Annie escrita por Allan Menezes, Kah


Capítulo 5
Êxito




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“Um bom plano executado violentamente agora é melhor que um plano perfeito executado semana que vem.”

George S. Patton

Annie abriu os olhos devagar, lutando contra o peso incomodo das pálpebras e a dor latejante no lado direito de sua cabeça. A primeira coisa que sentiu foi o frio: o corpo estremeceu com o ar gélido e a garganta seca ardeu. Logo após, ouviu um barulho vindo de sua barriga — parecia que tinha ali uma miniatura de motor roncando.

E foi o pequeno motor que a trouxe de volta à realidade: estava com fome porque ainda não havia jantado.

— Matt? — Sussurrou, confusa. Deveria estar na casa dele, certo?

Errado. Seus olhos demoraram para focalizar e entender o que estavam vendo. Se encontrava sozinha em uma imensa sala (pelo menos três vezes o tamanho da casa de sua avó), deitada sobre um confortável sofá vermelho.

O lugar era iluminado por seis lustres grandes; as paredes eram pintadas por um impecável tom de bege e cobertas por diversas pinturas famosas. Reconheceu O Nascimento de Vênus pendurado logo acima de si. Reparou também na quantidade de livros, com capas pretas e marrons, dispostos em duas espaçosas estantes. Entre elas, haviam cristaleiras repletas de bebidas e porcelanas com desenhos estranhos.

A garota agitou a cabeça, atordoada. Não fazia ideia de onde estava.

A parede dos fundos era totalmente coberta por uma grossa cortina de veludo vermelho. Concluiu, então, que ali deveria estar a janela. Olhou na direção contrária e viu a grande porta de madeira avermelhada.

Tocou novamente a cabeça e lembrou com desgosto do que havia —ou parecia — ter acontecido. No caminho para a casa do namorado fora atingida por uma terrível vertigem que fez as ruas rodarem de um jeito engraçado e a desequilibrou até que precisasse se encostar no muro de uma residência qualquer. A visão foi escurecendo, mas ela ainda pôde sentir alguém se aproximar; apagou depois disso.

Passei mal e alguém me socorreu. — Era a explicação mais óbvia e menos assustadora.

Ajeitou o vestido vermelho e procurou algum sinal de sua bolsa; precisava ligar para sua avó.

Antes que avistasse a pequena bolsa preta, a porta se abriu com um estrondo e uma força invisível a empurrou para o outro lado da sala. Sim, ali realmente tinha uma janela e resultou em um lancinante impacto contra seu corpo.

Um homem todo de preto atravessou os batentes. Seus pés não tocavam o chão. Ele flutuava. Mantinha as mãos cruzadas nas costas e queixo erguido enquanto pairava vagarosamente pela sala.

Annie não conseguia se mover e assistia assustada aquele show de horrores que incluía um estranho que voava e uma sala sendo devastada: os lustres foram derrubados, os quadros rodopiavam junto com os livros e, uma à uma, as garrafas saltavam das cristaleiras.

Asmodeus gostava muito do que via. Finalmente teria sua recompensa depois de um agitado dia de trabalho. Flutuava devagar, se deliciando com a imagem de Annie: os olhos verdes nublados pelo pavor; a boca rosada entreaberta buscando por palavras; a cortina negra de cabelos que caía pelos ombros nus... Só lamentava por não conseguir ver sua alma híbrida, que deveria ser tão bela quanto o casaco de carne que a revestia.

Querida, cheguei — Pensou divertido enquanto derrubava uma estante.

A garota permanecia parada, pois o uso das habilidades do homem a mantinha grudada na parede com uma fita adesiva. O peito subia e descia em ritmo acelerado. Talvez acabasse por infartar, como Matt. A morena, para Asmodeus, não parecia mais que um bichinho assustado.

O leopardo cerca sua vítima, assim, devagar e cautelosamente. Ele a mobiliza e a sufoca com uma mordida na garganta. O demônio comparava-se com o animal; era um caçador ardiloso e sabia esperar o momento certo para atacar a presa.

Annie seria sufocada.

Ela arfou quando se deu conta de que o homem estava a apenas 20 centímetros de si. Já conseguia sentir o cheiro forte do perfume dele. Seu ouvido zumbiu alto quando os dois pares de olhos se encontraram.

— O que...— Annie tentou murmurar, sendo cortada em seguida.

— Shhhhh.— Ele esboçou um leve sorriso.— Poupe-se, sim? Teremos um pequeno papo mental.

As mãos grandes correram pela cabeleira dela, prendendo vários fios entre os dedos.

Asmodeus chegou mais perto quando sentiu que ela estava totalmente presa. Fitou bem as órbitas verdes; cor bonita, de fato, mas o que lhe interessava no momento era unicamente sua pupila. Viu nela uma mancha alaranjada ao fundo que movia-se devagar, como em uma dança: o fogo que ele precisava atiçar.

Queime.

Annie tentou gritar, mas não conseguia sequer desprender seus cabelos ou acabar com aquele contato visual. O estranho tinha dois abismos escuros no lugar de olhos e, pior: dois imãs que a sugavam. Eles a levaram para uma escuridão sem fim.

Uma espécie de flash fotográfico a cegou. A garota sentiu a cabeça dar um leve giro; talvez fosse um efeito colateral por ter caído — literalmente? — nos olhos dele.

Surpreendeu-se ao perceber que não estava mais na sala elegante com o estranho-homem-voador. O cenário desta vez era um quarto branco sem portas ou janelas. Parecia-lhe também não ter teto, já que ela olhava para cima e via apenas um borrão negro. Apesar disso, o lugar era suficientemente iluminado para que ela pudesse reparar na falta de mobília.

É um pesadelo. — Pensou, confusa.— Eu vou acordar.

Tateou as paredes buscando uma saída.

É a droga de um sonho lúcido. Só preciso acordar.

Os pés descalços escorregaram em uma massa gelada e acinzentada que se estendia por todo chão. Em poucos minutos o local parecia menor e mais escuro. Certo, já era hora de ficar realmente assustada.

— Socorro! — Berrou enquanto esmurrava as paredes. — Alguém me tira daqui!

Em resposta, vozes explodiram em sua mente. Várias delas: homens, mulheres, crianças... Gritavam, riam, chamavam por seu nome, algumas delas repetiam frases, números e palavras sem sentido, outras gargalhavam enquanto a xingavam.

Procurou por algum sinal daquelas pessoas mas a sala branca apenas diminuía de tamanho.

Annie levou as mãos à cabeça na tentativa frustrada de calá-las. Sentiu a claustrofobia bater forte ao reparar que o ar ficara mais denso e segurou a garganta para tentar controlar a própria respiração evitando o possível sufocamento. Percebeu três coisas com esse ato: estava sem seu colar, usava um vestido de hospital que cobria seus braços e metade das coxas, algo apertava seu pulso.

Ignorou as vozes por um momento e observou a incomoda pulseira branca. Conhecia o objeto: uma identificação hospitalar que contém um código de barras, nome e diagnóstico do paciente. Rodou ansiosamente a fita e soltou um grito agudo ao ler as pequenas letras.

Annie Dinsmore
Esquizofrenia Paranoide

— NÃO! Não! Não... — Balançava o corpo em desespero. Aquela era uma das piores coisas que lhe poderiam acontecer; receber o diagnóstico da mãe. — Eu não estou louca!

As mãos socavam a parede com toda força que podiam e ela ouviu as unhas quebrando enquanto arranhavam a estrutura.

O “teto” passou a ceder lentamente, acabando aos poucos com a iluminação. Annie ainda gritava e se debatia, como uma dança de passos macabros.

Cansou-se após algum tempo. Não sabia quanto, mas lhe parecia uma eternidade. A coisa nojenta abaixo de si havia adquirido um medonho tom avermelhado. Sangue caía das pontas dos dedos e da cabeça — abriu uma ferida perto da testa após lançá-la na parede.

Encontrava-se encolhida em um dos cantos, como uma menininha apavorada. Continuava a ouvir — zombavam e riam da situação — as vozes em sua cabeça. Bradavam satisfeitas a cada grito.

Ela abraçava os próprios joelhos soluçando. Foi quando os braços começaram a coçar. Um cheiro adocicado até demais atingiu suas narinas; conhecia aquele odor de algum lugar. Era carne queimando.

Levantou as mangas do vestido hospitalar e observou as bolhas deformadas nos braços. Era a sua carne que queimava.

Riu nervosamente jogando a cabeça para trás — e sentiu mais dor com tal ato. Chamas a devoravam de dentro para fora e ela simplesmente não se importava. Aliás, desejava que o fogo a consumisse rápido; seria um fim melhor do que ter o corpo comprimido pela sala.

O pesadelo terminaria quando o fim chegasse?

Acordaria em casa, na própria cama ou na de Matt?

Engoliu em seco e sentiu um calafrio percorrer a espinha ao lembrar do homem de terno que começou com tudo aquilo. Sim, culpa dele. Annie o viu voar pela sala vitoriana e derrubar a mobília.

Um barulho forte se rompeu atrás de si, mas foi ignorado.

“Teremos um pequeno papo mental”, ele dissera. Mente? Então ele estava em sua cabeça?

Ela não reparou que as paredes estavam com grossas rachaduras.

Annie ofegava, olhando diretamente para as bolhas. Culpa daquele homem. Ele entrara em sua mente. Agora precisava sair!

A sala branca se estilhaçou com um grito agudo. A estrutura virou pequenos pedacinhos de vidro flutuando devagar em um espaço negro. Sentiu-se em paz.

Asmodeus respirou fundo, ouvindo o ar rodopiar pela sua garganta até chegar nos pulmões — um costume, apenas; seu corpo não precisava daquele ar há muito tempo.

Sentiu algo quente escorrer de seu nariz. Sangrava.

Dois segundos depois percebeu que estava caído, não muito longe dela, apoiado no chão pelos cotovelos. Annie permanecia presa à parede e sua expressão demonstrava tanta surpresa quanto a dele. Os olhos exibiam um tom opaco e estavam inchados pelas lágrimas, enquanto os lábios tremiam sem parar. Ela acordara; havia saído da teia de ilusão que o Príncipe do Inferno tecera tão cuidadosamente.

O demônio não entendia como tudo tinha acontecido. A garota o havia expelido de sua mente como uma casca rebelde expulsa um anjo — repuxou os lábios com a comparação irônica.

Sabia que tinha ido longe demais com ela. O plano era criar uma boa impressão, mas Asmodeus criou um inferno na cabeça da morena, assim, por puro prazer. A dor o excitava.

Precisou apenas de um movimento rápido para se colocar na frente dela novamente. Segurou o rosto de boneca e encostou sua testa na dela, sentindo o corpo da jovem contrair com o toque. Estava tão perto que conseguia sentir sua respiração tão descompassada quanto os batimentos cardíacos.

Nada. Não ouvia nada vindo da mente de Annie.

Se aproximou mais. Poderia beijá-la se quisesse. Tocou-lhe a testa com dois dedos. Procurou aquela chama; queria vê-la gritar novamente; necessitava invadi-la só mais uma vez.

Vazia. Era como estar de frente para um cadáver! Simplesmente não conseguia colocar ou tirar qualquer coisa da cabeça da garota. Havia apenas o silêncio.

Ele soltou um grunhido frustrado.

Annie mal piscava. Quando o estranho a tocou, sentiu aquele pedaço de pele congelar. As mãos eram frias como todo o resto. Seu íntimo gritava, dizia que deveria pará-lo; não seria feliz enquanto aquele homem continuasse tão perto; ele estava arrancando qualquer vontade que ela tinha de viver, merda! Sua essência já se dissipava pelo ar.

— Não. — Sussurrou.

Os olhos escuros curiosos a encararam. De alguma maneira ela o pressionava para fora sem nem perceber. O pequeno coelho assustado estava se revoltando contra o predador. Bom, muito bom.

A moça sentiu seu corpo relaxar com um leve formigamento enquanto ele se afastava em passos lentos.

— Vinho?— Ele retirou uma garrafa esverdeada da única cristaleira que resistira em pé e apoiou duas taças na escrivaninha perto da porta.

Ela não respondeu. Os músculos ainda amoleciam e estava começando a sentir seus dedos. O estranho limpou o nariz com a manga do terno e despejou o conteúdo da garrafa lentamente, como se toda aquela loucura fosse cotidiana.

Ainda estou sonhando. Vamos, acorde, Annie.

— Sente-se. — A voz mantinha um tom cordial porém totalmente autoritário. A garota viu o sofá se mover em sua direção, mas não conseguiu imitar o gesto e continuou paralisada.

— Eu preciso ir embora. — Falou, nervosa. — Realmente... Preciso ir.

O homem bebericou o vinho após balançar a taça com delicadeza. Estalou os lábios em sinal de aprovação e apontou para frente.

— A porta é bem ali.

Annie abriu a boca em sobressalto. Era difícil acreditar que sairia facilmente dali depois de tudo que vivenciou.

Tropeçou nos próprios pés enquanto seguia para a porta, esgueirando-se próxima à parede, desviando de objetos aleatórios e olhando diretamente para o homem. Ele estava totalmente absorto tomando sua bebida, mas a morena correria o mais rápido que pudesse se ele se movesse. O que ela não esperava é que estancaria no lugar após uma única frase dele.

— Seus pais também estavam sempre fugindo. — Murmurou, mantendo a falsa cordialidade. — Os verdadeiros, sabe. Nunca contaram que você é adotada?

— Acredito que não há limites para o amor. David e Andrea Dinsmore me amaram mais do que aqueles que me deixaram no orfanato. Eles sim são meus pais verdadeiros. — Respondeu de forma automática, virando-se para encará-lo. Discurso pronto desde a infância. Sempre o usava.

E, agora, por que não estava correndo? A maçaneta está tão perto de suas mãos!

Asmodeus levou a taça à boca com um meio sorriso. Conhecia Annie o suficiente para saber qual era o seu calcanhar de Aquiles: a tão maravilhosa — porém totalmente mal estruturada, diga-se de passagem — família Dinsmore.

— Usaremos o termo biológicos, se preferir. Não tem curiosidade de saber sobre suas origens? — Já que não conseguia manter seus jogos, deveria ir direto ao assunto, o que seria tão divertido quanto.

— Não. — Respondeu, apoiando suas mãos.

Ela sempre coloca as mãos na cintura quando está irritada.

— O que eu sei sobre você atinge totalmente aqueles que você ama. Incluindo o pequeno Nathan e a atenciosa Marta.— Asmodeus gosta de falar pausadamente. Dá o toque exato de drama.

— Quem é você? O que quer?

— Agora? Conversar. Sente-se. — O sofá se moveu novamente com com um balançar de dedos. A garota o seguiu e se sentou com o rosto muito vermelho, mantendo os olhos arregalados.

Ela realmente acredita estar sonhando.

— Prometo que não lhe faltarei com a verdade. — Manteve uma curta distância dela. Uma mão ainda segurava a taça. — Creio que já mentiram muito pra você.

Annie passou as mãos nos cabelos, nervosa. Se sentia tão desprotegida. Quem era aquele homem? Bem, apesar da conversa louca, ele não era seu pai biológico, tendo em vista que não tinha muitos anos a mais que ela.

— Você acredita em Deus? — O questionamento antecedeu uma leve careta.

A jovem hesitou após a pergunta inesperada. Há anos atrás ela talvez respondesse com um sonoro “sim”, mas tudo estava tão diferente.

Durante dezesseis anos vira sua mãe fazer preces silenciosas antes de cada refeição e colar os joelhos no assoalho quando chegava a hora de dormir. Annie a imitava, sentia-se radiante após conversar com Deus, agradecia por ter sido abençoada com uma família tão boa e pedia — implorava — pela proteção deles. Mas Ele não a ouviu. Ele deixou seu pai morrer em um acidente horrível e a mãe padecer em meio a loucura.

— Acredito. — Respondeu, por fim. O fato Dele não tê-la ajudado ou a acalmado quando mais precisava não anulava sua existência.

— Consequentemente você acredita em anjos e em demônios, estou certo?

Uma pergunta que combinava com toda aquela loucura. Maravilha.

— Aonde você quer chegar? Não estou entendendo, eu... acho que você cometeu um engano.— O corpo pequeno se encolhia no sofá.

— Nunca estive tão certo. — Naquele momento ela aprendeu a odiar o sorriso dele: assustador, abrasador, congelante.

O homem gesticulou para a lareira e a acendeu.

— Causei um pequeno estrago por aqui. — Um quadro voltou para a parede sem ninguém colocar a mão nele. —Eu não sou humano, Annie, e seus pais também não eram.

— Quem. É. Você? — Ela soltou entredentes.

— Asmodeus. Encantado. — Não se ofendeu com a expressão curiosa de quem nunca havia ouvido o nome exótico. A educação religiosa andava falha até para anjos. — Vamos falar sobre a sua verdade.

Aos poucos a introduziu no que sabia sobre Eligor e Ariel. Estava sendo mais cuidadoso do que quando informou Sohfar, medindo as palavras e calculando até onde deveria ir.

Annie ouvia tudo assustada. Algumas vezes abriu a boca como se fosse interrompê-lo, mas apenas soluçava.

Quando terminou, bebeu o que restara do vinho e apoiou as mãos na escrivaninha para observá-la. Ao contrário do que imaginara, o escudo mental dela apenas se fortaleceu após descobrir suas raízes. Sim, Annie era muito interessante.

No fundo ela devia saber. Seu inconsciente não poderia ignorar a quantidade de poder que lhe corria nas veias. O demônio despertou de seus pensamentos quando notou o grunhido estranho que ela emitia. O riso da garota aumentou gradativamente até se transformar em gargalhadas altas e histéricas.

— Louco! Meu Deus, você... Você é um psicopata!

— E você sabe que é diferente. Está no seu íntimo, faz parte de ti. Vou esperar até que digira isso. Ainda não chegamos na parte que afeta a sua família. — Virou mais bebida na taça.

Ela demorou poucos minutos para parar de rir. As lágrimas voltavam a se formar nos olhos inchados. Provavelmente estava começando a encontrar sentido na própria história.

— O que você é? Um d-demônio?

— Se eu disser que sim, você, consequentemente, irá me confundir com um ser repugnante que faz garotinhas vomitarem. Sou bem mais que isso, Annie. Bem mais. Bem maior.

A morena fitou Asmodeus — ele tinha um nome, afinal — tão presunçoso e cheio de si... Totalmente o contrário dela, que se perguntava como ainda não havia acordado.

À primeira vista ele lhe pareceu um homem elegante e bonito, mas ela logo percebera que ele se assemelhava mais com algo não-humano; talvez pelos olhos frios e penetrantes, os dentes brancos e estranhamente afiados ou pela maneira que a encarava. Ela ignorara tudo isso, até o fato dele ter entrado em sua cabeça e destruído a sala.

Ignorou por um capricho ou coisa do tipo. Sabia desde sua adolescência que acreditar em algo que não fosse visível e palpável era como assinar sua entrada no CCR e ter o mesmo destino de Andrea.

É claro que, naquele momento, já não duvidava tanto da natureza demoníaca de Asmodeus. Ele é um louco, psicopata, cruel.

Porém isso não significava que ela também poderia ser algo bizarro. Caramba, Annie era humana até demais. Doava sangue frequentemente (um exímio e humano O negativo), se alongava dolorosamente ao acordar e teve cáries na infância; não possuía poderes, nem lançava teia pelo pulso.

Mas dentro de si uma coisa rugia — e não era fome. Sentiu um nó no estômago e uma vontade repentina de vomitar ao perceber que seu inconsciente queria questioná-lo, como se acreditasse em todas aquelas malditas mentiras.

— O que diabos você é? — Murmurou de cabeça baixa.

Ah, a pergunta. Repetida pela segunda vez naquela noite. E ele adorava respondê-la.

— Sou um dos sete Príncipes do Inferno. — Disse após morder os lábios. — Sei que me conhecer é uma grande honra para você. Está tudo bem, é recíproco.

Asmodeus levantou o queixo dela com os dedos, ouviu dizer que a garota herdara a cor dos olhos da casca do pai. Queria fitá-los enquanto continuava dissertando.

— Uma chantagem aqui, cabeças rolando ali e consegui saber o porquê de Abaddon estar tão quieto. Você. Ele estava te procurando, foi o que eu soube através de um de seus lacaios. Suguei mais informações e descobri muita coisa sobre Eligor e Ariel — Lançou mais um dos odiosos sorrisos antes de continuar falando. — Você disse que não existem limites para o amor. Será? É difícil acreditar que demônios possam amar, e eu realmente saberia se fosse possível. A Luxúria pode ser maior que vários amores! Ela está lá quando o marido trai a esposa; com a perda da pureza de uma virgem; quando o desejo é maior que o pudor. Você é o fruto dos desejos de dois seres opostos, fruto de uma luxúria sem fim e inescusável.

Ela fechou os olhos e virou o rosto para livrar-se da mão dele.

— O chefe de seu pai está lhe procurando. Esta é a parte perigosa. Abaddon é um ser cruel movido pelo ódio, pela destruição.

— O que ele quer comigo? — Ela não pretendia se envolver mais nessas loucuras, mas precisava perguntar, precisava saber.

— Na melhor das hipóteses, te matar.

— Essa é a minha melhor chance? Melhor da hipóteses?

— Acredite, existem coisas bem piores que a morte. — Sim, ela acreditava. Sim, já havia comprovado isso. — Eu sou sua melhor chance. Vou lhe proteger como puder.

— Você me machucou. — Concluiu lembrando do fogo que a queimava de dentro para fora. Ele deu uma leve revirada com os olhos.

— Eu produzo ilusões totalmente inofensivas. Você não está machucada de verdade. Estará, se Abaddon te encontrar.

— E se eu recusar sua proteção?

— Não estou realmente levando esta opção à sério. Você está?

A porta se abriu novamente antes que ela pudesse sequer pensar em uma resposta. Por ela entrou um rapaz alto, ruivo e com algumas várias espinhas pelo rosto; ele a olhou rapidamente e deu passos largos até Asmodeus.

— Desculpe, senhor, mas tenho uma informação urgente. — A voz dele era um pouco estridente e engraçada.

— Esta é Annie, Adam. — Asmodeus fez um gesto com os braços como um mágico que apresenta seu número.

O jovem a fitou novamente, dessa vez com olhar mais analítico e um sorriso malicioso que a deixou enjoada. Desligou-se da conversa dos dois por um instante. A porta estava aberta. A maldita porta que ela esperava que a levaria para fora daquele pesadelo, só precisava correr e atravessá-la...

— ... Morto? — A palavra girou ruidosamente na cabeça dela, o tom de surpresa de Asmodeus se parecia muito com o que sua avó usara na noite em que souberam do acidente que matou seu pai. “David? Morto?”

Ela correu os olhos pelo homem, a pose dele continuava impassível e a mão esquerda ainda segurava a taça, porém seus lábios formavam uma curva esquisita que ornava com as sobrancelhas unidas.

— Quem está morto? — Arranjou forças para a pergunta e para finalmente levantar-se do sofá.

— Preciso sair. — Alguém havia mesmo morrido? Ele continuava com a calma de um lorde inglês, totalmente irritante. — Abaddon agiu.

— Abaddon agiu? — Annie arfou lembrando-se das palavras de alguns minutos atrás, na melhor das hipóteses, te matar. — QUEM ESTÁ MORTO? Eu vou junto!

Asmodeus sorriu de lado. Humanos são previsíveis, sempre, e a garota estava agindo exatamente como ele queria. — Feche os olhos e eu te levarei.

Annie não pensou muito (era impossível pensar com aquele turbilhão de informações) e apenas obedeceu. Seu corpo foi imediatamente tomado por uma violenta pressão quando sentiu os braços do demônio ao seu redor. Não sabia se estava voando, correndo ou sendo teletransportada.

Conseguiu abrir os olhos após um punhado de segundos, em um ambiente diferente.

Reconhecia as paredes azuis que ela mesma ajudara a pintar num domingo qualquer, as prateleiras tortas, o quadro dos Lakers... rodou os olhos até a cômoda e se deparou com o próprio sorriso emoldurado acima da mesma; um braço a envolvia e, apesar da resolução não tão boa, ela reconheceu a primeira foto que tirou ao lado do namorado.

Matt.

Vislumbrou o demônio e o homem ruivo antes de rotacionar o corpo e ficar de frente para a cama.

Desejou não ter feito isso.

Desejou voltar para a sala branca onde era apenas ela e sua insanidade.

Desejou que o mundo explodisse.

— Amor? — Sussurrou, seguindo de forma lerda até a cama e, logo após, soltou um grito de horror.

Matt estava deitado de um jeito cômico. Os braços pareciam tortos demais e uma careta estampava o rosto. Os olhos ainda muito abertos, porém sem brilho; a boca arroxeada formando um pequeno “o” e a pele... ah, a pele, tinha todos os tons não-saudáveis possíveis, incluindo cinza e azul.

Ele também estava frio. Ela concluiu após tocá-lo.

E naquele instante o corpo de Annie Dinsmore desabou (junto com seu mundo) em cima daquele que nunca mais lhe faria promessas de amor. Sim, Asmodeus, existem coisas bem piores que a própria morte.

— Matthew? Amor! — Pranteava abraçada ao tronco do namorado. — MATT! Por favor, não, não... você não.

Não sabia se o tempo havia parado, mas tinha certeza que sim. Via e sentia apenas o vazio, suas entranhas haviam sido arrancadas junto com o coração. Matt não poderia estar morto, aquilo era irreal, inaceitável como a morte de David.

— Me escute. — Segredou perto dos ouvidos que nada escutavam. — Volte pra mim. Pelo amor de Deus, querido, sei que não é verdade... v-você não pode.

Por favor, só me abrace de volta.

Mas ele não a abraçou, não gesticulou, não falou. Apenas continuou parado. Morto. Como um boneco, como um nada.

— NÃO! — Gritou segurando a cabeça dele. O chão tremeu. — VOCÊ NÃO PODE ESTAR FAZENDO ISSO COMIGO, MATTHEW LEMON!

O quadro dos Lakers foi parar do carpete.

Virou-se para Asmodeus: — AJUDE-O! Droga, você não é um maldito Lorde de não sei das quantas? Traga-o de volta! Porra, traga-o de volta!

Asmodeus deu com os ombros fitando o objeto em suas mãos; primeira foto dos dois pombinhos. A Annie da foto com um casaco azul e olhar sereno não se parecia com a figura decadentemente bela, de maquiagem borrada e vestido judiado. As duas lhe agradavam.

— Eu te proíbo. — Sua língua enrolava e confundia as palavras. Ela beijava-lhe o topo da cabeça enquanto batia no peito nu dele. — Amor, você precisa estar aqui...

Uma prateleira atravessou o quarto.

— ... eu não vou conseguir...

A lâmpada explodiu em pequenas partes, deixando-os na penumbra.

— ... você é a minha salvação.

— Chega. Vamos acabar com isso, criança. — Asmodeus a enlaçou forte pela cintura e tocou sua testa antes que ela percebesse. Annie amoleceu em seus braços.

O Príncipe do Inferno gargalhou e virou-se para seu servo, Adam o olhava espantado.

— Qual o problema, Adam? — Já sabia da resposta, afinal, estava na mente dele, mas queria ter o prazer de corrigi-lo.

— A-Annie. Você... O senhor disse que ela ainda não podia fazer esse tipo de coisa.

— Eu disse, na realidade, que ela sempre pôde fazer coisas. Por favor, Annie é uma híbrida! Mas ela não sabe do que é capaz e não tinha motivos pra liberar os poderes. Agora tem. — Seus olhos passaram rapidamente pelo cadáver na cama. — A raiva e o medo são sentimentos fortes o bastante para servirem como válvula.

O demônio ruivo assentiu dando um leve pontapé em um espelho caído. Estava nervoso com tudo aquilo, mas completamente orgulhoso por ter escolhido o lado certo. Asmodeus tinha estilo.

— O corpo de Matt está gelado, seu anjo está sendo depenado neste instante e sua melhor-amiga-demônio é um brinquedo para aqueles tiranos. O que lhe resta? — Ele a abraçava com vigor enquanto sentia o que sobrara do cheiro do shampoo de amoras dela. Passou a mão na barra do vestido e sorriu como uma criança levada — Adam, providencie uma coroa de flores vermelhas para o velório. Matt adorava vermelho.

Asmodeus sentiu um leve formigamento de excitação. A garota inerte em seus braços significava uma nova era. Não se conteve em sussurrar-lhe nos ouvidos antes de outra gargalhada:

— E você, seus pais nunca te ensinaram que crianças não devem brincar com coisas mortas? Aliás, sou um maldito Príncipe do Inferno, não esqueça. Nunca se esqueça.

O grande plano estava finalmente começando.


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Notas finais do capítulo

Passou-se um tempo desde que o capítulo anterior fora postado, mas estamos de volta.
Espero que tenham gostado desse.
Agradecemos os comentários que recebemos até agora e desejamos mais. Sempre bom interagir com quem aprecia sua história, não é?
Até breve, pessoal.
Annie finalmente sabe quem ela é, e as coisas ficarão ainda mais complicadas.



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