Annie escrita por Allan Menezes, Kah


Capítulo 4
Ímpeto




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"Ninguém pode usar uma máscara por muito tempo”.

Lucius Annaeus Seneca


Annie se aproximava de Paul, cambaleando a cada passo que dava. Seu rímel, em parceria com suas lágrimas, formaram intensos borrões em seu rosto. O anjo se arrepiou assustadoramente quando a moça o tocou e disse algo que soou como Mattpassomal. El'desmaoh.

— Annie, vamos. — Paul disse.

Segurou no braço da menina e sentiu uma leve descarga elétrica percorrer seu corpo, enrijecendo seus músculos e inclusive fazendo Paul, o verdadeiro, despertar em sua mente por poucos segundos.

(Não, não, não. Volte a seu devido lugar.)

Soltou o braço.

— Paul, pelamorddeus! — Annie mal conseguia respirar.

Correu em direção a casa. Ao passar pela porta, sentiu uma presença demoníaca forte — seria, talvez, a mesma que Sheila sentiu no restaurante? — vindo principalmente de Matt.

— Morto. — Balbuciou para o nada, tocando a pele já um pouco gelada do rapaz.

Voltou à Annie, que parecia ainda mais chocada com toda a situação. Balançava as mãos nervosamente, olhando para o céu, ofegante como um cão que acabou de voltar de seu rotineiro passeio.

— Vamos. — O celestial disse.

E pôs dois dedos na testa da menina, fazendo-a desmaiar. A pegou no colo, posicionou o corpo sobre seus ombros e, dessa vez, sem descargas elétricas ou receptáculos acordando. Annie podia fazer coisas, sem dúvida. Descontrolada, então, talvez até mais.

Se transportou com seus poderes, na intenção de voltar ao casebre onde Sheila, felizmente, deveria estar; bem e viva.



Criptal — 24 de Outubro de 1993 — 06h05min

Ariel voltou à Criptal em grande estilo: vomitando. Eligor, seu fiel companheiro, agora possuía um senhor grisalho. César, cinquenta e dois anos, advogado e pai de gêmeas, Bianca e Berenice. Trai a esposa Sônia com Katarina, sua secretária.

Tal necessidade de trocar de corpo veio quando sua antiga casca — o rapaz boa pinta de olhos verdes — foi atingido por uma faca, bem no peito, por demônios que os encontraram em Thiwoo. Felizmente, seu bebê — feito antes dos fatos descritos — pode nascer com olhos cor-de-esmeralda. Lindo de se ver.

— Não aguento mais essa porra. — Ariel reclamou, limpando vestígios de vômito do canto de sua boca.

Eligor a olhou um tanto que assustado. A ira de sua amada apenas cresceu nesses cinco meses que passaram fugindo. Seria possível ela se tornar tão humana a ponto de perder seus poderes? Notável que quanto mais a barriga crescia, mais fraca Ariel ficava, tendo forças apenas para curar seu receptáculo. Ambos não aguentariam mais um ataque por parte de demônios ou anjos que os descobrissem.

— Annie está fraca, Eligor. — Ariel mostrou preocupação. — Se ela morrer, nosso bebê vai junto! Ainda acha uma boa ideia voltar aqui?

— Os distraímos por cinco cidades, Ariel. — Eligor parecia seguro. — Minha antiga casca está apodrecendo em Thiwoo. Isso nos dará algum tempo.

A testa de Ariel suava, enquanto seu estômago revirava ainda mais. Apesar disso, não aguentava mais ficar sentada.

— Vamos indo. Temos que achar um lugar. — Disse, com os lábios roxos.

— Você está mal demais. Descanse mais um pouco. — Eligor disse.

— Estamos em um maldito matagal, inferno! — Ariel gritou. — Vamos logo! Preciso de uma cama.

E dois raios caíram no horizonte, com o sol nascendo por entre as montanhas. Agora, uma leve chuva começara a ruir.

— Vamos. — Eligor disse, dando o braço para que Ariel se apoiasse.

Conforme Ariel vomitava, reclamava e gemia, a chuva aumentava, apesar de ambos não se darem conta de tal fato. A tempestade se formou em pouco tempo, resultando em um dos piores dias da história de Criptal.


▬▬▬

Apesar de estar infringindo centenas de regras, Paul não havia tido consequência alguma; até agora. Quando não conseguiu se transportar corretamente e teve de carregar Annie nos ombros, desacordada, por alguns metros, percebeu que alguém lá de cima já poderia saber de algo. O feitiço de ocultação de Sheila poderia não estar funcionando mais. E não estava.

Anjos haviam os encontrado. A essa altura, diversos Arcanjos, extremamente superiores a ele, já deveriam estar sabendo de tudo. Com isso, sua força na terra só tenderia a diminuir. Exagerado? Talvez. Mas Sohfar era assim.

Entrou na casa — com a leve Annie — e se surpreendeu com o fato de nada estar fora de lugar. O cheiro do incenso que Sheila acendeu para, de acordo com a mesma, "organizar as energias", ainda se mantinha no ar.

Colocou Annie no sofá — com cuidado; não queria que ela acordasse agora — e vasculhou o restante dos cômodos. Sem Sheila, sem anjos. Sem corpo, o que indicou que sua amiga não foi morta. Não ali.

— Onde estou?! — Ouviu, ainda no quarto.

Foi para a sala e os problemas começaram.

— Paul? Paul, onde estamos? Paul... Paul, o Matt! Ele está bem? Você chamou ajuda? Por que não me lembro de vir até aqui?! — Annie disse.

O anjo coçou sua barriga por cima da blusa preta e conferiu como Paul, o verdadeiro, estava. Adormecido. Porém, adormecido como uma memória velha, que se atiçada bem ao fundo, vem à tona rapidamente. E Sohfar não queria seu receptáculo tomando o controle, logo, deixou o homem em paz.

— Você precisa se acalmar. Matt ficará bem. — Paul disse.

— Tudo bem, mas onde ele está? — O desespero de Annie era perceptível na voz. — A ambulância chegou rápido? Ele foi levado ainda desmaiado? Paul, pelo amor de Deus!

— Matt está morto, Annie. — Ele não pensou antes de dizer. Apenas disse. Rápido, cruel. — Não tinha muito o que fazer por ele, você estava correndo perigo. Tive que te trazer.

Annie tentou dizer algo. Abriu sua boca, gemeu algo impossível de se decifrar e a fechou novamente.

— O quê? — Foi o que saiu, depois de longos segundos.

Paul respirou fundo e pensou no que falar. Primeiro, deveria acalmá-la. Ser o Paul, o melhor amigo dela desde sua chegada à Criptal, após a morte do senhor Dinsmore. Depois, deveria contar que ela é especial, que não sabe ao certo o que ela é, mas dizer algo bonitinho para complementar. Você pode mudar o mundo, talvez? Ou seria melhor você pode fazer o que quiser? Não importa. Ambas as frases são corretas.

— Isso é verdade? — Annie perguntou, após o silêncio de Paul.

O anjo assentiu com a cabeça, ainda procurando as palavras certas. Tinha que explicar tudo, desde o início, desde quando possuiu Paul contra a vontade dele — ato inadmissível nas leis angelicais — e sobre o que possuiu Sheila.

Exato. Sheila... Ainda tem a Sheila! — Paul pensou.

Um riso abafado de Annie o tirou de seus pensamentos.

— Você é um péssimo amigo. — A moça disse.

— Annie, eu...

Paul foi lançado contra uma parede e permaneceu nela, sem poder se mover. Havia um calendário ao seu lado, aberto bem no mês de Maio. Maio de 2014. Percebeu que estavam em Junho, e, logo, a folha antiga não fora arrancada. Em seguida, obrigou-se a focar no que acabara de acontecer. Aliás, o que diabos acabara de acontecer? Por que seus pensamentos estavam tão avulsos?

Annie permanecia na mesma posição. Nada gesticulou, nada falou durante um tempo. Paul inclusive pensou na possibilidade da mesma nem estar respirando.

— Annie? Annie, por favor, se acalme. É sobre isso que eu quero falar. Mas preciso que relaxe. — Paul disse, um tanto que assustado.

A morena começou a rir, mostrando seus dentes brancos com prazer. Em seguida, começou a cantarolar doentios tic-tac, tic-tac, tic-tic, tac-tac, enquanto dava passos na direção de Paul, em sincronia com a melodia. O rapaz começou a sentir seu peito (não tão seu assim) queimar.

— Seu tempo está acabando. — Annie assegurou. — E não se sinta privilegiado; Matt vivenciou exatamente a mesma coisa.

Mais quente, mais quente.

— Fique calma, por favor! Está me machucando! — Paul implorou.

— CHEGA! — Annie gritou.

O anjo iria dizer mais alguma coisa, porém se engasgou. Tossiu duas, três, quatro vezes e sangue começou a escorrer de sua boca.

— Você enxerga tão pouco! — Agora ela andava de um lado para o outro, com ar de palestrante. — Está preso em uma parede, com sua traqueia sangrando, e tudo é culpa de sua inocente amiga, que pode mudar o mundo, que pode fazer o que quiser?

Sohfar por um momento sentiu Paul despertar em sua cabeça. Sentia sua traqueia arranhada, terminava de cuspir o sangue e não conseguia raciocinar. Apenas não conseguia. Ouviu Annie dizer que Matt vivenciou a mesma coisa, mas não chegava a conclusão alguma.

Isso porque Annie não era a única que podia fazer o que quisesse. Asmodeus também podia. E ele também fazia questão que Paul, Sohfar, seja lá quem fosse, entendesse apenas o que ele queria.

— Espero que compreenda melhor dessa forma. — Annie disse. Última frase com a voz doce da moça.

Se aproximou do amigo e fechou seus olhos, abrindo-os dois segundos depois. Negros como a noite. Um homem de terno e gravata apareceu no lugar da jovem, quase que ao mesmo tempo. Seu cabelo liso e castanho, bem escuro, combinava perfeitamente com o todo.

— Asmodeus. Príncipe do Inferno. O prazer é todo meu.

O Príncipe do Inferno fixou os olhos em Paul e depois em uma mesa próxima ao único quarto da casa. Em poucos segundos, Paul se viu sangrando em cima do que restou do objeto.



Criptal — 24 de Outubro de 1993 — 14h25min

Eligor retirou a faca do corpo da mulher, com as mãos tremendo. Por sorte do destino Ariel sangrou no objeto, que, ao ser penetrado em dois demônios que invadiram o barraco, os matou instantaneamente. Se fora obra do sangue de Ariel ou sangue do bebê, eles não sabiam. Mas os demônios, sim, estavam mortos.

— Servos de Abaddon, como eu. Ele já sabe de nós. — Eligor ainda tremia, limpando o sangue de suas mãos na calça saruel de sua casca.

Ariel, por sua vez, estava pior do que antes. Parecia vomitar a cada segundo, com sangue presente na massa pastosa quase sempre.

— Sou eu que estou causando isso, Eli... — Ariel disse, tão baixo que Eligor quase não ouviu.

— Fazendo o quê? — Perguntou confuso.

— A tempestade. Sou eu e o bebê. Isso vai mudar tudo, Eligor. — Ariel parecia assustada. — Eu sinto que sou eu. Eu sinto que a chegada de nosso filho será um marco.

Eligor suspirou e foi à cama, onde sua amada agonizava. Deitou a seu lado e segurou em sua mão.

Nós somos um marco, Ariel. Nosso bebê, Eligor ou Annie, só reforçará o fato de que não há limites para o amor. — O demônio disse. — Só não podemos chamar mais a atenção.

Ariel parecia não reconhecê-lo, devido a sua nova casca. Mas, sabia que Eligor estava ali, detrás do cabelo grisalho e da barba rala. Eligor, o único demônio-humano que conhecera. Eligor, o demônio que a amava.

O fitou por alguns segundos, calada, até que sentiu o lençol embaixo de si molhar. Suas pernas também sentiram o líquido escorrer.

— Só não posso prometer a parte de não chamar a atenção. — Ariel disse. — Estourou, Eligor. Estourou nesse maldito barraco!

E as terríveis contrações começaram — três meses antes do previsto.


▬▬▬

— Quando cheguei à Criptal, atraído provavelmente pela paixão de Annie por Matt... — Asmodeus falava com uma dicção perfeita. — Oh! Não lhe devo explicação alguma.

Paul tentou se levantar, devagar, mas com um estalar de dedos do bem-vestido-homem, foi parar do outro lado da sala, arrastado pelo nada.

— Desgraçado, pare! — O anjo disse, limpando sangue do canto de sua boca.

Voou na direção de um quadro, pendurado acima do sofá, o derrubando. Caiu em cima do estofamento amarelo, mais dolorido do que antes, com um quadro leve sobre as costas.

— Você sabe que Sheila ter sumido é sua culpa, não sabe? Você deixou um demônio nas mãos de vários tiranos de sua raça. — Asmodeus parecia saber de tudo. E sabia. — O mais irônico, é que Eligor fez exatamente a mesma coisa, tirando o fato de que a amada dele era um anjo.

Paul se sentou, ainda no sofá, com uma dor indescritível no ombro esquerdo.

— O que está dizendo? — Perguntou.

Asmodeus franziu a testa.

— Meu caro, não acredito que... — Gargalhou antes de continuar falando. — Vocês realmente não fazem ideia do que tinham em mãos, não é mesmo?

E eles realmente não faziam. Quando Sohfar possuiu Paul — assim que Annie e Matt se beijaram pela primeira vez — descobriu que a melhor amiga da jovem, Sheila, também estava possuída; porém por um demônio chamado Emily. Ambos se deram conta da energia que Annie emanava estando apaixonada. Mas nunca entenderam o porquê foram atraídos por isso. E o mais perigoso, talvez: nunca souberam o que Annie é de verdade.

Sheila disse que os feitiços dela não atrairiam mais criatura alguma! Eu sacrifiquei muita coisa por isso! — Paul pensou.

— Se um sacrifício traz mais tristeza que alegria, ele não deve ser feito. Você não é digno dele. — Asmodeus disse.

Paul arregalou os olhos, tentando falar algo, mas não conseguindo.

— O que diabos você é?! — Foi o que conseguiu gritar.

— Eu já me apresentei. — Asmodeus disse. — Sou um dos príncipes do inferno. Um demônio com poderes mais legais, entende?

— Você não deveria ter tanta influência sobre um anjo! — Paul protestou.

Protesto este que fez Asmodeus gargalhar novamente por alguns segundos. Terminou o ato gesticulando com a mão direita e fazendo o jovem expelir mais sangue pela boca.

— Você é fraco, Sohfar. Posso fazer o que eu quiser, mas não acabo com sua casca, porque, se tudo der certo, e dará, Annie precisará de um amigo. De preferência influenciado por mim.

Paul cuspiu mais sangue antes de perguntar.

— Quem é Eligor? Há quanto tempo sabe de mim e Sheila? Há quanto tempo quer Annie?

— Nenhuma ofensa que proferi até então foi em vão. — Asmodeus coçava sua barba mal feita com vontade. — Vocês caíram de cabeça no projeto Annie sem ao menos pesquisarem sobre. Tolos. Por isso estou passando por cima de você, assim como aqueles anjos passaram.



Criptal — 24 de Outubro de 1993 — 15h15min

Eligor correu até o hospital da cidade. Viu muitas ambulâncias chegarem, trazendo pessoas vítimas da tempestade que assolava o lugar. Viu uma mãe gritando, desesperada, devido à morte de seu filho. Pouca visibilidade, pessoas dirigindo. Um acidente fatal. Viu uma enfermeira, provavelmente com uns trinta anos e sentiu que ela seria útil. A seguiu até o estacionamento, onde a ameaçou. Ariel não podia ir ao hospital. Maria precisava ir até ela.

— Você planeja que seu filho nasça aqui?! — Maria perguntou, perplexa. — Só temos uma cama e um fogão à lenha.

— Uma cama onde minha esposa está e um fogão onde você estrilizar tudo, não é o que falam? — Eligor foi frio. — Já arrumei tesoura, panos limpos, temos água potável, sabonete e a maldita bacia. Agora faça!

Maria fitou Eligor e a faca que ele portava em uma de suas mãos. Olhou a calça suja de sangue e um balde, cheio de vômito. Umedeceu os lábios, um pouco nervosa.

— Qual seu nome, querida? — Perguntou.

— Ar... Ariel. — O anjo respondeu ofegante.

Mais uma contração. Contração esta que fez metade das plantações da zona leste de Criptal secarem completamente.

— As dores das contrações são normais. A partir de agora, vamos cronometrar. — Maria disse. — Se virem de dez em dez segundos, com intervalos de cinco minutos, teremos que te levar ao hospital.

— Ela vai ficar aqui, não entendeu?! — Eligor gritou.

Maria fechou os olhos, assustada com o berro. Respirou fundo e pegou uma pequena maleta que trouxe consigo. Retirou luvas e pediu ao pai nervoso da criança que fervesse água. Lavou as mãos e braços com sabonete, antes de calçar o par de objetos borrachudos. Em seguida, ficou de joelho para Ariel, pediu para que ela abrisse as pernas e verificou quantos centímetros de dilatação. Cinco.

— Estamos no caminho certo. Mas precisamos de mais cinco desses para que tenhamos um bebê. — Disse em um tom calmo, tentando deixar Ariel o mais confortável possível. — As contrações virão fortes, incomodarão, mas são necessárias. É seu bebê chegando. Já temos um nome?

— Não temos nem um sexo. — Ariel disse, respirando com dificuldade.

Maria assentiu com a cabeça.

— Certo. Precisamos trabalhar agora é nessa respiração. Inspira e expira, inspira e expira, inspira e expira, devagar, vai...


▬▬▬



Pela primeira vez, Paul tentou reagir. Focou nos cacos de vidro no chão, os fazendo voarem na direção do príncipe do inferno. Os objetos foram parados no ar e voaram em outra direção, tudo enquanto o homem alisava seu terno. Sem dificuldade.

— Fingirei que nada aconteceu, para o bem de nossa conversa. — Asmodeus disse, em um perfeito tom de ironia. — Eligor chegou à Criptal em 1993, com uma leva de doze demônios. Mandados por Abaddon, um cavaleiro do inferno com o qual tenho problemas. Em resumo: Eli se apaixonou por um anjo, Ariel. E in ou felizmente, eles tiveram um bebê. Um milagre, para Inferno e Paraíso. Após isso, foram assassinados.

— Isso é ridjículo! — Sangue atrapalhou o anjo. — Está insinuando que Annie é filha de um demônio com um anjo? Que tipo de demônio procriaria? Mesmo com um receptáculo, é impossível!

— Você é um descrente, por isso está babando sangue. Annie é uma híbrida, Sohfar. Um milagre. Uma verdadeira arma. Vocês a viam como vantagem para um provável objetivo, sendo que ela é o objetivo. — Asmodeus disse cada palavra com prazer. — E quando ela aceitar o que é, quando estivermos lado a lado nisso, as coisas se acertarão.

— O que quer dizer com se acertarão? — Paul disse. — E isso é loucura. Mesmo que seja verdade, Annie nunca largaria a mãe dela, a avó, o irmão, inclusive os amigos, para embarcar em algo a seu lado.

Asmodeus explorou um bolso de seu terno até achar uma plaquinha prateada. Uma identificação. Jogou o objeto em cima de Paul.

A. Sudamöes

— Sobre amigos e família, creio que estou trabalhando bem. Sobre o pobre Matt... — Ele fez uma pausa. — Antes de ferver seu coração, o dei bons minutos de prazer.


Criptal — 25 de Outubro de 1993 — 02h55min

Foram doze horas e trinta minutos de trabalho de parto. Doze malditas horas de contrações, tempestade e transtornos em Criptal. Doze horas e trinta minutos de gritos e vômitos (que nem deveriam estar presentes). Onze horas e quarenta minutos que Maria foi, em tese, sequestrada e a única coisa que comeu fora bananas, junto com o pai e a mãe do bebê que viria. Cinco horas que Maria ficou ainda mais chocada, ao descobrir que o bebê viria ao mundo com apenas seis meses de gestação e, com razão, tinha medo de que ele não sobrevivesse.

— A próxima contração vem em vinte e cinco segundos. Quando vir, force o máximo que puder! — Maria disse. — Rapaz, pegue a bacia, traga mais água quente e os panos, vamos!

Eligor assim o fez.

Ariel berrou. Nova contração.

— Force, force!

(Force, force, force, force, force, force, force, force).

Eligor se sentia tonto. Talvez a energia que Ariel emanava — e que, de acordo com ela, estava causando aquela tempestade — também estava o afetando. Ou só deveria ser o nervoso pois...

— Force, já estou vendo a cabecinha dele!

... em pouco tempo ...

— Force, force!

... ele seria finalmente ...

— Isso, está vindo, está vindo!

... pai.

Nasceu às 03h00m. Chorando, saudavelmente. Maria sentiu os pulsos do cordão umbilical, cortando quando o pode. Foi responsável em relação ao “estrilizar” de Eligor. A placenta veio para a bacia com poucos movimentos. Envolveu a pequena Annie em uma manta cosida especialmente por Ariel e a entregou para a mãe.

— Parabéns pela menininha. Ela me parece normal, apesar de prematura. É realmente impressionante. — Maria disse, com as luvas sujas de sangue afastadas de si mesma.

Eligor mal ouviu. Foi até sua “esposa” e sua filha. Não reparou quando Maria revirou seus olhos brancos e saiu pela porta, sorrindo.

— Ela é linda... — Eligor disse, fascinado. Os olhos cor-de-esmeralda estavam ali!

Ariel já amamentava a pequena Annie.

— Não sinto mais nada, Eligor. Eu disse que ela seria especial. Sinto minha força de volta e posso deixar meu receptáculo bem. — Ariel disse, satisfeita. — Mas precisamos chegar a um acordo.

Maria voltou ao local rapidamente, sem que eles mal percebessem sua saída. Trouxe com ela mais dois anjos. Ambos homens, barbudos e feios.

— O que diabos?! — Eligor gritou.

— Estamos em pequeno número, mas Abaddon e a legião de Hael já estão sabendo do nascimento. — Maria disse, com olhos brancos assustadores em sua face. — Essa garotinha não é o único impossível de vocês. Conseguirem inclusive unirem legiões de demônios e anjos.

Ninguém nada disse. A enfermeira/parteira continuou:

— Foi um prazer trazê-la ao mundo. Será um prazer tirá-la também. Aliás, qual será o nome de nossa princesinha?

— Annie. — Eligor disse.

Tirou sua faca de seu bolso e a banhou no sangue da placenta, na bacia. Voou longe, sem nada conseguir fazer. Ariel reagiu e, ainda na cama, conseguiu lançar os três anjos contra a parede. Eligor então lançou a faca em um dos homens. Não morreu como um demônio faria, mas os olhos brilhavam, enquanto permanecia imóvel. O sangue da recém-nascida também fazia efeito em anjos.

— Pegue Annie, agora! — Ariel gritou.

Eligor foi até a filha, enquanto a amada dominava os anjos.

— Já é o suficiente. Leve Annie daqui. Deixe-a em algum lugar seguro e depois vamos até ela. — Ariel disse.

— Eu não vou te deixar sozinha com eles! — Eligor protestou.

— É SOBRE A SUA FILHA! — O anjo gritou. — Não é sobre mim, não é sobre você. Leve-a daqui. Agora!

Eligor assim o fez. Quando passou pela porta, Ariel o chamou novamente. A moça pediu ajuda para retirar seu colar prateado — já que com uma mão prendia dois anjos desgraçados — e o colocou por entre a manta do bebê.

— Esse é o amuleto da sorte dela. — Concluiu.

Eligor beijou a amada e saiu com a filha. Estava confiante demais para idealizar que aquele seria o último beijo do casal.


▬▬▬

Paul finalmente idealizou que pelo menos boa parte das coisas que ocorreram, foram realizadas por Asmodeus. Então, ideias que ele nunca havia pensado começaram a surgir em sua mente. Lembranças. Memórias.

Um dia bonito no parque; quando foi enviado para a terra; o primeiro beijo; quando possuiu aquele receptáculo; o seu melhor dedo; as horas que passou no restaurante Lemon e então, escuridão. Quando Sohfar se deu conta, seus pensamentos estavam completamente mesclados com o de Paul. Quando se deu conta, não estava mais ali. Paul sim.

— Olá, jovenzinho. Olhe bem para mim. — Asmodeus disse, se aproximando de Paul.

O pegou pelo pescoço, fazendo um contato visual agoniante.

— Vamos expulsar esse anjo juntos? Antes de mandá-lo de volta aos céus, avise que os superiores dele cuidarão melhor desse caso. — Asmodeus mantinha um leve sorriso em sua boca. — E então, você vai ver só preto. Preto. Preto.

Paul olhava assustado para aquele homem, não fazendo ideia do que estava acontecendo ali. Também não conseguia emitir som algum.


Criptal — 25 de Outubro de 1993 — 03h15min

Eligor se transportou com seus poderes — que pareciam ainda mais fortes na presença de sua filha. Passou pela praça da cidade e viu o melhor vegetal de tronco lenhoso. Lá estavam demônios, parados, ele podia sentir, mesmo de longe. Talvez aquela pequena bola rosada o fortalecesse?

Andou alguns metros e viu uma grande casa. Uma placa ao lado identificava o lugar.

Orfanato Santa Maria

Chegou até a porta, com raios caindo em toda Criptal. A chuva, pelo menos, havia cessado. Apenas tempestade elétrica. Ouviu gatos miarem, sentiu o frio intenso que ainda castigava a cidade. De algum modo, conseguiu se conectar à mente de alguém, chamando essa pessoa até ali. Obra também de Annie, talvez?

— Eu te amo, meu amorzinho. E voltarei por você. — Disse, beijando a cabecinha com poucos fios de cabelo da menina.

Confirmou a presença do colar prateado — e amuleto da sorte — indicando o nome da pequena e se retirou. Observou de longe quando uma adolescente abriu a porta e ouviu o choro de Annie, alto e até um pouco irritante. Suspirou e se virou.

Voltou ao barraco e encontrou Annie, o receptáculo de Ariel, sem o anjo dentro. Ao invés de olhos, buracos vermelhos e sangrentos estavam no lugar. O peito também sangrava e havia queimaduras por todo o corpo.

Não precisou pensar muito. Lembrou-se de quando a amada disse que anjos podem morrer por um feitiço, que mata o receptáculo junto a ele. As características de tal ato eram inconfundíveis. Ariel definitivamente estava morta.

— Não... Não! — Gritou.

Virou-se e viu um rapaz loiro, com olhos azuis enfeitiçantes. O homem portava um sorriso malicioso, assustador. Eligor sabia quem era.

— Abaddon?

E então viu uma faca nas mãos do sujeito. Uma faca com aquela escritura jamais nomeada, mas que proibia a retirada de qualquer criatura maligna de um corpo. Depois, só viu preto.


▬▬▬

E vai esquecer-se de tudo. Sua última lembrança será daquele restaurante, quando era realmente você, quando esse tirano alado não estava lhe controlando. — Asmodeus concluiu.

Preto. Preto. Preto. Esquecer. Preto. Esquecer.

Paul não viu mais preto. Levantou-se do sofá, percebeu que estava sozinho em um lugar que ele não fazia ideia de onde era. Jurou ver uma luz branca saindo pela janela, sob a luz da lua, mas sua cabeça rodava. Provavelmente passou da conta na hora de beber, apesar de só se lembrar de estar com Sheila e Annie, no restaurante Lemon. Sem Asmodeus, sem sangue, sem dor.


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Notas finais do capítulo

Terceiro capítulo dos três que julgamos necessários para entender o todo.
A partir do próximo capítulo, com os flashbacks agora finalizados e a história do nascimento de Annie contada, focaremos em seguir com o enredo. Esperamos que vocês gostem.