Cidade Zero-Hora escrita por Yellow


Capítulo 2
Em Combustão


Notas iniciais do capítulo

-Oi pessoal! Tudo bem com vocês? porque eu estou ótimo! :)
— O segundo capítulo agora, espero que gostem:)



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Ian sabia que não deveria contar aquilo para alguém.

Iria ser julgado um maluco, lunático, louco por completo.

Quando entrou em casa novamente, apenas com o intuito para pegar o celular e a carteira, Levi continuava desinteressado pelo mundo. As sobrancelhas neutras indicando a expressão de calmaria. De certa forma, admirava e odiava essa característica do irmão. Odiava quando Levi olhava com desprezo para situações que realmente exigiam atenção, e adorava a forma de como olhava para o mundo, não dando a atenção estressante de qualquer outro jovem.

Subiu as escadas com passos apresados. Achou o celular embaixo dos lençóis grossos da cama. E procurou a carteira por todo o quarto, não obtendo êxito algum. Partiu para o quarto dos pais.

Desde pequeno Ian se sentia pequeno ali. O cômodo era das mesmas proporções de seu quarto, mas totalmente diferente. As paredes eram pintadas de cores claras, ao gosto da mãe, e com retratos do casal por todo o lugar. Tinha pouco toque masculino, em geral, o único lugar que realmente era de Fernando era um canto meio apagado, ao lado do armário, onde haviam caixas de madeira.

Avistou sua carteira na penteadeira, ao lado do espelho comprido. Pegou e a colocou no bolso, e não pôde evitar de perceber algo estranho. Era um pedaço de papel rasgado e improvisado. Nele haviam letras estranhas e não familiares. Feias, Ian julgou. Era vazadas e muito fortes.

“Preciso conversar algo sério com você, é urgente. Acho que eles voltaram.

– So”

E uma enorme marca de batom cor rubra, diferente de todos os batons da mãe. Os lábios eram grossos e carnudos. Espalhafatosos como as letras da caligrafia. Espantou-se pelo fato do bilhete estar do lado de um perfume de Fernando. Era para o pai de Ian. Sentiu-se mal por achar que o pai tinha uma amante. Mas não podia julgar, tudo era estranho. Por começar com a despreocupação de Fernando. Ele não seria burro o suficiente de não ocultar aquele recado.

Seu peito doía em ver que sua família não era tão perfeita. Ian estava em todas as comemorações do casal, e via como se beijavam fortemente, como se abraçavam, se amando. Agora, tudo estava despedaçando em sua mente. Era como se seu pai estivesse acabando com tudo que já haviam passado juntos.

Voltou as escadas e viu Levi se deitando preguiçosamente no sofá. Se despediu do irmão, apesar de não obter resposta, como todas as vezes. Tentou ligar para Tália antes de sair de casa, mas ela não atendeu. Ian então saiu, querendo esfriar os pensamentos.

Levi detestava si mesmo.

Isso era um fato que não podia negar. Odiava parecer uma enorme criança, odiava seu gênio de ser de poucas palavras. Em pleno recesso escolar, em um final de semana que haveria sol, iria passar o dia mofando dentro de casa. Sentia um grande vazio dentro de si, e sabia o que faltava.

Amigos, colegas, família, alguém para amar.

Não tinha nada disso. Sua família não ligava para ele. Ian somente saia com seus amigos. Fernando parecia não tolerar Levi, e ele nunca soube o porque. Claro, o pai o amava, mas de forma estranha. Sempre pareceu evitá-lo onde iam, e parecia ter vergonha de falar que era seu pai. Desde pequeno via o pai estufar o peito e dizer que sentia muito orgulho de Ian, por ele ser um jovem inteligente e forte, corajoso e um “líder nato”, como dizia. Levi nunca escutou uma palavra de afeto do pai.

Sua infância inteira passou na barra da saia da mãe, enquanto via as outras crianças brincarem. Ian jogava bola com outros meninos do bairro, em um campinho de futebol não muito longe. Levi se lembrava das tardes ensolaradas que via seu irmão jogar e se divertir ao lado de amigos. Empurrões, tropeços, socos, pontapés, viu tudo isso ao longe, do lado de sua mãe. Certo dia, quando Patrícia não estava, e Fernando os levou para o parque, ele autorizou Levi brincar. E ele foi, contente, pela primeira vez. Durante todos os anos de sua existência a mãe alegava que Levi era especial, mas isso qualquer mãe dizia de seu filho. Via o pai dizer isso para o irmão mais velho todo dia, dizendo que ele era o garotão da família.

Enquanto jogava, Levi lembrou-se do tropeção que tomara de um garoto sardento. Chorou muito, e não parou, porque os outros garotos começaram a rir dele. Ian o defendeu e o levou para um local mais afastado, onde o ensinou que nunca deveria chorar na frente de alguém, nunca. O fez jurar que jamais faria isso, e Levi cumpria o juramento até os dias atuais. Então, toda vez que queria chorar, se recolhia à varanda, onde poderia passar horas sem ninguém notar sua existência.

Mas seria egoismo de sua parte dizer que ninguém ligava para ele. Ian podia ter o esquecido, e Fernando ter vergonha de um menino frágil e de aparência anêmica, mas Patrícia o amava, com todas as suas forças. Levi sentia-se bem ao lado da mãe.

Ela se preocupava realmente com ele. Não o deixava se arriscar. O protegia.

E com esses pensamentos conturbados adormeceu. Reprisava imagens na própria mente. Reviu o pai lhe encarando com receio. O irmão se afastando aos poucos, e Patrícia desaparecendo.

Sonhou novamente o que lhe atormentava.

Estava de volta à escola, o primário, onde passou boa parte de sua infância. Era o mesmo dia que revia todas as últimas noites. A mesma grama fresca que seus pés tocavam, o mesmo cheiro de comida apetitosa pairava no ar. As nuvens estavam escuras naqueles dias, e o meio dia parecia-se com o final chuvoso de uma tarde. Há três anos aquilo acontecera, e Levi reprisava as cenas nas últimas semanas, incessavelmente.

Era o mesmo dia, não conseguia fugir. Pedia para seu subconsciente, implorava para que o sonho mudasse. Era estranho ser um espectador livre naquele trágico dia.

O sinal soou e todas as turmas foram liberadas para intervalo. Era apenas crianças de ensino fundamental, pequenos e incertos. Levi via os antigos colegas de classe, pouco diferente dos dias atuais. O comportamento de alguns havia mudado, para bom e outros para ruim. Aquela altura já não estudava mais com Ian, e tinha de se virar sozinho com seus problemas.

Levi viu si mesmo, no meio do pátio, deslocado. Era como agora, mas com a expressão mais alegre, as sobrancelhas e lábios arqueados em sorrisos. Os olhos quase brancos refletiam sua alegria e amor. Se viu pouco diferente, os cabelos escuros ainda eram os mesmos, mal arrumados e descuidados. O uniforme escolar, como sempre, alguns números maiores. As mangas do casaco cobriam os pulsos finos.

Sentiu-se confortável por um segundo, até que eles chegaram. Era meninos estúpidos da oitava série, corpulentos e maiores que os outros garotos do colégio. Eram repetentes, e não se esforçavam nada para passarem de ano. Gostavam do reinado medíocre que tinham com as crianças menores.

Levi teve o impulso de tentar segurar um pelo ombro, mas sua mão o atravessou. Era como uma projeção, intocável. No sonho apenas podia assistir os fantasmas intocáveis do passado, sempre chorando com o final trágico.

Os valentões cercaram Levi menor, a pequena criança acanhada contra uma parede. A chuva caia fina, o molhando por completo. Os olhares de todos caíram sobre o pequeno rapaz de roupas despojadas. Levi nunca soube o que os meninos queriam com ele, mas o odiavam. Sentiu um aperto no coração quando o primeiro soco foi dado contra o seu rosto, era doloroso ver-se apanhando, mesmo que fosse sua versão menor em um sonho. Lembrou-se da primeira vez que sonhou essa cena, e tentou interromper, os movimentos e desespero em vão. Tudo era como uma miragem intocável.

Logo o chiado que assombrava os sonhos de Levi soou. Aquele som áspero e ligeiro, parecia sair do chão sob eles. Os meninos pararam com as porradas por um segundo, para olharem para os pés, como se a resposta do chiado inexplicado estivesse na grama. O grito das outras crianças envolta assustava ainda mais Levi, fazendo-o se espremer em um canto, chorando. Apesar de apenas assistir sua versão menor, Levi podia sentir tudo. A dor no coração, os olhos ardendo em medo e ódio. A raiva de ser o que era.

E como no dia, Levi sentiu a nebulosa em seus pensamentos. Sentiu a mente apagar por uma fração de segundo, e o sangue nas veias ferver.

E tudo se desfez em uma explosão.

O fogo e a fumaça tomaram conta do gramado verde, tornando preto. As chamas engoliram os meninos, ferozmente. Levi tentava não fazer uma analogia a um monstro, mas toda vez que via o fogo, aquele fogo ardente, associava-o a seus demônios internos. Seu primeiro impulso, como em todos os outros sonhos, foi pular em direção ao fogo, buscando sua verão menor. Era estranho não sentir o fogo tão vivo ao seu redor, ver os rapazes queimando e ele continuava lá, inteiro. Sentiu uma mão pequena envolver a sua, e puxá-lo para perto. Viu si mesmo quando menor, os olhos mais puros e brilhantes de esperança. O rosto com menos ângulos e com as maçãs mais acentuadas. Os lábios finos e retos, tensos.

— Esse é o nosso poder. — as mesmas palavras de todas as noites. O fogo, que não penetrava na esfera invisível que os protegia, invadiu, tomando conta da visão de Levi.

Sentiu seu corpo inteiro arder, e de um instante para o outro, a dor cessou.

Abriu os olhos, assustado.

O tremor passou pelo corpo inteiro, junto com o suor gelado. Era como se estivesse segurando um cabo de alta tensão, e que a água que minava de si mesmo fosse o condutor perfeito. Sentia nervos que nem sabia que existia mexerem-se involuntariamente, junto aos dedos, que não paravam de tremer e formigar. A sensação curiosa tomou conta dele. Sentia algo de familiar no balançar de dedos. Perdeu-se olhando para os dedos. Eram longos e finos, dedos de pianista, dizia sua mãe.

Levi voltou à realidade quando sentiu uma fisgada no peito. A respiração cessou e as mãos correram para lá, buscando o órgão bombeador de sangue, como se conseguisse tocá-lo. Seu tórax estava descendo e subindo rapidamente, acompanhando a respiração acelerada. Há duas semanas suas noites eram as mesmas, acordava assutado, sempre revendo a cena do acidente.

Sentia o sangue ferver nas veias, como naquele dia. Pensava em sua raiva contida, da reprovação do pai em relação a ele, e do esquecimento do irmão. Sentia tudo isso contra seu coração, sentia ele murchando dentro do peito, aos poucos. Lágrimas ameaçaram correr pelo rosto, mas limpou-as antes.

Se policiou quando viu os próprios dedos descontrolados, subindo e descendo, em movimentos sem ordem e significado.

Ouviu o estalo gelado do vidro se chocando contra o chão.

Depois de um leve salto de surpresa, olhou por cima do ombro e viu o copo quebrado, o conteúdo escuro contra o piso claro abaixo da mesa de centro. O café se alastrava aos poucos, preguiçosamente chegaria aos pés do sofá.

Não gastou tempo pensando de como aquilo foi acontecer. Sempre deixava copos na parte central das mesas da casa, e levava o conselho da mãe para sempre. Ela o advertia quando ele, pequeno, deixava copos em beiradas, alegando que cairiam e quebrariam. E fez tanto o que a mãe impôs que era costume deixar seu copo no centro de qualquer mesa. Olhou pela janela, fechada. A cortina tampava a luminosidade que tentava invadir o cômodo.

Não tentou achar solução lógica. Tudo em sua vida, de uns dias para cá, estava estranho. Não estranharia se o teto resolvesse desabar sobre sua cabeça, e todos a sua volta aplaudirem. Copos quebrando de súbito, vidros rachando do nada, coisas se mexendo ao seu redor quando estava sozinho…

Canos de gás explodindo e quase me matando, concluiu o pensamento. Era impossível não se lembrar do dia seguinte ao acidente. Estava em casa, sua mãe o vetou de qualquer tipo de saída. Havia se tornado uma celebridade mirim na escola, um milagre vivo. As pessoas o cercavam, e queriam resposta porque ele fora o único que não havia morrido. Repórteres, policiais, peritos, todos cercavam Levi. Não conseguiam seguir uma linha lógica, para alegar como o fogo não havia o atingido. Era impossível. Os canos de gás, que passavam por debaixo do gramado da escola, haviam explodido devido a uma falha, no instante da briga. Tudo tão sincronizado. Um grande acaso, pensou.

E as memórias ruins vieram logo em seguida. Viu em sua mente o corpo dos valentões queimados. Peles grudadas aos esqueletos, cabelos colados as suas faces. O cheiro de carne carbonizada passou por seu nariz, fazendo-o bambear. Lembrou-se dos esqueletos sendo retirados, de como todos esperavam que o dele estivesse lá no meio. E lembrou-se dos olhares curiosos quando saiu do meio do fogo, inteiro. Sem nenhuma queimadura, sem nenhum arranhão sequer.

Levi pegou o controle da televisão, que repousava entre a tempestade de almofadas no sofá. Tentou achar um programa bom. Não encontrou nada que o entretece. Sentiu o celular vibrar ao seu lado. Era uma mensagem de Alex.

Ian não sabia onde estava, esse foi a primeira conclusão que fez para si mesmo.

Talvez soubesse. Quando acordou assutado, devido ao pesadelo, seu único desejo era espairecer os pensamentos, principalmente depois daquilo que ocorreu na cozinha de casa. Ver o irmão se transformar em uma vampira ruiva foi ruim, e logo depois ver a própria mãe se transformar no irmão menor. Não podia não notar a semelhança que tinham. Os mesmos traços finos e elegantes, que Ian sempre invejou. Não era somente os traços que invejava entre o irmão e a mãe, mas também a relação. Patrícia se preocupava muito com Levi, o suficiente para deixar Ian mais que enciumado, mas esquecido. No começo achou que seria uma fase, e que logo a atenção dele se repartiria entre os dois novamente. Errou. Os anos passaram e Patrícia se restringia mais a Levi.

O pai, por outro lado, o adorava. Dizia que Ian, como o primogênito, deveria ser um homem de verdade e ser ético. Ensinava a ele todo tipo de atividade que gostava de fazer. Ian se sentia mal ao ver Levi sendo ignorado pelo pai, e algo dentro de si dizia que Fernando não fazia aquilo por prazer. Algo nos olhos do pai dizia a Ian que ele tinha um sentimento a mais por Levi.

Medo? Sugeriu a si mesmo. Fernando parecia temer Levi, todos os gestos que fazia quando falava com o filho mais novo, e jeito que olhava, com receio. Os passos retrocedidos que Ian já havia visto repassavam em sua mente, como um filme ruim.

— Ai! — exclamou uma voz fina. Ian despertou dos pensamentos, quando deu por si, havia colidido com uma moça. Ela mergulhou contra o solo no mesmo instante, pegando a bolsa e os pertences que haviam se esparramado pelo chão. Ele agachou para ajudá-la. Era uma mulher na casa dos trinta, o rosto fino e com manchas de cansaço. Os lábios finos poderiam formar um sorriso gentil, se não estivesse preocupada, verificando se o celular estava quebrado. — Desculpas, eu acho que esbarrei em você…

— Sem problemas. — Ian anuiu, ajudando-a a colocar um lenço na bolsa de couro marrom. Viu que ela se vestia de forma elegante, com roupas de grife, que não se adequavam ao lugar que estavam. Ian viu, por fim, que estava em Lima, um dos bairros da cidade, e o mais popular.

Lima era conhecido por suas ruas cheias de comércios e pessoas que nunca dormiam. Os corredores urbanos dali eram estreitos, finos e esguios, dificultando sempre para os motoristas, e os obrigando a deixar seus carros e ir as compras a pé. Aquela hora da manhã, não haviam muitas pessoas na rua, além de homens mal encarados e usuários de drogas em ecos escuros. A cidade demorava para acordar, principalmente em dia de domingo.

A mulher se levantou, afagou o colo. Olhou em volta, confusa.

— Você é daqui? — perguntou a Ian, corada. — Da cidade, eu digo…

— Sim. — respondeu, sem pensar duas vezes.

Ela o examinou dos pés a cabeça, olhando curiosa com seus olhos de tons esmeralda. Algo no olhar dela o intrigava, deixava-o inquieto. Talvez o jeito que ela falava, mordendo a língua lentamente.

— Eu acho que estou perdida. — Riu, sem graça. — Poderia, por gentileza, me ajudar?

— Acho que posso…

— Sabe onde fica Argema? — perguntou, mostrando a Ian uma localização de um campo de futebol de grama do bairro onde morava. Ele anuiu, e ela sorriu, satisfeita. Jogou os cabelos dourados para atrás da orelha.

— Não fica muito longe… — Ian deu as instruções logo em seguida, indicando em que rua virar e que lugar não ultrapassar. Ela pareceu entender rápido, sem pergunta alguma. Logo ela se foi, exatamente da forma que apareceu. Ia se virando de costas, lentamente, guardando o celular na bolsa. Sorriu. Os dentes eram pontudos. Os olhos eram como os de uma serpente. Pupilas em fenda, negras como ônix.

Ian ficou zonzo novamente.


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Notas finais do capítulo

- Não deixem de comentar, sua opnião é sempre muito bem vinda :D



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