Cidade Zero-Hora escrita por Yellow


Capítulo 4
Junto as Almas Perdidas


Notas iniciais do capítulo

- Olá, pessoinhas! :3. Tudo bem? Espero que sim, realmente.
—Aqui está o capítulo 4, espero que gostem e comentem



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A noite chegou à cidade com a mesma velocidade de todos os dias.

Ian lastimou-se por não perceber. Esteve o dia inteiro junto a Tália, que o levou para andar pela orla e para resfriar a cabeça. Ficou receoso em contar sobre a mulher com olhos de cobra, ou os sonhos estranhos, então resolveu ficar calado. Depois seguiram o passeio para uma praça qualquer, sem objetivo específico. Rumavam para o nada, como jovens desocupados, o dia inteiro. Voltaram quando a tarde chegou a fome abateu-se sobre os dois.

Depois de voltarem para comer, Ian ficou deitado no sofá de Tália, com os olhos quase fechados. Não queria pegar no sono e acordar apavorado na casa dos outros, ainda mais quando Tália estaria ali para rir.

Quando Tália voltou, estava com outra roupa, pronta para sair. Ian então percebeu que havia realmente dormido.

Sem sonhos ruins dessa vez.

Ficou contente com sigo mesmo, e logo olhou no relógio. Eram oito da noite, faltava apenas meia hora para o início do show. Pegaram uma condução em um local deserto. Sua mãe costumava falar que aqueles pontos de ônibus da cidade faziam muitas vítimas nas noites , mas nunca foi algo que deu muita atenção. E pensar no conselho da mãe, o fez refletir e se perguntar se eles já haviam chegado. Tentou ligar para o pai, mas ninguém atendeu o telefone.

Ver o ônibus vazio deixou Ian feliz.

— Vazio! —Tália comemorou depois de entrar. Empurrou Ian levemente com as mãos, fazendo sinal com o queixo no lugar que ela escolheu minuciosamente sentar. — Lá.

Ian viu o banco alto, mais elevado de todos. Foi se equilibrando e passando pelas barras, que não lhe davam confiança alguma. Sentou-se ao lado da janela, o vento noturno contra sua face.

Sentia algo estranho pelo corpo inteiro, não era a somente a sensação pré-evento. Tália sentou-se ao seu lado.

— Pela décima quinta vez, o que você tem? — perguntou. Ian sentiu ela esbarrar nele com seu ombro rijo. Tália vestia-se com roupas escuras de noite, presilhas prendiam a lateral do cabelo cacheado. — E não ouse falar nada novamente.

Ian viu a beleza âmbar dos olhos dela perto, aqueles olhos que já fora apaixonado um dia.

— Eu não estou muito bem. — admitiu. Desde o começo da tarde Tália estava inquirindo sempre a mesma coisa, mas Ian sempre desviava o assunto, e, quando não o fazia, dizia que era impressão dela. — Só me sinto um pouco… estranho. Deve ser azia.

Tália revirou os olhos no mesmo instante que sorriu.

— Vou fingir que é azia, apenas para não torrar minha noite te perguntando. Se não quer falar, Ian Vilanova, não vou te obrigar.

— Você usou meu sobrenome. — disse, com ironia na voz. — Deve estar bem curiosa mesmo.

Tália rangeu os dentes e virou o rosto. Ian detestava mentir para ela.

Levi e Alex chegaram ao show no momento exato.

Era em um salão antigo e espaçoso. O mágico Fantastíc era um homem excêntrico, e isso era claro. Todos os cartazes tinham detalhes de fotos dele, um homem barbudo com um lenço tampando os cabelos, que escorriam, ralos, pela lateral da face esticada. A barca circulava o rosto, o bigode um pouco espalhafatoso acima dos lábios sorridentes.

Quando chegaram, Alex deixou Levi ausente por minutos. Se distanciou para trocar poucas palavras com o pai, que o esperava ao fundo do salão. O pai de Alex era um homem esguio, assim como o filho, de cabelos cacheados e cavanhaque rasteiro. Os olhos eram do mesmo tom dos de Alex, escuros como o mais torrado dos carvões. Levi sempre soube do processo de abandono de Alex, por parte do pai. Dez anos depois o senhor América resolveu voltar, tentando comprar Alex com suas vantagens e benefícios de sua fortuna repentina. No começo, Alex era muito receoso a respeito do dinheiro do pai, achando que era sujo. Com o tempo se acostumou, e aceitou o pai, mas nunca desprezou a mãe, que sempre o amou, mesmo nos momentos mais difíceis dos dois.

Levi sentiu uma agulhada no peito quando via cenas como aquela. Alex abraçou o pai, antes de se despedirem. Queria fazer o mesmo, mas, quando Levi chegava perto de Fernando, o pai se afastava.

— Vamos. — Alex disse, quando voltou. Os bilhetes de ambos em sua mão, ele os abanava contra a face.

Seguiram por um corredor, junto a outras pessoas desatentas. Levi sentia cheiro de pipoca, refrigerante e goma de mascar sabor morango por todo local. Crianças derrubavam suas porções de aperitivos, e algumas mais porcas pegavam do chão para comer. Levi sentiu aversão, cutucou Alex, e o amigo já soube o que queria dizer no mesmo instante.

— Que nojo! — Alex falou, apôs uma garota rechonchuda pegar a pipoca caída no chão. A mãe protestou, mas de nada adiantou.

O corredor acabou no auditório espaçoso. Cadeiras almofadas posicionadas em forma de coliseu fazia Levi se perder. Achou um lugar afastado, onde poucas pessoas sentavam. Sentou-se ao lado da parede, com Alex ao seu lado, o prendendo sem intenção. A sala estava apagada, e as paredes acústicas de veludo transmitiam o silêncio que estava ali. As vozes das pessoas eram baixas, sussurros praticamente.

Um homem enorme e corpulento apareceu de onde Levi não coube explicar. Os ombros eram tão largos que Levi duvidou que ele ocuparia apenas uma cadeira. O homem sentou-se na frente de Levi, que o tapando a visão por completo. Tinha feições broncas, lábios e traços quadrados e arrebitados. A cabeça raspada exibia cicatrizes incotáveis, e Levi perdeu segundos pensando como ele teria adquirido aqueles cortes. Uma voz frote o tirou da viagem mental.

— Senhoras e senhores! — anunciava uma voz metálica, nos alto-falantes bem posicionados. O som parecia sair de todos os lugares e de lugar nenhum ao mesmo tempo. Tambores rufaram, o coração de Levi acompanhava as batidas. — Agora, com vocês, Fastastíc, o maior ilusionista do mundo!

As poucas luzes se apagaram por completo, deixando o salão em breu total por segundos. Logo as luzes do palco se acenderam, iluminando apenas a figura reta no centro. Mais tambores com a aparição súbita da figura de terno preto.

Palmas sacudiram a plateia, e, apesar de parado, Levi via Alex se divertir ao seu lado.

O mágico usava a clássica cartola sobre a cabeça, mesmo os cabelos já estando presos com um pano. Ele levantou o rosto, passou as mãos com luvas brancas pelos olhos. Fixou os dedos lá por segundos, parecendo apertar a própria vista. Quando retirou, os olhos já não estavam mais ali. A face era lisa, apenas boca, nariz e barba. A plateia foi ao delírio. Confetes saíram do chão do palco e voaram em direção ao teto, caíram lentamente, dando a vaga lembranças de estrelas.

Levi sentiu algo passando por todo o corpo. O mundo a sua volta pareceu tremular, como uma imagem falha de televisão. Olhou para todos os lados, viu Alex desaparecer e aparecer ao seu lado, de um instante para o outro. Sentia as gostas de suor frio molhando-o por completo, escorriam por todo o corpo. A cabeça começou a pulsar, as têmporas a ponto de explodirem. Se ajeitou na cadeira, deixando a coluna ereta. Uma memória veio a tona, lembrando da primeira vez que se sentira daquele jeito.

Foi logo após o incidente na escola. Patrícia havia decidido que estava na hora de procurar ajuda para o filho. O levou em um psicólogo. Levi nunca se esqueceu da consulta com o homem de cabelos grisalhos e olhar cerrado, que parecia mais infeliz que ele mesmo. Praticamente fez um monólogo com si mesmo, o homem apenas anuía e dizia para prosseguir, anotando tudo em seu caderno no colo.

No final da consulta, Patrícia pôde entrar no consultório. Estava aflita, cruzava os dedos e não controlava o reflexo de estalá-los a todo instante.

— Seu filho precisa disso. — o doutor dissera, empurrando para ela uma lista com um turbilhão de letras confusas.

Patrícia analisou os componentes, era uma enfermeira, conhecia os remédios ali citados.

— Você só pode estar louco. — esbravejou, de súbito. — Não pode me dizer que tenho que dar um tarja preta para uma criança! É loucura!

Ela rasgou o papel. O médico trincou os dentes. Eles levantaram, ficaram se encarando por segundos. Patrícia pareceu se arrepender do que fez, uma de suas mãos correram para o ombro do doutor, que não retrocedeu.

O olhar da sua m~e era fixo, penetrante.

— Agora me diga, quem precisa desses remédios? — Os dedos longos e finos apertaram-se contra o ombro do médico.

O psicólogo engoliu em seco.

— Ninguém. — disse, por fim.

E a sensação de ter seu corpo exposto a algo invisível, mas que o acertava por todos os lados, o dominou. Levi sentia-se nas nuvens, mas em uma turbulência que o agitava por dentro. Podia sentir cada fio de cabelos se eriçando, a coluna tremia, parecendo querer sair das próprias costas.

A mão de Alex afagou seu ombro, forte, o puxando de volta para a realidade trêmula.

— Cara. — Alex disse mais palavras, mas Levi não as ouvia. No palco, Fantastíc girava a cartola em seu indicador, sem a deixar cair. Parou, um coelho escapou de dentro, fazendo o público suspirar. — Meu pai disse que eles colocam algo no ar, para deixar as pessoas mais risonhas. Você deve ser alérgico, sei lá. — Levi olhou para Alex novamente, e viu seus olhos de forma estranha. Tinham a parte branca na cor oposta, e as pupilas em cor branca.

Piscou forte.

— Eu estou bem. — mentiu.

— Não, você literalmente não está bem. Vá lá fora tomar um ar.

Levi acatou a sugestão de Alex como uma ordem. Se levantou, ignorando as pessoas gritando sobre o fato dele estar na frente. Correu, esbarando em pés e pernas, sem olhar para a cara dos donos. Antes de sair, observou Alex, sentado, olhando para ele, ao longe, preocupado. O homem corpulento se levantou logo sem seguida, seus olhos amarelos brilhando na sala escura.

Olhos de serpente.

Levi saiu antes de desmaiar no meio do público.

Ian e Tália chegaram alguns minutos atrasados, mas nada que comprometesse a noite.

O show dos Deltas havia estava prestes começar, e eles assumiriam o palco principal, sem outra banda para se apresentar depois, sendo assim, teriam duas horas de show, apenas par eles. O salão onde ocorria o evento era amplo e escuro, e, mesmo com um enorme palco montado ao fundo, Ian ainda sentia falta de algo mais ali, algo deixava o local vago. Fumaça densa brotava de todos os lugares, tinha cheiro mentolado e agradável de se sentir.

Ouviram o anúncio alto, faltava apenas três minutos para o show dos Deltas.

— Deltas. — Ian repetiu, apoiado no balcão onde vendiam as bebidas. O garçom o abordou, um sujeito boa pinta e todo tatuado. — Um energético. — solicitou. Voltou-se para Tália, que estava ao seu lado. — Não é a banda do Daniel?

— Sim. — Ela anuiu, virou-se para pegar o copo cheio de bebida que a menina atrás do balção entregara a ela. Uma bebida azul densa jazia dentro, uma fumaça de gelo seco exalava de dentro. — Com quem mais acha que eu consegui esses ingressos?

— Você é rica, poderia ter os comprado sem problemas. — Ian pegou o seu energético no balcão. Por enquanto ficaria com aquilo, era muito cedo para começar a beber, não tinha um fígado de ferro como o de Tália. — Além do mais, ele nunca foi muito de falar com a gente…

— Realmente, ainda acho que ele te odeia. — ela disse, sorrindo. Bebeu um gole de seu drinque, e voltou estalando os lábios. — Mas, ultimamente, ele não tem sido tão indiferente a mim. Conversamos umas cinco vezes pela internet e uma pessoalmente, quando ele me deu os ingressos.

— E então? — Ian inquiriu, bateu levemente no ombro dela, com um sorriso malicioso à face.

Então o quê? — Tália revirou os olhos. — Ele é apenas um conhecido, e não parece interessado em mim, assim como eu não estou interessada nele. Não vai rolar nada, é apenas a miníma consideração. Estudamos juntos desde a sexta série, e você sabe porque também estudava conosco. Acho que ele se arrepende de nunca ter falado com nos antes.

— Tanto faz… — Ian desdenhou.— Ainda acho um pouco estranho, ele se aproxima do nada. Você conhece muito bem a fama dele…

— Sim, eu conheço. Vou transar com ele e ter seis filhos. — ela ria da situação. Ian estava constrangido ao falar isso com ela, era visível. — Pelo amor de Deus, Ian, olhe o que está me falando...

— Eu sei, te conheço tão bem quanto você mesma. — Sua voz falhou por um instante, naquele momento não soube dizer porquê. Os olhos de Tália se abaixaram tristemente, o que o fez duvidar que podia fazer tal afirmação, mas não a culpava, ela não poderia dizer o mesmo. — Enfim, eu..

— Eu te desculpo. — ela disse, antes de ele terminar a fala. — Terei cuidado, e você sabe disso. — Ela olhou em volta, apressada. — Esse show não começa logo!

Nas cortinas atrás do palco, In viu uma cabeça de cabelos louros. Daniel nunca foi do tipo de pessoa que voltaria atrás e começaria a falar com Ian do dia para a noite. Tália acenou ao seu lado, e o garoto anuiu com a cabeça, logo se aprofundou nas cortinas novamente.

A rivalidade entre Daniel e Ian podia existir apenas na cabeça de Ian, mas ele a levava a sério. Ian lembrou-se do jeito que Daniel o chamava, apenas Daniel o chamava pelo sobrenome. Vilanova. Ian nunca soube se o menino realmente gostava da sonoridade ou se era um tipo de ironia. Isso sempre fazia se questionar o fato de ter apenas o sobrenome da mãe, e não ter herdado o Aguiar do pai. Apesar de achar seu sobrenome esteticamente mais bonito, achava Aguiar forte, rígido como tinha de ser.

A fumaça esbranquiçada saiu novamente, em uma rajada forte, deixando o lugar com uma névoa. As luzes se apagaram, e os refletores coloridos se acenderam, centralizando a banda, que aparecia aos poucos no palco.

As silhuetas foram se desmitificando junto a névoa. No centro, a vocalista, uma menina de madeixas azuis, cantava, o microfone perto da boca. A guitarra, tocada por Daniel, à esquerda, acompanhou a voz em acordes familiares aos ouvidos de Ian. Os sons agitados e alegras, que envolveram o público com facilidade.

A baterista, uma garota negra de cabelos em estilo black-power, sacudia-se, batendo fortemente no instrumento.

Dias de Verão.

Noites de Inverno.

A cidade às vezes

É um inferno.

Ian tentou se conter, mas o som o pegou. Deixou-se levar junto a multidão, que começou a gritar e pular, cantando a música junto a voz de timbre forte da vocalista de cabelo colorido. Daniel estava concentrado no palco, fitando a plateia. O cabelo tinha cor de ouro gasto. A música prosseguiu, agitando completamente o público, sem os deixar parados.

Tália já havia desaparecido dentro da multidão saltitante. Ian a buscou com olhar apressado, mas não a achou. Certamente, naquelas condições, ela falaria para ele abstrair, ela não morreria ali.

Mais um refrão o fez saltar, deixando de sentir o chão ao seus pés. A fumaça entrava nos pulmões com baforadas quentes, sentia os cabelos de uma menina baterem nas suas costas. Ignorava, apenas cantava, junto a vocalista da banda.

Ian olhou para o palco. Viu baterista massacrando seu instrumento, como se não houvesse amanhã. Daniel era uma figura fina no canto, concentrado no seu instrumento apenas. A vocalista — Eliza — retirou o microfone do suporte, abaixando-se e jogando os cabelos, em um gesto feroz. Quando voltou, tentou arrumá-los com outra jogada. Os chifres no topo da cabeça escapavam e apareciam por pouco.

Chifres?!

Ian não soube como reagir quando os viu. Eram curtos e atrofiados. Despontavam para cima, seguindo horizontalmente. Tinham cor escura, o que ajudava na camuflagem. Ian balançou a cabeça, para evitar ter conclusões precipitadas. Queria estar errado. Tinha de estar errado. Mas, diferente dos olhos de cobra, os chifres não desapareceram. Permaneceram lá, assim como o sentimento de ter sua vista arregalada para sempre.

Correu para a saída, esbarrando em tudo e todos. Quase levou uma garota ao chão junto a si, mas conseguiu se projetar para o lado. A saída estava lá, a sua frente. Passou pela porta a empurrando com o ombro. Caiu na noite sem nuvens.

O céu limpo e recheado de estrelas o recepcionou. A brisa gelada veio logo após, o cercando por todos os lados e o fazendo tremer mais do que já fazia. A lua no ápice, branca como a mais alva pedra. Sentia o vazio enorme no peito sendo preenchido por algo que não fazia ideia. Os olhos pareceram se abrir mais, lacrimejando. Tudo em sua mente parecia explodir, os olhos de serpentes, os chifres de Eliza, os sonhos com a garota ruiva.

— Ainda bem que o encontrei sozinho. — disse uma voz feminina atrás dele. Era rouca e com um tom melancólico. Ian se arrepiou. Quando olhou, viu a mulher de olhos de cobra. Os cabelos dourados presos em um rabo de cavalo, vestia-se com um traje noturno e leve. Roupas casuais. Os olhos de serpente o fitando. — Vai ser ainda mais fácil.

Ian abriu a boca para responder, mas a fechou, antes da bile sair. A mulher avançou, com passos pesados, castigando a sola das botas de couro denso que vestia. Os cabelos se esvoaçaram como uma nuvem clara sobre a cabeça, o sorriso doentio nos lábios. Ian queria ao menos estar entendo aquilo.

Seu único reflexo foi se projetar para o lado, com toda a falta de prática que tinha. Tropeçou nos próprios pés embriagados e caiu no chão. A mulher atingiu o vento, ficando insatisfeita. Ian caiu no chão, e esfolou um ombro no processo. Sentiu um pequeno corte arder, junto com a temperatura fria do concreto da calçada.

Olhou para cima e viu a mulher, sobre si. Os cabelos loiros já não eram mais lindos, e sim aterrorizantes, como aquela beleza reptiliana que tinha. A boca curvada em o que não dava para chamar de sorriso, mas se contorceu negativamente. As unhas eram tão grandes que já podiam serem chamadas de garras. A boca dela espumou algo esverdeado, a peçonha escorreu. Ela lambeu, a língua fina e mair que o habitual.

Seja o que fosse, aquela mulher-cobra jamais explicaria coisa alguma a ele.

Se arrastou para frente, onde os braços alcançaram e se levantou, dentre paços falsos e incertos. Se pôs de pé e correu em uma direção que não pôde distinguir no primeiro momento. O chão sob seus pés parecia a ponto de desabar a qualquer momento, as coisa s ao redor tremiam, e as ruas eram um emaranhado estranho em sua mente. Ian rumou para um beco mais afastado, não ousando olhar para trás. Não queria ver onde ela estava, mas algo dizia que ela estava perto de mais.

O beco que alcançou era estreito e mal cheiroso. As lixeiras escuras e sujas, que transbordavam os sacos de lixo, combinavam com os tijolos escuros e a má iluminação naquele ponto cego de postes.

Ian gastou poucos segundos tentando juntar as poucas peças que tinha. Não conseguia achar explicação lógica para nada a essa altura, e esperava que tudo aquilo não tivesse, e fosse mais uma de suas miragens recentes.

— Você! — disse a voz engasgada dela, cortava a garganta. Palavras pesadas, cheia de emoção e da raiva inexplicável que ela sentia por ele. — Vou pagar na mesma moeda!

Ian tentou correr novamente, mas o beco se acabou em um monte de lixo. Virou-se para finalmente encarar a mulher com olhos de serpente. Ela mordia os lábios, com dor no gesto.

— Escuta aqui, eu realmente não sei o que está acontecendo! — levantou as mãos, em um gesto de paz. Algo dentro de si disse que era inútil, e, infelizmente, deve de concordar. — Mas eu nem ao menos te conheço!

— Eu estou pouco me lixando se você me conhece ou não. Seu pai, aquele desgraçado, tirou meu filho de mim. Ele vai finalmente sentir essa dor!

A mente de Ian ferveu novamente. Seu pai era segurança noturno de um clube de shows, era impossível Fernando ter matado alguém em sua vida. Era tão gentil e sorridente, nunca pensou em ver seu pai manchado de sangue.

A mulher rangeu só dentes dentro da boca, correu na direção de Ian e mergulhou como uma serpente. Uma série de socos e chutes começaram com os dois rolando pelo chão. Ian teve piedade ao acertar o primeiro murro na face dela, mas, quando ela apenas virou o rosto, parecendo não sentir dor alguma, não se conteve.

Uma chispa de descontrole havia se acendido e percorrera todo o corpo do garoto. Os músculos de Ian eram perfurados pelas unhas, que entravam na carne rasgando as roupas, no entanto não sentia dor, apenas a adrenalina do momento. Ela o empurrou para longe, com um chute na boca do estomago. Ian cuspiu algo marrom no chão à sua frente.

Já estavam sujos de lixo e impurezas que Ian certamente teria nojo se soubesse o que era na verdade. Os cabelos louros desgrenhados e anexados a face suada dela, a boca soltando um ácido de consistência suspeita. Ian se levantava quando sentiu algo espetando suas costas. Pegou o que objeto, mesmo não sabendo o que era. Surpreendeu-se quando percebeu que havia adquirido uma viga de ferro. Mesmo enferrujada, era uma arma improvisada.

A mulher deu outro bote, dessa vez não haveria outro. Estava decidido em seu olhar. Os olhos de serpente tinham chamas de fúria, ardiam de pura raiva por Ian. Quando colidiram, Ian foi ricocheteado para longe, logo após de enfiar com toda sua força a vifa de construção.

O choque dos corpos o empurrou longe, e caiu batendo na parede. Foi abraçado pelos sacos de lixo, fazendo deles um amortecedor de sua queda. Desejou ser o mesmo Ian dos sonhos, de ter uma arma a sua disposição e uma faca na cintura. Desejou ter aquela desenvoltura que tinha toda a noite que sonhava com a ruiva, mesmo tudo lá parecendo ensaiado. Agora, vivia aquilo. A adrenalina, o sangue fervendo dentro de si, as veias pulsando nos braços, a ansiedade pedindo mais daquilo e menos ao mesmo tempo. Tudo naquele beco era como uma memória distante, que ia se revelando aos poucos. Seus reflexos já não faziam mais sentidos, não sabia onde aprendera que uma viga de ferro era uma arma, quase nunca se envolvia em brigas. Apenas esvaziou a mente, deixando apenas a imagem da mulher com a barra fina atravessando a barriga.

Uma sacola plástica o tampou a visão, e se aliviou por não ouvir mais nenhum som no beco. Seu coração desacelerou, e pôde finalmente soltar a respiração.

Uma mão fina o envolveu pelo pescoço, puxando o colarinho da blusa para frente. Foi junto. O coração voltou a bater forte contra o peito, e vetou a respiração por segundos. A mulher estava sobre ele, com seu olhar mais próximo do que nunca. Viu a viga transpassando o abdômen dela como nada, ela não sentia aquilo. Ela sorria para ele.

— Sua carne deve ser deliciosa. — E abriu a boca, exibindo dos dentes afiados. Levava o pescoço de Ian cada vez mais perto. Em um certo momento, Ian fechou os olhos. Seu corpo já não respondia mais, não conseguia reagir.

Ian sentiu o hálito quente perto da jugular. O arrepio percorria o corpo por inteiro, fazendo ter espasmos na ponta dos pés. A proximidade era iminente, e logo veria seu pescoço sendo destroçado.

O ruído seco ecoou pelo beco.

Cheio de pólvora subiu, assim como o tintilo de metal contra o chão silencioso. A leveza sobre o colo de Ian apareceu e o corpo da mulher fora atirado alguns metros ao longe. Sentiu-se banhado pelo sangue esverdeado que saiu dela. Quando voltou a enxergar, viu o corpo ao longe, no amontoado de lixo. Eram frangalhos apenas, os cabelos eram a única coisa que remetiam a uma figura feminina. Os restos exalavam uma fumaça mal cheirosa e quente, um estranho tipo de vapor natural.

Ian levantou os olhos para ver seu salvador.

— Eu não acredito que atirei nessa gata. — apesar das palavras serem de arrependimento, o tom era apenas ironia, estava satisfeito. A visão de Ian demorou para se focar, mas logo viu a figura de voz familiar. Era um homem alto, corpulento e sarado. A pele negra em um tom moreno, os olhos expressivos e escuros. A típica barba rala na lateral do rosto, a cabeça com cabelos rasteiros. Ele portava uma escopeta de cano cerrado, a arma cuspia fumaça cinzenta. Ele dobrou o cano, e a arma rangeu com um som que fez Ian tremer, as capsulas caíram. Ele recarregou, fechando o cano, pronto para outro disparo. Sorriu para Ian. — Tem outro?

— Toni?! — não soube se afirmou ou perguntou. Não era possível aquilo. Ali, na sua frente, estava Antônio, o melhor amigo de seu pai e tio de consideração. Não sabia ao certo desde quando conhecia Antônio, mas Antônio, certamente, o conhecia desde antes do nascimento. Ian não conseguia processar o fato de ele portar uma arma. Uma sensação estranha martelava o interior da cabeça, afirmando com toda razão que aquela cena não era estranha. Ian apalpou o coldre inexistente no cinto, pela segunda vez naquela noite. Sentia a falta da arma que sempre estava ali. Sua beretta.

Toni estendeu uma mão para Ian, ele pegou.

— Você está um caco. — ele disse, risonho. — Está fedendo.

A boca de Ian tremia, tinha tantas perguntas.

— Você matou uma mulher! — berrou, acusando-o. Mesmo tendo salvado sua pele, Ian ainda achava o ato desumano. — O que você…?!

— Calma. — Antônio o interrompeu. — Eu vou te explicar, tudo, mas primeiro precisamos sair daqui. Não sabemos quanto são. — ele virou-se de costas e fez sinal para Ian o seguir.

Ian o fez.

Levi vomitou todo o almoço no momento que botou os pés fora do teatro.

A noite inteira parecia girar ao seu redor, via a lua no chão, e si mesmo no céu. As estrelas eram um turbilhão de luzes piscantes ao longe, causavam-lhe náuseas intolerantes, que devastavam-lhe por dentro. O cérebro, pensou, já era apenas uma massa cinzenta frita. A estranha sensação de ser a única peça alva em um enorme tabuleiro de xadrez o assolou, via os outros a sua volta como as peças negras, um exercito que o cercava aos poucos, o matando lentamente.

O ar emperrou na garganta, tossiu secamente.

— Ei. — alguém o chamou. Uma voz rígida e forte, firme como um muro. Levantou o olhar, evitando fitar para os postes ao fundo. Era uma figura enorme, larga e grande, recheada de músculos. — Moleque.

O homem careca que o seguiu pela saída do teatro estava ali, o observando. Levi se questionou se vira ele vomitando, quase colocando os órgãos para fora. Levi levou mais de um instante para perceber que os olhos amarelados que o homem possuía eram diferentes, com pupilas em fenda. Balançou a cabeça, tentando se desfazer da ilusão de momento. Os olhos de serpente não desapareceram. Continuaram lá, o encarando. A sobrancelha franzida mostrava a impaciência do sujeito.

Levi hesitou em responder.

— Você está muto mal. Não está morrendo, está? — ele perguntou, sem grosseria na voz. Era como se fosse outra pessoa ali dentro da casca musculosa cheia de cicatrizes. O homem sorriu, um sorriso simpático, mas os olhos de cobra continuavam com aquele temor.

— Não. — Levi respondeu, enquanto arfava. As mãos cerraram-se nas coxas, puxando o jeans justo da calça. Sentiu os dedos formigando. Os olhos coçavam por dentro.

— Ainda bem, porque eu quero te matar.

As palavras ditas fizeram Levi parar de respirar por um segundo. Sentiu o coração parar e bombear sangue gélido pelo corpo. Os nervos do corpo inteiro relaxaram e se contraíram, tremeram por completo. As pernas afrouxaram, quase o derrubando no chão. O único impulso do corpo foi correr. Talvez aquele homem fosse um tipo de maníaco, interessado em matar jovens esquisitos, pensou. Já não era recente a notícia de pessoas desaparecidas na cidade, a taxa estava subindo drasticamente nos últimos meses, e Levi apenas observava os números crescerem. A mãe o alertava sobre o perigo das ruas, mas nunca achou que terminaria o final de semana correndo de um maníaco.

Parou quando tropeçou em um emaranhado de fios, perto de um beco. Caiu de bruços, ralando os cotovelos na queda. O ardor não era intenso, graças a grande quantidade de adrenalina que rodeava seu corpo. Sabia que mais tarde seria diferente, e que gritaria muito enquanto passaria álcool. Sentiu os dedos curtos envolverem seu calcanhar, rijos como pedra. O puxaram, e seus esforços de resistência foram inúteis. Unhou o chão para se fixar, mas de nada adiantou.

Não soube como, mas, de um instante para o outro, estava com seu pescoço contra a parede, e mão do homem o sustentando. Os cinco dedos o apertando fortemente. Respirar se tornou cada vez mais difícil para Levi, até que chegou o momento que já não conseguia mais o fazer. Se debatia, mas seus esforços eram de fazer o sujeito dar risadas.

Se perguntou por um minuto o que estava acontecendo, mas certamente não acharia a resposta. Estava ali, preso contra a parede por um homem estranho e mal apessoado, contra um sorriso sádico e um olhar de cobra que flamejava de ódio.

Via o ardor naquelas pupilas em fenda. Mais do que isso, sentia o ardor, dentro do próprio corpo. Sentiu os dedos se esquentarem de hora para outra, mas sentiu um fogo imaginário, que queimava mais não ardia. Os olhos se estreitam junto com as mãos, os segundos eram poucos. Levi pensou gastar seu último segundo de vida apenas olhando o fogo naquelas vistas.

Mas tudo se desfez em chamas, outra vez.

Levi caiu no chão quando os dedos duros se afrouxaram como gelatina, de súbito. Chegou ao solo desnorteado, procurando um rumo e o nexo da situação. Todavia, sentia algo estranho pulsar dentro do peito, como um pássaro preso em uma gaiola. Um sentimento bom aflorou pelo corpo. Se levantou, e viu um fulgor de cor esmeralda envolver os seus dedos, era como uma fumaça, porém pouco densa. Lembrava uma nebulosa espacial, pensou.

Tremeu os dedos o mais rápido que pôde, e o homem queimou. Consumido por um fogo de cor verde, o sujeito se desfez em poeira e cinzas em poucos segundos, gritando baixo e balbuciando palavrões em pleno ar.. A chama correu pelo corpo, reduzindo aquela estátua inquebrável a nada. O coração de Levi pulsava forte contra as costelas. Os nervos estavam dilatados, em um êxtase momentâneo após fazer aquilo. Sentia-se nas nuvens.

— Um firaga logo de primeira?! — disse outra voz, essa, por sua vez,, muito familiar. Doce e melódica, a voz de Beth era uma das poucas que Levi realmente reconhecia. Não precisou virar para perceber que ela estava ali, perto dele, observando a cena inteira no beco. Ela afagou os cabelos com mexas cinzentas, que já foram escuros um dia, e ajeitou os óculos. Ela estava sorridente, feliz com a situação. — Você realmente é como sua mãe!

Levi olhou para a própria mão. Os dedos balançavam em frequência menor agora, via as veias do pulso latejando. Perdeu segundos fitando aquele fulgor verde. Lembrava-o galáxias que já havia visto na internet, via pequenos flocos luminosos pulsando aqui e ali, nos próprios dedos. Fechou os dedos por reflexo, e, quando os abriu novamente, o fulgor se esvaiu.

Beth olhou para a pilha de cinzas.

Você é realmente como sua mãe.

— O que eu sou? — perguntou, direto. Beth pareceu ficar surpresa, deixando a boca se abrir por segundos. Ela recobrou a postura natural, encarando a situação como se fosse algo do cotidiano.

Ela limpou as mãos, os anéis de pedras enormes reluziam as luzes noturnas.

— De todas as perguntas que eu pensei que você faria, enquanto estava no caminho, essa foi a única que eu pensei que demoraria um pouco para responder. Enfim, Levi Vilanova, você é um feiticeiro! Não é ótimo?!

Ian ainda estava inquieto. Não havia se acalmado, mesmo já estando dentro do carro de Toni — uma picape um pouco antiquada. Toni, ao contrário dele, dirigia tranquilo. Assoviava e apreciava a paisagem, ignorando Ian e o fato de ter matado uma mulher há poucos instantes. A escopeta jazia entre eles, e Ian, por pouco não a pegou para ameaçá-lo a lhe responder. Sabia que Toni riria de sua cara.

— Aonde seus pais foram? — Toni perguntou. Virou o volante bruscamente em uma curva fechada. Ian cambaleou para o lado.

Sentiu o metal frio da arma em contato com seus dedos. Era tão excitante tocar naquilo. Os nervos dentro de si afloraram-se, com as sensações familiares. O sonho que atirava na garota ruiva era como uma memória distante, em uma bruma que ia ficando menos densa com os segundos.

— Eu não sei. Com certeza não foram apenas comemorar o aniversário de casamento. — disse, tentando se tranquilizar. — Você sabe…?

— Não. — Toni estava pouco se lixando para o mundo ao seu redor. Deu de ombros. — Seu pai não lhe disse nada mesmo sobre esses canibals?

— Sobre o quê?

— Os ghouls.— Toni insistiu, bufou quando viu a expressão de desentendimento total de Ian. — As vezes eu esqueço do que sua mãe fez a você.

— Do que você está falando?! — Ian berrou, insatisfeito. — Toni, escuta, eu não faço a mínima ideia do que você está falando!

Toni respirou fundo, tamborilou os dedos no volante de couro.

— Não temos muito tempo para isso, e eu não estou a fim de te contar a história da carochinha de novo. Ian, o que precisa saber é que o mundo não é tão… limitado quanto acha.

— Limitado? — Ian perguntou, desconfiado. Uma imagem surgiu em mente, os dentes afiados da garota ruiva. Sentia um incômodo na cabeça, era como se descascasse todas as imagens que já havia presenciado, vendo todas por um novo ângulo.

— Sim. — Toni anuiu. — Vampiros, lobisomens, fadas, bruxas, demônios… Enfim, essas coisas, vivem conosco. Os chamamos de infernais.

Ian riu das palavras sérias e ligeiras do homem. Não podia acreditar naquilo. Era como acreditar que o céu era roxo, impossível.

— Essas lendas urbanas? — desdenhou. — Toni, pense no que você está me falando...

— Lendas deixam de ser o que são quando passam a ser parte do nosso cotidiano. — falou, o sorriso desaparecera da face. — Ian, nós, ordinários, somos forçados a acreditar que essas… coisas não existem, desde pequenos. Eu sei, é confuso.

— Não! Não é confuso. — protestou. — é inaceitável.

— Você acabou de ser atacado por uma canibal, uma mulher com olhos de cobra e ainda duvida do mundo? — Toni pareceu rir, mesmo estando sério. Ian sentia-se um grande idiota, se negando a enxergar o mundo completamente. Toni estava certo, Ian não tinha argumentos para dizer.

Ian abaixou a cabeça, dando-se por vencido. Suspirou baixo, descontente. As palavras de Toni eram tão claras e sóbrias, era claro que o que falara estava certo, aquela era a verdade sobre a realidade. Mas Ian ainda desejava que fosse apenas mentira, uma brincadeira de mal gosto. Estava incomodado por pensar que dividia o mundo com seres semelhantes, que provavelmente faziam dos humanos simples bonecos, que o desprezavam. Sentia-se uma formiga cercava por gigantes.

Toni fez outra curva inesperada, que arrancou Ian dos devaneios e da quietude.

— E meu pai? — começou, gaguejando incertamente. — Onde ele entra nessa história?

— Seu pai, assim como eu e você, era um ordinário. — explicava, no entanto não tirava os olhos da direção. Ian não esboçou uma faceta agradável com as palavras de Antônio. — Ordinários são como se redigem aos humanos comuns.

— Você não me parece tão comum. —Ian argumentou. — Você é diferente, sabe da existência dessas coisas. É de uma espécie de seita secreta?

Era visivelmente a graça que Toni enxergava na conversa. Os lábios já estavam curvados novamente.

— Tire essas ideias mirabolantes da sua cabeça. — advertiu, rindo. — Apesar dos maçons e os rosa-cruz terem envolvimento nisso, não fazemos parte deles. Você não vai ouvir que é de uma descendência ancestral e que agora tende proteger o mundo. Desculpe te desapontar se era isso que queria ouvir. Ian, eu e seu pai somos mais comuns que o normal nesse meio. Somos o que chamam de caçadores de recompensas.

— Você e meu pai? Matadores profissionais?

— Não use essas palavras feias. Apenas sobrevivíamos da maneira que nos foi ensinada. Veja, sei que não é nada poético falar que, na maioria das noites, seu pai saia para matar algo que desse dinheiro, mas, veja pelo lado bom, ele sempre conseguiu pagar as contas com isso. Cada um sobrevive do jeito que pode, Ian.

Ian reprisou as cenas do sonho novamente. Pensou não ter sonhado com o pai, em vez de si mesmo. Eram tão parecidos fisicamente.

— Então, isso me torna um de vocês também? — perguntou, inocente. Não sabia como prosseguir agora. Não tinha ideia do que faria da vida dali em diante. Seu sonho de entrar na faculdade de administração e montar o próprio negócio estava falido, agora era só mais um vislumbre de um futuro imaginário. Não podia continuar vivendo, sabendo que o colega de classe poderia ser um monstro disfarçado.

— Não. — Toni negou, sem rodeios. — Você só é filho de seu pai, isso não quer dizer que tem que ser o espelho dele. Sabe, Ian, eu comecei isso com dez anos de idade, quando meu pai me contou sobre tudo isso eu fiquei estupefato, esperava ouvir qualquer coisa, menos que nossos vizinhos eram um casal de bruxos. Em mais uma das noites que meu pai costumava sair sem explicação, deixando eu e minha irmã menor em casa, eu o segui. Eu atrapalhei ele em um momento chave, e vi meu pai ser morto por um lobisomem, na minha frente. — Ele suspirou fundo, os olhos cerrados mostravam a Ian um passado triste, eram quase iguais os do pai, Ian costumava perceber quando Fernando encarava o nada, pensativo — Naquela época, eu não sabia como atirar. Eu peguei a arma do cadáver do meu pai, e tive que tocar em sua mão fria. Depois de quase morrer, eu consegui atirar no desgraçado.

— Isso é… — Ian começou. Lamentar ou sentir muito por Toni seria pouco, não sabia o que dizer.

— Espere, ainda não acabou. — Ian se sentiu mal por Toni estar contando aquela história triste, apertando as próprias feridas. — Logo após isso, eu fugi com minha irmã. Os lobisomens juraram vingança, e a mataram depois de dois anos. — Toni engoliu em seco. Ian pensou ver uma lágrima brilhar nos olhos dele. — Ian, quando se entra nisso, não dá pra sair. Não é um desses jogos eletrônicos que você joga, isso é real. Seu pai sabia disso, por isso não te colocou nisso de novo.

De novo? — Ian lançou outra pergunta, e notou o quão irritante era.

— Há três anos, ele tentou te inserir nisso tudo. Você aceitou tudo sem muitos problemas, o que facilitou muito. Um dia você quis ser altruísta e saiu para caçar sozinho. Tudo saiu bem, e você não se feriu. O problema foi quando você confrontou sua mãe, logo após chegar em casa. Patrícia não sabia o que seu pai havia feito, e ficou… descontente com isso tudo. Eles tinham um acordo de não os envolver nesse meio, e seu pai quebrou. Eles brigaram feio, quase se divorciaram. Você não deve se lembrar, porque ela apagou sua memória.

— Espere. Minha mãe…

— Uma feiticeira. — Toni interveio. — Como seu irmão.

— Por que eu não sou como eles? — Ian espiou janela afora, viu o canal que cortava a cidade, a água cristalina contra as luzes dos postes amarelados. As noites eram tão lindas, pena que descobrira o perigo ali. Sentia um aperto no peito, olhou a imensidão atrás da paisagem urbana. Onde os pais estavam no meio de tudo aquilo?

— Mas você está mesmo curioso, hein?! — Toni olhou para fora do carro, começou a reduzir a velocidade. — Eu não entendo dessas coisas de magia. Deve ser gene, sei lá. Recapitulando, o que você viu essa noite não vai ser ocultado pelo feitiço de sua mãe. Bem-vindo ao mundo, Ian!

O carro de Toni parou em frente a casa de Ian.

Ele acenou com a cabeça para ele descer. Ian não soube bem o que fazer, apenas fez o que Toni indicara. Estava incerto sobre sua atual situação, o que faria dali pra fente? Sua cabeça estava explodida por completa, e agora apenas pegava os cacos de realidade que o sobravam, e tentava juntá-los, tentando criar algo sólido. Era ridículo pensar que entra a mãe, o pai e o irmão, era o único realmente ordinário.

— Eu ainda não sei o que aqueles ghouls queriam com você, mas eu descobrirei melhor. Acho que não voltarão, mas, caso voltarem, a segunda gaveta no guarda-roupas de seu pai. Lá pode ter algo para te ajudar. — Toni sorriu. O carro acelerou, não hesitando. Deslisou pelo asfalto seco, virando quando Ian menos esperava.

Percebeu que era apenas mais uma alma-perdida ali, nos prédios e ruas de sangue.


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Notas finais do capítulo

- Gostaram?
— Todos os créditos da música para a banda Capital inicial, que são ótimos, por sinal hehehe



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