Insidious escrita por Bah


Capítulo 5
Essência




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O despertador tocou. Gemi ao erguer a cabeça machucada e apertei o relógio com violência, tentando fazer o barulho se cessar o mais rápido possível. Me arrastei até o banheiro e joguei no cesto toda a roupa que me cobria. Encarei meu corpo nu no espelho: magra demais, as pernas separadas, branca demais. A mancha de nascença vermelha se sobressaía em meu ombro cor de gelo e as olheiras já chamavam mais atenção que minhas sardas. Algo estava me matando lentamente dentro daquela casa.


Deixei que água morna massageasse meus ombros e molhasse meus cabelos, fazendo com que um filete de sangue e areia descesse até o ralo. Me vesti depois de alguns minutos e desci ainda com a toalha cobrindo os fios que me tomariam horas até serem completamente desembaraçados.

A cozinha estava em ritmo frenético, como se fosse meio dia e não oito horas da manhã. Margareth lavava alguns talheres com mais força do que era necessário. Pigarreei para que ela notasse minha presença, mas recebi um olhar de desprezo.

_Margareth, podemos conversar?_ disse com a voz mais baixa do que pretendia.

Como não obtive resposta, comecei alí mesmo, na frente de todos os outros empregados.

_Eu queria falar sobre ontem e...

Ela revirou os olhos, secou as mãos no avental engordurado e me puxou pelo braço até o canto.

_Tudo bem, menina, eu não estou com tempo agora.

_Me desculpe.

E então pensei ter visto menos frieza em seu olhar, mas logo recobrou a compostura.

_Pelo quê, exatamente?

_Fui rude. Apesar de saber que você não pesa muito as coisas, inclusive a mão, quando se trata de mim, eu não sou assim, portanto, me desculpe.

Percebi então que seus ombros caíram um pouco.

_Não quero que se desculpe também_ continuei _ só quero saber algumas coisas e acho que o mínimo que você pode fazer é me dar as informações que preciso.

_Tudo bem, o que quer saber?

Sua voz já não era tão áspera.

_Por que tudo isso? Pra quê tantos remédios? Eu já vi um Oliver lúcido com os meus próprios olhos e não obtive esse resultado com injeções. Por que tratá-lo como um bicho?

_Eu sigo ord...

_Não! O que você faz é abuso de poder. Você tem a ordem para aplicar o remédio quando ele está alucinado. Qual é, não estamos no século passado, ninguém com esquizofrenia é tratado assim hoje em dia.

_Era tudo o que queria saber?_ disse ignorando completamente meus protestos.

_Por que ele pinta os cabelos? Oliver é loiro, não é?

_Há coisas que vão muito além do seu entendimento, menina.

E então ela pousou delicadamente uma mão em meu ombro.

_Onde está o pai?

_Faleceu_ disse sacudindo a cabeça e retirando a mão com pressa, como se tentasse lembrar a si mesma do modo ríspido com o qual me tratava.

Assim que ela se afastou me dirigi ao quarto de Oliver. O enorme rádio velho estava no chão e Oliver deitado em cima dele, o ouvido colado, sem se importar com o som ensurdecedor. Era nosso CD.

Apesar do olhar inexpressivo apontando para o nada, pude notar uma leve reação ao me ver. Fui até ele quase automaticamente e me ajoelhei ao seu lado. Puxei a toalha da cabeça e deitei também. Fui completamente absorvida por suas íris dilatadas enquanto o ar quente que saia de seus lábios entreabertos preenchia meus pulmões. Nunca estivemos tão perto.

"Eu rendo quem tenho sido

por quem você é.

Nada me faz tão forte

Quanto seu coração frágil."

Eu piscava mais devagar a cada palavra da música, até que fechei os olhos. Aquele momento era íntimo demais de minha alma para ser visto por meu corpo.

Ele pegou minha mão e a pousou em seu coração. Fiquei ofegante quando seus dedos de unhas quase completamente roídas tocaram meu rosto, roçaram meus lábios, desceram em meu pescoço e fizeram o trajeto até o início da curva dos meus seios. Uma lágrima caiu e meu tórax subia e descia de modo frenético, meu corpo tremia, seu coração latente sob minha palma.

Apertei as unhas em seu peito ansiando por mais, meus mamilos entumecidos exigiam seu toque.

_Vai embora. _ Ele disse com sua voz rouca e baixa, me despertando de meu transe.

Me recompus envergonhada.

_Eu não posso deixar você..._ minha frase mais se pareceu com um sussurro.

_Não aposte tanto em mim, Alicia. Eu sou só o depósito de entranhas, a xerox. É para isso que sempre estive aqui.

Aquelas palavras não fizeram sentido algum para mim, mas eu pude sentir sua dor e remorso ao pronunciá-las. Fiz uma pequena menção de puxar sua cabeça em direção ao meu colo e ele ajudou. Se aconchegou em minhas pernas como uma criança assustada.

_Eu não me importo que você seja só a xerox. Não vou a lugar algum.

_Quando acabar naqueles buracos ou com pesos por dentro, não quero que acabe indo para o fundo também.

Eu me esforçava tanto para entender o que ele dizia...

_Não irei para o fundo. _ Respondi apenas.

Peguei o primeiro livro na estante atrás de mim e comecei a lê-lo para afastar o pavor de seu olhar.

_ "Alice estava ficando cansada de estar sentada ao lado de sua irmã e não ter nada para fazer..." _ ele pareceu sorrir_ "Para que serve um livro?" , pensou Alice, "sem figuras nem diálogos?"

_Gosto desse. _ Disse, por fim. Pude sentir o sorriso em sua voz.

_Eu também.

_Acha que eu poderia ser o Chapeleiro?_ Perguntou com uma sobrancelha arqueada.

_Ambos são malucos... _ dei de ombros.

Ele pareceu desapontado.

_Mas sabe de uma coisa? As melhores pessoas são assim.

Sua expressão se suavizou e uma de suas mãos pousou em minha bochecha. Beijei sua palma.

Margareth entrou com pílulas coloridas e um como d'água nas mãos. Oliver se levantou, jogou o corpo na cama e as engoliu sem protestar.

_Escute, querido, o que acha de ficar consciente a partir de agora? Mas você deve saber que terá que suportar as alucinações, algumas dores e...

_Eu prefiro! _ disse antes que ela terminasse de citar todos os efeitos colaterais.

_E a senhora Hill permitiu? _ perguntei animada.

_Não conto se você não contar. _ E saiu dando uma piscadela.

_Então quer dizer que você conseguiu domar a fera? _ perguntou Oliver meio grogue.

_Digamos que sim. _ Respondi com uma expressão vitoriosa.

Ele sorriu e não me contive. Sentei-me ao seu lado na cama.

_Você vai ficar mesmo, não é, menina teimosa?

Depositei um beijo em sua testa e segurei sua mão.

_Se ficar difícil de aguentar, lembre-se de que eu estou aqui. Vamos passar por isso juntos, eu prometo.

Ele negou com a cabeça.

_Eu não sei quantas pessoas já te deixaram na vida, Oliver, mas eu não serei uma delas.

_Não me chame assim...

Estranhei seu pedido.

_Não é para te chamar pelo seu nome?

_Quer dizer...você deve ter um apelido.

_Meus irmãos me chamam de Cici.

_E você gosta?

_Gosto, me sinto perto deles quando alguém me chama assim.

_Posso te chamar assim?

Assenti.

_E do que eu te chamo, então?

_De qualquer coisa não relacionada a Oliver.

_Bom, então eu pensarei em algo.

Me levantei da cama, quando ele segurou meu pulso com urgência. Virei-me assustada, mas me tranquilizei ao ver o sorriso provocador brincando em seu rosto calmo. Nem sinal de um novo ataque.

_Boa noite, Cici.

_Boa noite.

Joguei um beijo no ar e saí. Deslizei no batente da porta assim que a fechei atrás de mim.

Fui até o quarto e peguei minha agenda. Era nela que eu anotava todas as frases de Oliver. Eu tentava ignorar suas alucinações, mas era muito difícil para mim. Todo ser humano merece ser ouvido, e, por mais que parecesse loucura, eu tinha a certeza de que ele tinha coisas a me dizer. Aquelas frases não eram tão sem sentido assim. Eu tentava encaixá-las, encarava aquelas palavras por horas tentando achar um padrão, por mais absurdo que fosse. "Rasguem a pele", "eu não quis fazer aquilo", "sou a xerox, o depósito de entranhas", "buracos, pesos por dentro" eram só o começo. Tentava fazer relações, mas só conseguia rabiscos.

Não passava de oito da noite e eu já pressentia que a insônia me perseguiria. Pensei em ligar para a minha família, já que só me comunicava via internet há dias, mas não queria correr o risco de ouvir a voz pequena de Peter, ou o riso doce de Lilith e pensar em quebrar a promessa que fiz a Oliver. Peguei o álbum dado pela senhora Hill e resolvi dar mais uma olhada nas páginas. Eu precisava me lembrar de Oliver como quem ele realmente era, ver a sua essência naquelas fotos, mas por mais que eu me esforçasse, não era ele que eu via alí.

Os cabelos negros, embora eu soubesse que não eram realmente desta cor, brilhavam no sol. O corte era perfeito demais, os bíceps muito bem desenhados para pertencerem ao cara que eu conhecia. O Oliver que se comunicava comigo em seu jeito único, o Oliver que me causava o melhor arrepio que já senti na vida toda vez que arqueava a sobrancelha, jamais andaria tão engomado e bronzeado. Ele era profundo demais para exibir aquele sorriso raso.

Embora os traços fossem os mesmos, algo em seu olhar me fazia ver alguém completamente diferente. Sua beleza tão delicada e exótica estava banalizada naquelas fotos. Não conseguia aceitar que aquele cara com uma pulseira de prata e óculos escuros caríssimos, era o mesmo debruçado em uma janela com calças jeans rasgadas e um cigarro pendendo na boca. O homem que eu conhecia olhava fixamente em meus olhos e parecia deixar-me nua sempre que o fazia, expondo minha alma. O homem nas fotos olhava para bundas e carros importados.

Um dia pensei que talvez pudesse amar Oliver e até considerei ser amada por ele, mas então percebi que seu fascínio por mim podia ser somente a junção de suas alucinações e a falta de alguém para transar. Talvez seus olhos nem sequer me despissem, talvez fossem apenas vazios, apontando para um ponto fixo que, por conta do acaso, eram meus olhos. Eu não queria ser apenas uma única opção que ele teve em anos enclausurado, não queria ser o corpo, a vagina que espantaria suas frustrações e lhe traria o mínimo de prazer naquela vida miserável.

Busquei sua essência para trazê-lo para mais perto e só fiz crescer a barreira gelada que nos separava.

Escrevi e destaquei em minha agenda com letras garrafais: Não sou capaz de amar Oliver Hill.


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