu o ajudei. "Sou eu?"

"É você que é diferente. É você que é nova aqui. E é você o problema de Nova York."

Dei a volta na bancada e apoiei com meus cotovelos nela.

"Eu sei, é meu bloqueio. Já esgotei de inspiração naquela cidade," bufei de cansaço, apesar de não o sentir naquele momento. Era só o assunto que já pesava nos meus ombros.

"Esgotar inspiração em Nova York simplesmente não é possível," ele separou as batatas e deu as costas para mim para lavá-las. "É você que não a enxerga direito."

"Nossa, você realmente acha que eu sou o problema de tudo," falei, indo até ele, só para vê-lo mais de perto.

Ele riu. "Não exatamente. A cidade tem culpa também. Ela te acostumou a buscar sempre muita informação ao mesmo tempo, nunca se contentar com o que está logo à sua frente. Mas você não precisa deixá-la te vencer."

Ele se virou de volta pra bancada e começou a cortar as batatas em cubinhos, mas sem desprendê-los completamente da casca. Eu o acompanhei e apoiei mais uma vez no meu cotovelo, como uma aluna atenciosa.

"Como assim?" Perguntei.

Ele parou com sua faca e olhou por alguns segundos para seu trabalho, depois virou o rosto para me mirar.

"Você sabe o que eu estou cozinhando, não?" Perguntou.

"Uma receita de batata assada da sua mãe," falei, fechando um olho só, sem conseguir lembrar o nome certo.

Mas ele sorriu. "Exato. E ela a criou quando eu era pequeno. E deve já ter feito milhares na sua vida. Era religiosamente o nosso jantar de sexta-feira. Era seu jeito especial de comemorar que mais uma semana tinha terminado, que nós continuávamos na escola e que meus pais ainda tinham empregos. Não que estivéssemos para perder tudo isso, mas minha mãe gostava de comemorar as menores coisas."

Só de ele falar isso, eu já gostava da mãe dele. E queria abraçá-lo por trazer uma tradição sua para dividir comigo.

Mas ele continuou sem ter ideia do que eu estava pensando. "Eu e minha irmã estávamos mais interessados no gosto, mas o fato é que ela cozinhava esse mesmo prato toda sexta-feira. Ela chegava do trabalho, conferia se estávamos fazendo nosso dever e ia para a cozinha. Olhava a mesma receita, que ela mesma tinha escrito há muitos anos. E repetia cada um dos passos das suas próprias instruções. Mas nunca, jamais ficava com o mesmo gosto. Não exatamente o mesmo gosto. Porque isso é impossível. E cada vez que você sai na rua, seja na turbinada Nova York ou na pacata Amboise-"

"Cidade fantasma," o corrigi.

"-ou na cidade fantasma de Amboise," ele continuou, inabalado, "é um momento diferente. Podem ser as mesmas casas, os mesmos carros, mesmo castelo e mesmas pessoas que passam pelo seu caminho. Mas é diferente. Mesmo na mais meticulosa das repetições, há sempre alguma diferença. Seja a sensação de quem a coloca em prática, o clima ou até mesmo os passos tortos que você dá sem querer pelo caminho. Nada é igual. Nenhuma receita é sempre feita do mesmo jeito. Os ingredientes mudam, o humor do cozinheiro, a temperatura do ambiente. E mais, a fome de quem vai comer. Cada um desses elementos contribui para transformar todas as experiências em únicas. Você só não percebeu isso ainda."

Eu só olhava para ele, levemente boquiaberta. Johann achou que aquilo era o suficiente para sorrir e continuar.

"O que eu quero dizer é que você está muito acostumada a olhar para a imagem geral," ele disse. "Precisa começar a focar nos detalhes. Sim, você pode chegar do trabalho em casa e o lixeiro passar todo dia no mesmo horário. Mas às vezes é às sete da noite em ponto. Às vezes sete e dois. Numa noite, o céu está escuro e você curte a brisa, na outra, está irritada com tudo e nada que venha de fora consegue mudar isso. Existem grandes ações, como lutar, falar, pular. Mas a cidade grande e essa quantidade absurda de informações está fazendo você só passar os olhos por cima de tudo. Você precisa observar os detalhes, saborear cada um e perceber o que faz os momentos da sua vida serem únicos. Você nunca vai encontrar a mesma pessoa na sua vida. Nem mesmo sua mãe é a mesma toda vez que você a vê. São combinações infinitas de incontáveis elementos. E você devia aproveitar cada um deles."

Eu tentava absorver tudo que ele dizia, quase colecionar suas palavras dentro da minha cabeça. Já nem lembrava muito bem do meu nome, parecia só conseguir assistir e ouvir. E ele olhava para cima de vez em quando, fazendo pequenas pausas entre legumes, como se precisasse focar no que dizia. E enchia o peito, de fôlego e pensamentos, seus olhos buscando no teto a continuação de seu argumento. Era impossível parar de prestar atenção em cada movimento que fazia.

Tinha até me esquecido de que estava cozinhando, quando ele se virou de costas, pegando uma forma e a colocando na minha frente na bancada para a próxima etapa.

"Você está preocupada demais com tudo de grande que vai acontecer na sua história," ele continuou, voltando a me lembrar do porquê de ter começado a falar tudo aquilo. "Eu acho que você devia se desprender de tudo. Começar um dia normal, rotineiro. Fazer seu personagem acordar com uma sensação diferente," ele se virou para mim, soltando tudo que segurava e se apoiando no seu cotovelo à minha frente, "fazê-lo tomar nota de cada detalhe à sua volta. Ações pequenas. Do jeito que ele olha para o rosto de alguém, de suas sobrancelhas escuras e seus cabelos bagunçados, até seu sorriso torto e adorável," ele aproximou sua mão do meu rosto, passando o dedo de leve nos meus lábios. Como se eu precisasse de mais alguma coisa para me fazer ficar sem palavras. "Seu personagem não precisa perceber tudo que acontece atrás dele, só olhar mais de perto para o que sempre esteve do seu lado. E começar a ver tudo que nunca tinha visto antes. Do pequeno triângulo que forma em seus lábios quando ela sorri," sabia que estava falando de mim e não podia evitar de sorrir e deixá-lo formar, "de cada pinta que ela tem, de cada pequena covinha que forma quando você a faz rir, de cada traço perfeito de seu rosto," ele praticamente me desenhava, passando o dedo de leve em cada canto do qual falava. Sem nem eu perceber direito, me aproximava devagar dele. "E ele nunca vai se cansar," Johann continuou. "Porque toda vez que ela rir, será diferente. Toda vez que ela rir, ele vai encontrar alguma outra coisa que nunca tinha notado antes. E um outro jeito de chegar mais perto dela," ele deu a volta discretamente no pequeno canto da bancada que nos separava e se colocou na minha frente. "Ele vai encontrar outros jeitos de provar para ela quem ele é naquele momento, do que ele quer," senti sua mão passando de leve pelo meu braço, deixando um rastro de arrepio até meus ombros e finalizar traçando o caminho até minha nuca. "Ações pequenas, Audrey," ele praticamente cochichou, chegando seu rosto perto do meu. "Ações pequenas que mudam tudo."

Ele segurava meu queixo e o puxou para ele, já me fazendo ficar nas pontas dos pés e antecipar loucamente o momento em que me beijaria. Mas parou quando eu ainda estava a alguns poucos centímetros dele.

"E então?" Perguntou, inclinou a cabeça para trás com um sorriso convencido e uma única sobrancelha levantada. "Como estou indo? Seu bloqueio já foi exterminado?"

Não consegui evitar de rir. Ele sabia o efeito que tinha em mim e, por mais que eu quisesse negar e dizer que não era tão intenso quanto ele tinha feito parecer, podia sentir meu coração batendo na base da minha garganta, me roubando completamente o ar.

"Não," falei bem baixinho. "Acho que está faltando uma coisa," completei, dessa vez eu mesma me inclinando e o beijando.

Não demorou para ele me abraçar pela cintura, dessa vez me levantando até ter me sentado na bancada.

Me inclinei um pouco para longe dele, só o suficiente para olhar por cima do ombro para todos os ingredientes que ainda esperavam ser cozidos.

"Nós não vamos fazer as batatas?" Perguntei, voltando a mirá-lo. Segurava seu rosto com as minhas duas mãos.

E ele estava levemente mais baixo do que eu, o que me dava uma sensação muito possessiva sobre ele. E absurdamente instigante.

"Nah," ele falou, com um sorriso torto malicioso. "Deixa pra próxima sexta."

Era exatamente o que eu queria ouvir.

E em um segundo, tinha me puxado de volta para ele, a urgência do nosso beijo crescendo cada vez mais.

Eu poderia ficar ali para sempre, ouvindo suas teorias da vida, o vendo cozinhar e fazendo nossos lábios se encontrarem todas as vezes em que tivesse vontade. Era impossível me contentar. Impossível vê-lo na minha frente, seu sotaque arranhando os erres e forçando os esses, e não querer mais. E queria sempre mais. Queria abraçá-lo mais forte, enroscar mais minhas pernas em volta dele. Olhar para ele, sentir o toque da sua pele na minha, deixar que ele entrelaçasse os dedos nos meus. Quanto mais eu respirava perto dele, mais eu precisava de ar. E mais eu me intoxicava. Não queria nunca me afastar dele, não queria que aquele momento acabasse.

Mas acabaria. E eu me afastaria. Em pouco mais de uma semana, eu iria embora. Em exatamente dez dias, eu o deixaria.


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