Teus Olhos Meus escrita por Felipe Perdigão


Capítulo 35
Epílogo


Notas iniciais do capítulo

Quero agradecer a todos que deram uma chance para TOM, para todos que acompanharam a história até o fim e a todos que acima de tudo, acreditar no potencial da história. Fico muito grato de ter terminado essa história. Espero que gostem deste final. Muito obrigado, por tudo.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/649810/chapter/35

MARCOS

Caminhei para a saída da clínica sozinho. Desci para a calçada e peguei um táxi. Falei o endereço de Caio e Danielly. Ele logo acelerou na direção indicada.

— E aí, primo? — Caio me cumprimentou na sala. Ele assistia TV com uma caixa de pizza no colo. Vestia uma camisa social branca com gravata. Depreendi que tinha acabado de chegar do trabalho. Era finalmente um engenheiro de minas formado. — Tudo bem lá?

— Aham. Bem.

Sentei-me ao seu lado no sofá. Ele ofereceu um pedaço de pizza. Balancei a cabeça negativamente. Não acho que ele tenha se importado com a recusa. Ele parecia o mesmo de dez anos atrás. Somente havia ganhado dez anos na conta. Caio sempre seria Caio.

— E aí, como foi lá? — Dani apareceu.

Repeti a resposta que dei a Caio. Os dois, assim que a faculdade terminou, para a surpresa geral da nação, haviam se casado. Já que ainda não tinham filhos por algum problema com Caio, tinham me adotado como um. Eram as únicas pessoas que se importavam comigo no momento.

— Troca esse canal, Caio. — Danielly pediu.

— Eu preciso ver esse episódio de Grey’s! Eu não assisti quando saiu.

— Está na hora da minha luta! — Ela replicou.

Caio soltou um muxoxo de quem não estava afim de dar o braço a torcer.

— Par.

— Ímpar. — Danielly rolou os olhos.

Lançaram as mãos. Oito. Resultado par.

— Ganhei. — Danielly tomou o controle.

— Oito é par! — Caio reclamou.

— Meu querido. — Dani se ajeitou no sofá. — Você acha que oito é par.

Só observei a discussão na minha. Nas discussões caseiras do dia-a-dia Danielly costumava ganhar. Nenhuma novidade sob o sol. Ela tomava um sorriso de vencedora. Eu olhei para a escada que levava ao segundo andar, ao meu quarto.

— E o João Lucas?

— Pelo amor de Deus, eu já disse que não quero nenhum maníaco na minha vida.

Danielly e Caio pararam, me encarando. Eles levaram a sério.

— Para, gente, eu tô brincando. — tranquilizei ambos.

— A gente sempre tem medo, né, Caio? — Dani levantou uma sobrancelha.

— Não tô com ele mais. — respondi enfim.

— Não te comeu direito? — Danielly provocou, pegando ao mesmo tempo um pedaço de pizza.

— Danielly, vai se fuder.

A princípio foi estranho ficar com um homem que não era Antônio. Fiquei por necessidade física. Mulheres não desciam na minha goela, eu tinha me tocado que atuar no papel de heterossexual já não cabia. No fim do dia, me acostumei a casos rápidos de sexo. Somente sexo.

João Lucas, nos nossos poucos dias juntos, eram o suficiente para me lembrar de que ele não era o Antônio. O original. Eu estava ignorando suas mensagens. Ele desistiria em breve, como todos os outros.

— Vou pro quarto. — anunciei.

— Não vai querer pizza? — Dani indagou. — Napolitana, sem presunto.

— Não.

—Deve ter algo na geladeira então, se quiser comer mais tarde.

Subi para meu quarto no fim do corredor do segundo andar.

Fiquei deitado por um tempo, refletindo sobre minha atual vida e tudo nela que me deixava extremamente desgostoso. A falta que minha meus pais e meu irmão faziam era imensa. Eu não tive coragem nem de ir ao enterro. Se ao menos Antônio estivesse aqui, seria menos ruim.

Eu teria uma razão para caminhar, seguir em frente.

— Marquinhos. — ouvi a voz de Caio. Volvi o rosto. Ele estava na porta. Não havia ruído de televisão embaixo. Devia ter passado algum tempo. — Tudo bem?

— Oi.

— Como foi na psicóloga?

— Do jeito de sempre.

— De verdade?

— Nada demais, sério. Bem.

Ele se aproximou e também se debruçou na janela. Foi ele quem me encontrou após três tentativas de suicídio. Agora me mantinha sob os dois olhos.

— E como foi no trabalho de manhã?

— Normal.

— O que falei sobre esse tipo de resposta? — Ele me fitava com os olhos, repreensivo.

— Desculpa, pai. — revirei os olhos. — Só não tenho nada para dizer.

Ele suspirou.

— Não posso obrigar a se abrir.

— A eficiência do britador de molas pra variar estava baixa e tive que redimensionar toda a planta novamente. Pela terceira vez na semana. Bem, é isso, isso foi o ápice do meu dia.

— Melhor do que antes. Você poderia fazer isso mais vezes.

Ele sorriu, assentindo dando um tapa de leve em meu ombro.

Meu celular, embaixo do travesseiro, vibrou.

Provavelmente com uma milésima mensagem de João Lucas. Oh omizinho chato. Decidi ler. Puxei o aparelho para fora. Sim, era mensagem dele. Dizia: “Tudo certo, já entendi que acabou e não quer falar comigo. Poderia me dar um fora de um jeito melhor, né? Enfim. Foi bom”.

— Então estava ignorando ele, né? — obviamente, Caio havia lido.

— Mais ou menos.

Ele fitou o teto com um ar pensativo.

— Nunca esqueceu o Antônio.

O filho da puta é filho da puta demais pra sair da minha cabeça.

— Acho que vou dormir, Caio.

Na manhã seguinte, saí do quarto ainda com a cara inchada de sono. Eu tinha que estar no trabalho às oito. Passava de sete e meia. Nunca aprendi a acordar cedo e era complicado sem Antônio pra me cobrar tal postura. Peguei uma xícara no escorredor. Caio estava sentado na mesma com um iPad preto diante de si.

— Dani já foi? — indaguei.

Ele confirmou com a cabeça.

— E você?

—  Acho que você está meio atrasado, não está?

Encolhi os ombros.

— Consigo chegar a tempo, eu acho — menti.

— Eu entro só de tarde hoje, mas tenho coisas pra fazer no centro — ele tirou os olhos do dispositivo eletrônico e voltou a atenção para mim. — Se quiser uma carona.

Esbocei um sorriso amarelo.

Recheei dois pão de queijo com creme de avelã e me juntei a meu primo a mesa. Ele colocou pra tocar alguma música viral do momento, um clichê que meus ouvidos naquele momento não estava afim de suportar.  Tentando ignorar aquilo, enchi a xícara com café.

— Caramba! — após o brado, ele bloqueou o tablet e o repousou sobre a mesa.  — Hoje é sexta, né?

É sim, dia de chegar em casa depois do serviço e poder dormir sem peso na consciência.

— Uhum. — confirmei.

— Eu estava pensando, faz tempo que nós não saímos juntos.

Acenei com a cabeça confirmando. Com o cenho franzido, eu queria entender o que meu primo estava tramando.

— Que tal a gente sair hoje?

— Onde? Você sabe que fui expulso da maioria dos barzinhos da cidade por ser “obsceno e promíscuo” demais, segundo eles, é claro.

Ele riu.

— Danielly comentou comigo sobre uma semana acadêmica na federal...

Se tinha uma coisa que eu não estava era com nostalgia da universidade. Muito menos saudade. Depois que me formei, tudo que eu fiz foi ignorar tudo a respeito de lá. Na verdade, eu odiava tanto aquele espaço, que após os hospitais psiquiátricos que enfrentei durante e pós pegar meu canudo, preferi fazer minha pós em beneficiamento mineral a distância.

Caio estava usando que tipo de entorpecente para tentar me fazer entrar em outra universidade?

Ele bateu em minha nuca. Aparentemente, tinha falado amais e eu o ignorado perdido em meus pensamentos.

— Escutou o que eu disse, pestiado?

— Semana acadêmica, aham.

Por que diabos isso, Caio, tá chapado?

— Tudo bem? Vai ser legal. A gente só vê uma apresentação e vai embora.

— Hoje?

— É. Seis horas. Já saiu do trabalho neste horário, certo?

— Que seja.

Alexandra – uma das poucas pessoas da minha época de graduação que eu ainda mantinha contato – vivia dizendo que eu tinha que enfrentar meus medos. Eu podia imaginá-la falando que ninguém me chamaria de interesseiro, nem diria que eu só ia bem nas matérias porque estava “comendo o professor” e que ele tinha desaparecido misteriosamente por minha culpa,  que todo aquele pessoal estava muito longe agora. Às vezes eu a chamava de insuportável em pensamento porque eu simplesmente não estava afim de agir daquele modo.

É difícil, merda!

Mas, quer saber?

Que se foda!

— Não vai esquecer, está bem? — Caio finalizou antes de me apressar pro serviço.

[...]

Às cinco e meia, Danielly já me levava no SUV que havia comprado junto com Caio logo que o ano se iniciou. Eu não dirigia, não mais, não depois de todos os traumas que adquiri nos últimos anos.

Seis em ponto estávamos na federal da cidade. Interior de Minas Gerais, outra universidade, mas de certo modo tinha a mesma estrutura.

Era fácil me imaginar calouro novamente, o enjoado estudante de engenharia.

— Nossa. — Danielly parou diante do volante. — Parece que somos estudantes de novo.

Deus me livre. Cerrei os olhos. Por que diabos eles me trouxeram aqui?

— Primo, eu sei que talvez esteja pedindo um pouco demais de ti. — Caio falou, ajeitando meu cabelo. — Se não quiser ficar, a gente vai embora.

— Não, está tudo bem — dei um sorriso fechado. — Não sou mais aquele Marcos.

— Eu sei. — me olhou. — Mas tudo bem, mesmo?

Suspirei e abri logo a porta. Um monte de pirralhos — sim, eu via aqueles universitários, em média dez anos mais novos, como um monte de pirralhos — andavam em grupos ao redor. Dani também saiu. Começamos a descer uma estradinha de pedra que levava a um prédio colonial de pelo menos quatro andares.

Notei o sem número de pessoas atuando no papel de Exatas. Não era um lugar para o pessoal de Humanas. Mesmo assim, havia alguns perdidos ali.

— Que povo esquisito.

— Marcos!

Ué, se eram esquisitos na real.

Danielly sorriu e me empurrou rápido para o primeiro andar. Li “XXXIV Semana Acadêmica de Engenharia de Minas, Geologia e Metalurgia”. Um monte de gente ocupava o que seria um auditório. Fomos obrigados a sentar na frente, segunda fileira. Todo mundo queria ficar atrás. Eu ainda me perguntava o que estava fazendo ali, mesmo sendo um amante da área.

— Boa noite à todos — alguém de um ponto baixo demais para ser visto anunciava. — Sejam todos bem vindos. Nós do Instituto de Ciências Exatas e da Terra estamos felizes de apresentar o nosso próximo palestrante, nosso querido Professor Doutor Antônio Fernandes Scodelario, um dos maiores especialistas em mineralogia e tratamento de minérios da atualidade.

Os meus órgãos, dentro de mim, pareciam ter parado de funcionar. Eu não sabia se estava sonhando. Caio segurou minha mão com força e sussurrou um “fica calmo”. Eu não tinha certeza se conseguiria. Antônio, O FILHO DA PUTA DO ANTÔNIO subiu ao palco. Ele estava com a barba feita, o que era um milagre divino, e estava vestido formalmente.

Era o meu professor, sobre isso não existia dúvidas.

— Obrigado, fico honrado com suas palavras. — ele disse. — Boa noite.

Balancei as pernas, relembrando tudo o que aprendi a respeito de “ficar calmo” na minha vida psiquiátrica. Ele falou que havia chegado de Vancouver durante a manhã. Vancouver. O meu ex-namorado, ex-chef, ex-professor... estava em Vancouver. Canadá.

Pelo menos ele pareceu não me notar na segunda fileira.

Limpei o suor que jorrava da testa. Caio apertou os dedos na minha pele.

— Eu sei que todo mundo está aqui só pelas horas extracurriculares mesmo. — risos. — mas para começar...

Enfim começou a discorrer. O tema da sua palestra era “Como Reduzir O Uso Do Mercúrio Na Lavra Garimpeira De Ouro De Uma Forma Eficaz”. Eu não ouvi porra nenhuma. Tudo o que eu via era seu rosto pálido que flutuava diante de mim, longe de mim. Minha vontade era de gritar, “Por que me abandonou?”, mas eu sabia o porque dele ter me abandonado.

— É ele.

— Sim. — Caio confirmou.

A palestra finalizou. Todo mundo bateu palmas. Logo ele desceu e sumiu de minhas vistas.

— Eu preciso achar ele, Dani. — levantei.

— Marcos, não! — Caio agarrou meu braço. — Não faz merda, pelo amor de Deus.

— Eu preciso falar com ele!

Ultrapassei a multidão que estava atrás. Logo estava no lado externo. Ele conversava em francês com alguém no celular. Prestes a alcança-lo, ergui a mão para puxar sua camisa. Aquele otário! Todavia, me contive, a tempo de não puxar sua camisa, mas não a tempo dele não ver que eu estava com a máxima intenção de fazê-lo.

Ele baixou o telefone. Seus olhos eram os mesmos que me tiraram do sério dez anos atrás.

— Marcos.

— Antônio.

— O que faz aqui? — questionou polidamente.

— O que diabos VOCÊ faz aqui?

Manter-se calmo, manter-se calmo. Eu queria explodir, mas tinha que me manter calmo. Era o meu dilema de anos. Ele umedeceu os lábios com a língua, me encarando por alguns segundos de silêncio. Então respondeu.

— Bem, eu vim dar uma palestra. O que está fazendo aqui?

Eu queria explicações dele. Não dar minhas explicações.

— Por onde esteve?

— Vivendo minha vida.

— Você sumiu, Antônio. Dez anos atrás!

Ele respirou fundo. Eu desejava saber se eu o afetava ainda. Eu desejava beijá-lo. Eu desejava me jogar em seus braços. Eu desejava repetir todas aquelas noites de sexo. Eu desejava que ele me perdoasse.  Por amor de todos os deuses!

— Marcos, se controla.

— Eu estou bem. — respirei fundo só para garantir que fosse verdade, ao menos por fora. — Eu estou bem.

Ele guardou o telefone.

— Eu tenho que voltar para meu hotel.

— Ainda é covarde?

— Ele fechou os olhos e se virou na direção da saída do prédio. Mas parou. Volveu o olhar pra mim.

— Pra que isso?

— Seu idiota, eu sempre fui apaixonado por você. — soltei em tom dois décimos mais alto. — E eu sou o maior veado dessa porra de país que te ama, muito.

Tom parou, me olhando com que sem reação. Era o que eu deveria ter feito acreditar há um pouco há mais de dez anos, mas eu era eu, burro demais para saber, estúpido demais para agir. E ele, como o costume de antes, me deu as costas e desapareceu. Caí sobre meus joelhos. Era o outro abandono. Danielly surgiu do amontoado de pessoas.

— Marcos, Marcos. — se ajoelhou ao meu lado.

— Eu disse pra ele que o amava. Ele foi embora.

Caio se juntou a nós e encostou a testa na minha.

— Pelo menos agora disse, né?

ANTÔNIO

Eu observava a noite cintilante da cidade, sentado em uma poltrona diante da janela do hotel. Já fazia quase três horas que cheguei da universidade. Tinha jantado no restaurante abaixo, respondido meus orientandos e tomado um banho desde então. Agora eu finalmente sentava para pensar.

Marcos.

Por dez anos fugi de Marcos. Comecei naquela noite, indo pra casa de Alexandra. Ela me disse que jamais me deixaria olhar na cara de Marcos novamente. Ela nem sabia que eu mesmo já estava disposto a não fazê-lo. Mesmo algum tempo depois tendo concordado que se nos encontrássemos novamente, ficaríamos juntos.

Eu estava magoado demais e com medo. Marcos não mudaria por mim. Deixá-lo e começar uma nova vida doeria muito menos.

Ao chegar no Canadá, trabalhei igual um condenado para ter um bom nome dentro da University of British Columbia, tive que me envolver em inúmeras pesquisas, ainda tive dificuldade para arrumar orientandos por ser novo na instituição e ainda sim estrangeiro. Demorou, mas consegui reiniciar minha jornada. Mas sem Marcos. Sem o coração sendo rasgado a cada dia mais.

Cortei qualquer relação com o nome dele. Meus familiares não falavam absolutamente nada a respeito. A única pessoa da minha ex-universidade com quem eu mantinha conversa era Alexandra e ela imitava meus familiares. O que Marcos fez durante os últimos anos, eu não tive ideia. Somente uma vez escutei alguém o mencionando de novo.

— Antônio?

Era André no FaceTime por vídeo-chamada. Eu estava há quase um ano fora do Brasil.

— Oi.

— Ponderei por um segundo se deveria contar que estava a mais de 16h de distância. Decidi enfim que sim.

— Vancouver.

— O que você tá fazendo no Canadá?

— Soube alguma novidade de mim?

Ele assentiu.

— Soube que largou do Marcos e sumiu. É o que se conta por aqui. O Marcos...

— Não fala. — interrompi.

— Mas Antônio...

— Ele tá vivo.

— Tá.

— Só me avisa se não estiver mais.

Depreendi que estava durante todos aqueles anos, pois André ainda falava comigo vez ou outro (ele estava na Austrália) e não deu nenhuma notícia acerca de mortes. Até que tive a confirmação horas atrás. Marcos em carne, em osso na minha frente. Um verdadeiro fantasma do passado para me assustar. E olha onde estávamos: Minas Gerais.

Última coisa que eu iria imaginar era me encontrar com Marcos ali.

Na verdade eu já o tinha o visto na plateia. Ele estava na frente. Mas pensei que fosse alguma alucinação da minha cabeça. Estava mudado. Cabelo cortado cuidadosamente e uma barba relaxada em contraste. Chegava quase a ser engraçado. Eu riria se não fosse tudo mais. Quando ele finalmente me alcançou do lado de fora eu acreditei.

E doeu.

Doeu porque apesar de todo o esforço Marcos não saiu da minha cabeça.

Doeu porque eu não esperava e portanto não tive como preparar.

E doeu principalmente porque ele disse o que eu sonhei ardentemente que dissesse.

Seu idiota, eu sempre fui apaixonado por você.

Quem era aquele cara?

Muito diferente do Marcos orgulhoso que eu conhecia.

Meu celular tocou. Levantei da poltrona e caminhei para meu celular esquecido sobre a cama. Era Akin.

— Oi. — eu disse.

— O que aconteceu naquela hora?

O grande amor da minha vida apareceu vindo simplesmente do nada, desculpa, eu não soube como agir.

— Eu só encontrei uma pessoa que não via há muito tempo. Foi um susto.

Ah. Tudo bem. Volta pra  Vancouver em breve, certo?

— Sim, em breve.

— Queria conversar melhor, Antônio.

— A gente conversa aí.

Desliguei uns minutos depois.

Conheci Akin em um verão na Croácia. Descobrimos que éramos da mesma universidade no Canadá, eu como professor da exatas e ele de escrita criativa. Tivemos uma noite juntos, mas como todos os casos que tive após Marcos, se resumia a isso apenas. Ele quem insistia em me ligar.

Deitei na cama, tornando a atenção para Marcos. Se ele não tivesse parado na parte de “ainda é covarde?”, eu teria certeza que ele era ele e não necessitaria emaranhar minha cabeça com aquele velho problema. Porém, mesmo depois de todo esse tempo ele admitiu ainda pensar em mim.

Como que eu poderia lidar?

Agora eu nem tinha expectativas de vê-lo novamente.

Eu sabia que estava na cidade. Onde e por que eram perguntas sem respostas.

Eu deveria vê-lo?

Minha cabeça queimava.

Já esqueceu o que ele fez com você, Antônio? O que ele disse? Como ele te fez sentir? Cerrei os olhos e recordei da nossa última vez. Todo o mel que abriu caminho para o fel. Era demais. Eu não poderia perdoar. Marcos quebrou meu coração e ainda pisou em cima dos cacos. Eu iria realmente jogar no lixo toda dedicação que tive em estar longe e a salvo dele?

Peguei meu computador.

Mas eu precisava ao menos saber o que aconteceu com ele. Loguei no facebook. Pus seu nome na caixa de pesquisa. Nada. Suspirei. Pensei um pouco e pus o nome de seu primo. Bingo! Ele trabalhava agora em uma empreiteira em Minas e era casado com uma Geóloga. Bastou alguns cliques e achei um telefone, aparentemente residencial, que era para se tratar de negócios. Segurei o celular, refletindo se discava ou não. Disquei. Todavia, não cliquei para ligar. Eu sou burro ou o quê? Pare com isso, Antônio.

Atirei o celular no travesseiro.

Eu não poder cometer essa atrocidade com meu coração.

[...]

Amanhã seguinte já havia chegado e decidi me dar total folga. Como não era uma idade muito grande, tinha mais ou menos cem mil habitantes, resolvi dar uma volta. Peguei um táxi e fui até um café no centro. Enquanto um garçom de cabelos loiros deixava meu pedido sobre a mesa, chequei meu telefone. O número residencial de Caio e Danielly ainda estava lá.

Será que eles estão morando juntos?

Mesmo número....

Isso é ligar para um dos dois, não para Marcos necessariamente.

Mas os três estão em Minas.

No mínimo curioso.

Dei um longo gole de café e liguei de vez.

Eu iria pegar um avião em poucos dias. Ainda que eu estivesse fazendo uma merda tamanha, assim que voltasse para a América do Norte, ela não me atingiria.

— Oi. — A voz ainda familiar do meu ex-aluno Caio atendeu após de uns toques. Estava sonolenta. — Bom dia.

— Bom... — hesitei. Meu estômago embrulhava. E nem era porque fazia anos que eu tinha falado com Caio. Era o início de uma ponte de volta pra Marcos. — Dia.

— Eu conheço você?

— Sim, conhece.

— E quem é?

Baixei a xícara e fiquei em silêncio um pouco. Consegui escutar Danielly falando sobre a roupa suja, uma zoada de aspirador de pó e um som de música longe.

Caio tossiu do outro lado da linha.

Esperava que eu respondesse.

Antônio. Seu professor, se tiver dificuldade em lembrar.

Ele emudeceu.

— Quem é, Caio? — Danielly perguntou.

— Lá do trabalho. — Caio mentiu.

— Trabalho? — eu ri.

— Pelo amor de Deus, hoje é sábado! Esse povo deveria deixar a gente em paz! — Ela resmunou.

— O que você quer, cara? — Caio voltou após, ao que pareceu, Danielly se afastar.

Me dá algo de Marcos. Parei. Por que tô fazendo isso comigo mesmo? A vontade automática foi de desligar. Eu me mudei, passei dez anos longe... O que ele estava fazendo naquela palestra? Por quê? Por que me atormentar de novo?

­— Eu...

— Eu vou subir para falar do quarto. — falou baixo, me interrompendo. — Espere.

Continuei na linha até ele voltar.

Pedi mais uma xícara de café.

— Então está na cidade? — Ele questionou com um suspiro. — Professor!

— Como sabe que estou na cidade?

— Eu também estava na palestra ontem. Acho que não me viu.

— Como assim?

— Ele mora com a gente, Antônio. Ele estava lá embaixo, por isso eu não podia falar.

Vacilei com o celular. Evitei saber qualquer coisa sobre a vida do meu ex. E a primeira coisa que eu descobri foi que ele morava com Caio e Danielly. Mas, por quê?

Marcos me custou tudo que eu tinha. Tive que começar a vida praticamente do zero, socialmente falando.

— Ele passou por muita coisa. Não sei se sabe.

— O quê?

— Quer vir aqui? Sua escolha. Se falar que te ajudei, morro negando.

Passou um endereço muito rápido e desligou. Mordi o lábio, o endereço já memorizado. Minha escolha, claro. Desgraçar minha vida outra vez por alguém que foi amor perdido ou retornar ao meu quarto no hotel para ocupar a mente com algo menos doentio. Não faz isso, Antônio. Para de ser estúpido, você escolheu estar longe disso, não retorne.

38 anos nas costas. Eu tinha plena maturidade para ter ciência de que era burrice ao quadrado.

Não, eu não iria.

Eu não poderia ir.

— Moço. — O garçom retornou para apanhar minha xícara. — Onde fica a avenida Fernando Correa?

Não irei, só estou perguntando.

— Daqui três ruas. Paralela a essa aqui.

— Obrigado.

Batuquei os dedos na mesa. Fantasmas do passado devem continuar sendo fantasmas. Alexandra me mataria assim que soubesse o que eu estava cogitando. Alê, eu juro que se eu não o tivesse visto, eu não iria procurar saber de nada, e principalmente, se ele não tivesse me dito aquilo. Eu não to sabendo lidar, cara! Quando eu voltar pra Vancouver, tudo será enterrado de novo. Prometo.

Paguei a conta e deixei o café.

Em instantes eu já caminhava em direção do endereço que Caio me dera.

Ao chegar na rua, avistei uma casa amarela de dois andares.

Não grande demais, mas também não pequena. Ergui o dedo para tocar a campainha com a intuição de que deveria voltar antes que o fizesse. Entretanto, a porta se abriu. Danielly apareceu, vestida em um short amarelo e uma camisa preta.

— Te vi da janela.

— Ah.

— Caralho, Antônio.

Caio surgiu atrás dela.

— A gente pediu para ele ir na padaria. — ele disse. — Sobe lá em cima. O quarto dele é o último.

— Olha...

Já que ele não estava em casa, a vontade que eu tinha era de fugir. Ainda dava tempo de não estragar tudo o que fiz durante todo aquele tempo. Mas eles me empurraram escada acima sem me escutar ou me dar atenção. Logo eu me encontrava em um quarto praticamente vazio, só com uma cama e um guarda roupa.

— Sabe que tá um frio da desgraça lá fora? — Ouvi sua voz assim que o casal desceu. Um iceberg perfurou meu coração. — Tá aqui o pão.                   

Andei em círculos de braços cruzados. Por que eu estava cometendo tamanha maldade comigo mesmo? Sentei na cama.

— Vou tomar um banho quente por conta do sereno. — ele falou depois.

Arrumei os botões de minha camisa, tentei respirar direito. Sério que eu estava insistindo em Marcos? Mas agora não existia saída. Ele estava a pouquíssimos metros de distância. Eu ouvia seus passos. A maçaneta girou. Engoli em seco e levantei o rosto para o encarar. Ele me encarou de volta sem cor.

— O que faz em MG? — indaguei.

Marcos se virou para a janela aberta com as mãos na nuca. Ele vai surtar? Segurei os joelhos, aguardando que falasse alguma coisa, qualquer coisa. De verdade. Que pudéssemos ter uma conversa. Ele balançou a cabeça por uns segundos e enfim retornou o olhar para mim.

— Foi horrível ficar sem você.

— Você me mandou embora.

—Mas também fui atrás.

— Foi tarde demais.

— Eu sei.

— Sabe?

— Eu sei que te tratei mal todo o tempo e que dei o foda-se por tudo que você sentia e estava passando no momento.

Eu nunca, nunca mesmo, imaginei que Marcos pronunciaria de fato todas aquelas palavras. Nem consegui responder. Juntei as mãos na frente do rosto sem ter ideia de como agir. Não era justo comigo. O que estava acontecendo? No duro, quem era aquele cara? O que eu perdi da vida dele? Porque o Marcos que deixei no aeroporto...

— Marcos, sério, você tem ideia do que fez comigo? — afrouxei o controle próprio. — Acabou comigo, Marcos. Você não pode aparecer do nada na minha vida e dizer que sempre foi apaixonado por mim, que...

— EU SEI, ANTÔNIO! Acha que eu não fiquei remoendo essa merda durante dez anos da minha vida?

Ele respirou fundo.

— Só me dá uma segunda chance, eu juro que conserto tudo que eu fiz.

SEGUNDA CHANCE, MARCOS? SEGUNDA CHANCE? EU TE DEI MIL CHANCES. VOCÊ DESPERDIÇOU TODAS.

— Marcos, eu nem deveria ter vindo aqui. — Me pus de pé. — Tarde demais pra tudo isso.

— Para de ir em bora, cace... Para de ir embora. Deixa eu falar. — Marcos replicou. — Por favor.

Eu não sabia o que fazer. Metade de mim queria sair correndo, já a outra, queria beijá-lo.

— Até quando vai ficar na cidade? — questionou. — Sai comigo.

Sair com ele? Ele realmente está me chamando pra sair depois de ter me feito sentir o maior lixo do universo?

— Hoje à noite. Oito e meia. — Ele sugeriu.

Falou de um restaurante aparentemente famoso da cidade. Minha cabeça zumbiu. Quem era aquele cara? Eu queria escutá-lo, mas eu tinha medo. Medo de estar só me iludindo. Medo de ser somente uma capa mais bonita.

Balbuciei que iria pensar sobre e saí.

Ainda ouvi um “vou te esperar lá” quando passei da porta direto pra rua.

[...]

— CLARO QUE NÃO, NÉ, ANTÔNIO?

Era Alexandra por Skype, sete horas depois, eu tinha voltado para o quarto de hotel. Ela estava com o filho no colo, Jonas, de dois anos. Seu marido estava perto, sentada em uma cadeira com o celular na mãe, claramente escutando tudo, mas fingindo que não.

— Você tá doido? — Alexandra continuou. — Tô pouco me fudendo se ele parece ter mudado. Tô pouco me fudendo se pediu por favor. Tô pouco me fudendo. Não dá pra perdoar, você não vai perdoar. Caralho!

Jonas ergueu os olhos pretos, obviamente assustado com os palavrões.

— Alê, eu vou embora já já...

— EU NÃO ESTOU ACREDITANDO QUE VOCÊ REALMENTE QUER IR. VAI SE FUDER, VOCÊ É MUITO TROUXA, MEU DEUS.

Eu enfim contei sobre tudo o que aconteceu desde o momento em que vi o Marcos na universidade. Não me surpreendi com a resposta, Alê era o ser que menos gostava de Marcos em todo o planeta. Mas eu estava tentando a aceitar a proposta de Marcos. Eu iria embora em breve, se não fosse bem, eu estaria dentro de um avião dali umas horas.

— Posso manifestar? — seu marido ergueu um dedo.

— NÃO. — Alexandra respondeu.

— Já me manifestando apesar da mulher dizer que não posso. — ele se aproximou. — Eu acho que Alê está sendo radical.

— Aquele filho da puta disse coisas horríveis sobre a saúde mental de Antônio. Tentou anular quem ele era. — Alexandra exclamou.

— Tá, eu sei. — o rapaz assentiu. — Mas mano, já foram dez anos. O Antônio disse que Marcos fez dez mil coisas que não fazia antes. Tem que dar uma chance para ver o que aconteceu, né? O Marcos claramente amadureceu. Meu voto é que você vá.

Alexandra ajeitou a franja do cabelo (era corte novo) com uma carranca.

— Vou pedir o divórcio!

— Vai nada, me ama demais. — ele piscou.

— Tom, se tu for, eu juro que saio de Botucatu pra te matar. — Alexandra ignorou o marido.

— Supus que diria isso. — ri sem querer ri.

— Ela não vai não. — o rapaz interviu.

— Vou tomar banho. — falei.

— VOCÊ OUSA IR! — exclamou minha amiga.

— Eu não disse nada, disse que ia tomar banho.

Desliguei a vídeo-chamada.

MARCOS

Oito e quarenta e cinco era o que marcava meu celular e o relógio acima da porta de entrada do restaurante. Juntei as mãos, ignorando os olhos dos funcionários. Antônio não disse nada sobre aparecer. Eu quem o chamei no susto e ele foi embora. Balancei as pernas. Ele tá preso no trânsito (que trânsito?), ele perdeu a hora, ele recebeu uma ligação importante.

ANTÔNIO NÃO ME DEU UM BOLO QUE EU SEI.

— Ainda esperando? — o garçom perguntou.

Seu tom parecia querer jogar na minha cara o fato.

— Sim.

—Okay.

Olhei para minha imagem no espelho frontal. Eu vestia uma camisa vinho de mangas ¾ e calça cinza. Meu olhar exprimia toda a esperança que eu tinha de que ele viria. Vou esperar até nove e dez. Um gosto amargo me veio à garganta. E se ele me deu um bolo mesmo? Eu precisava conversar com Antônio. Eu precisava contar tudo que estava preso dentro.

Eu só tinha aquela oportunidade.

Eu sinceramente não esperei que ele chegasse no meu quarto durante a manhã. Eu não havia me conformado com ELE ME DEIXANDO lá no aeroporto. Pelo menos ele sabia que eu ainda era apaixonado por ele.

No entanto, ele no meu quarto reacendeu todas as esperanças de tê-lo de volta.

Eu só desejava uma chance agora.

Uma única chance era o suficiente.

O tempo passava. Cada minuto era uma gota de suor.

Nove.

Nove e um.

Nove e dois.

Nove e três.

Nove e quatro.

Nove e cinco.

Nove e nove.

— Oi, Marcos.

Ergui os olhos. Marcos. Ele veio, ele não me deu um bolo. Ele veio! Meu coração disparou como costumava disparar quando aquele ser estava próximo. Ele sentou na cadeira da frente. Usava uma camisa branca, uma jaqueta preta, assim como a calça. Tentei arrumar minha postura, passando de ansioso para seriamente nervoso. Todas as palavras que ensaiei horas e horas no banheiro fugiam.

— Oi. Antônio. — pausa. — Você veio.

— Mas pensei seriamente sobre não vir. — Ele respondeu.

Respirei fundo. Eu sabia que ele estava magoado e possuía o direito de estar. De todas as pessoas, Antônio foi quem mais desprezei, embora nutrindo ao mesmo tempo sentimentos por ele. Porque eu era o idiota. Tive que perdê-lo, e perde-lo de verdade, para entender que ele não era minha posse pessoal, que ele não estaria disponível para sempre.

— Tudo bem. Eu entenderia se não tivesse vindo.

Ele balançou a cabeça.

— Quem é você, cara? Olha esse corte de cabelo. Difícil até de te reconhecer fisicamente. Essa barba por fazer...

Toquei na barba no meu queixo.

— Você está quase branco. — Eu disse.

— Nunca vou ser branco. — Antônio deu de ombros. — É só a falta de sol no Canadá.

O garçom veio pela segunda vez e dessa vez fizemos pedido. Mas nenhuma comida. Eu pedi água e ele um suco de melancia com limão. Ficamos em silêncio até que essas bebidas chegassem. Silêncio constrangedor. Só depois do primeiro gole no suco que ele falou outra vez.

— O que houve com Caio?

— Casou.

Ele riu.

— Como assim?

— Sei lá. Casou, ta feliz com o emprego, com a vida...

Vez em quando eu achava que eu quem os uni. Foi após um porre de vodka em que eu quase morri que eles se aproximaram ainda mais. Ou sei lá. Eles estavam bem, muito bem. Muito melhor do que eu. Eu não sabia o que seria da minha vida sem o Caio e sem Danielly ao meu lado. Por eles que eu não estava completamente sozinho.

— E como vocês chegaram até essa cidade?

— Eles dois conseguiram um emprego bacana aqui e eu não tinha nada a perder, vim também.

Como bagagem.

— E você?

Meu pai está internado em uma casa de apoio porque não lidou bem com a morte da minha mãe e do meu irmão. E mesmo que tivesse bem, eu teria dado o fora. As coisas entre a gente não estavam fáceis, afinal, nunca fora. Não tinha nada sem minha mãe e Antônio aquele lugar.

Antônio estava fazendo perguntas demais, chegando perto demais do ponto.

Levei o copo de água aos lábios. Eu queria falar, mas assim não.

Assim não conseguia.

Ele cruzou os braços como quem aguardava.

— Você não pensa em voltar pro Brasil? — Indaguei, procurando fugir.

— Não sei, provavelmente as coisas continuem do jeito que estão.

Vancouver era demasiado longe. Ele olhou ao redor por um minuto.

— Por que algo me diz que você ainda parece ser o mesmo de sempre?

— As pessoas mudam. — Tudo o que pude pronunciar.

— Quem me garante que mudou? — Antônio franziu o cenho. — Tenho nenhuma garantia aqui, Marcos.

— Eu fiquei sem você.

— Marcos, foi uma bênção ficar sem você. — Ele esfregou os olhos, suspirando e apoiando as costas na cadeira. — E eu nem sei ainda porque cometi a idiotice de vir falar contigo.

Ele não estava somente magoado. Antônio estava com raiva real. Eu me recordava de como ele costumava falar comigo e não era daquele jeito. E todos os sentimentos juntos com as palavras não-ditas ardiam mais que brasa quente em pele dentro do meu peito por parecer rque jamais alcançariam o destinatário. Talvez não existisse chance. Talvez aquele era o fim.

Convenhamos que eu merecia.

— Fala alguma coisa. — Ele bufou com frustração. — Foi você quem me chamou pra vir aqui.

— Eu sei que te machuquei.

— Não, Marcos. — Antônio esfregou os olhos novamente. — Você não tem ideia na verdade. Você não tem ideia de como estragou minha vida e minha saúde mental. Eu tive que reiniciar tudo do zero. Por sua causa.

— Eu não queria que fosse assim.

— Mas.

Cobri o rosto com as mãos. Não. Eu não via saída. Antônio não aparentava estar com vontade de me perdoar. Okay, eu teria que conviver com isso. Eu viveria o resto da minha vida miserável sozinho, sendo o filho adotivo de Dani e Caio até que eles se cansassem de mim, sem Antônio, sem minha mãe, comprimido pelo que fiz.

— Eu vou embora. — Antônio levantou. — Tenho que dormir cedo. Chega, Marcos.

Com um aceno, chamou o garçom pela conta. Pagou as bebidas. Eu observei paralisando, assistindo o cara que eu na verdade amava indo embora novamente. Por quê? Cerrei os punhos enquanto ele saía. Não, não, não. Ele iria pegar o caralho de um avião agora a pouco e Vancouver estava além das minhas possibilidades.

Eu o segui na rua.

Correndo.

— ME PERDOA, PROFESSOR.

Gritei.

Aquela cidade não tinha trânsito para que todo mundo não parasse e prestasse atenção em um loiro acabado como eu na calçada. Antônio estava prestes a entrar num táxi. Ele segurou a porta, me encarando. Ele não tinha que ficar comigo. Eu só desejava que me perdoasse. Se ele me perdoasse, talvez, eu me perdoaria também.

— Por favor. — Acrescentei com desespero.

Ele fechou a porta do táxi. O táxi sumiu. Eu me aproximei.

— Quer que eu te perdoe? — Perguntou.

— Só isso.

Antônio olhou para o céu, me olhou. Sua respiração se marcava no ar frio da noite. Meu coração ardeu com desesperança. Porém, ao menos, pedi o que mais necessitava acima de tudo. Ele poderia não me perdoar, mas, tentei. Seria menos amargo no final. Ele enfim voltou os olhos para os meus.

— Vem cá, Marcos.

Ele me fez sentar numa espécie de banquinho na frente de uma loja de eletrônicos fechada.

— O que aconteceu com você?

Peguei meu celular do bolso. Procurei no Google os termos das notícias que estavam relacionadas ao acidente. Meus dedos tremiam. Eu duvidava que ele não soubesse, mas. Passei o aparelho para suas mãos.

— O quê? — Franziu o cenho.

— Só lê.

Houve-se um silêncio.

— Meu. Deus.

Não encarei seu rosto. Foquei nos meus pés. Eu me esforçava para não lembrar, contudo, como não lembrar de algo que teria consequências até minha própria morte?

Ele tocou no meu braço, um toque de verdade em dez anos.

— Marcos, olha pra mim.

Balancei a cabeça na negativa, as lágrimas se acumulando no canto dos meus olhos, prontas para rolarem.

— Não.

— Eu não sabia. Meu Deus, eu não sabia. Ninguém me disse nada e eu mesmo nunca procurei saber de alguma coisa sobre você. Eu não sabia, Marcos.

— Não importa, não mais.

Eu queria me convencer de que não importava. Queria. Todavia, chorei de uma vez. Antônio carregou minha cabeça para seu colo. Meu corpo se sacudiu enquanto um dos meus fantasmas tomava lugar no que havia de escudo em mim. Ele acariciou meu cabelo, em silêncio. Eu me encolhi, suas mãos eram meu único conforto, conforto momentâneo.

Escapei do seu colo.

Antônio manteve a mão no meu braço.

— Não sinta pena de mim. — Subitamente desprezei a mão que tanto considerei dois minutos antes.

— Eu não sinto. Eu tô vendo que tu foi mais forte do que tu pensava que era.

— Eu não sou forte, seu idiota! — Por pouco não gritei, olhos ainda úmidos.

Ele sorriu.

— Eu só fugi, Marcos. Fugir não é ser forte. Eu não estaria aqui se fosse você.

Os carros passaram diante de nós com seus faróis, nos iluminando de tempo em tempo. Visto que o poste mais próximo estava na frente do restaurante, estávamos meio que no escuro. Senti que deveria ir pra casa. Antônio não iria esquecer o que fiz a despeito do meu pedido. Continuar com ele só machucava.

— Quem disse que eu queria estar aqui? — Finalmente respondi. — Eu vou para casa. Boa viagem de volta pro Norte.

[...]

Eram seis da manhã e eu não parava de rolar em minha cama solitária. Não teria trabalho ainda. Era domingo. O que na verdade piorava tudo. Ter o trabalho como algo para distrair a cabeça seria bem melhor do que continuar na cama pelas próximas horas. Eu imaginava Antônio pegando um avião. Perdido para sempre de mim.

Eu quem fui embora agora, mas porque não vi saída.

Ele não iria me perdoar e ficar falando de minha mãe era impossível para minha cabeça. Mas tudo bem. Eu tentei. Eu disse que o amava. Que era apaixonado por ele. Eu pedi que ele me perdoasse. Eu disse tudo o que mais importava. Eu tentei. Não iria me punir por isso.

De repente, a porta do quarto se abriu. Caio entrou. Enfiei a cara no travesseiro.

— Chegou cedo ontem. — Ele falou, ciente de que eu estava acordado.

— Eu sei.

— Não deu certo?

— Não.

Doía demais saber que quando ele voltasse para o Brasil, voltaria para Belo Horizonte e não pra essa cidadela. Doía demais saber que algumas coisas não tem conserto. Ela suspirou, deitou ao meu lado e me abraçou. Fechei os olhos. Só Caio mesmo para não me permitir quebrar em pedaços antes das oito da manhã de um domingo. Com ele ali, acabei caindo no sono novamente.

— Ei, vocês dois. — Danielly nos sacudiu algum tempo depois. — Temos visita.

Danielly se esticou por cima do meu corpo.

— Mas quem?

— Adivinha.

— Quem? — Estreguei as pálpebras.

— Antônio, Marcos. — Caio respondeu.

— Mas ele ia pra beaga pegar um voo para Nova York.

— Aparentemente, ele mudou de ideia.

Tudo em mim despertou de uma vez. Antônio. Em casa. De novo. Pulei de uma vez da cama e desci. Ele estava na sala, sentado no sofá de pernas cruzadas. Trocamos um olhar. Eu estava horrível, claro, com o visual de quem acabou de acordar. Ele estava bem arrumado. Camisa preta de manga longa, jeans e sapatênis.

— Não ia pra capital? — Perguntei atônito.

— Adiei isso para o meio da semana.

— Por quê?

— Eu passei a noite toda pensando em te perdoar. — Meus batimentos aumentaram a velocidade. — Decidi tentar, Marcos.

Mordi o lábio. Nem tive coragem de perguntar “isso é sério?” com medo de ser retirado de um sonho matutino muito lindo.

— Quer dar uma volta comigo? — Convidou.

— Eu... Preciso tomar um banho.

— Espero.

Retornei ao quarto em um pulo. Danielly e Caio continuavam lá, conversando. Eles pareciam os adultos falando a respeito da criança, que no caso era eu. Peguei minha roupa no guarda-roupa, e, com uma toalha no ombro, me tranquei no banheiro. Tomei um banho rápido e escovei os dentes. Me vesti lá dentro mesmo: camisa e bermuda.

— Alguém te chamou pra sair? — Caio perguntou com um sorriso largo quando terminei.

— Pra merda, Caio.

Passei um pente no cabelo, dando as costas para os dois.

— Pedro. — Ele disse.

— Oi.

— Se ele veio aqui de novo é porque ainda sente algo por ti.

Passei um perfume e saí do quarto.

Preferi não pensar nisso. Eu não queria pensar nisso. Ele estava ali. Outra vez. Tudo bem, não era uma segunda, era uma milésima chance, e... Droga. Eu nem sabia o que pensar na verdade. O meu benzinho cancelou um voo pro Canadá porque decidiu tentar me perdoar. Era perfeito demais. Mais do que eu perecia. Não era real. Não, não era.

Voltei à sala. Antônio de fato me esperou, olhando para as paredes.

— Pronto.

— Você ta... — Ele me encarou. — Tá. Vamos.

O bairro em que eu vivia era um bairro principalmente residencial, apesar de uma ou duas ruas cheias de lojas e mercados. Havia uma praça a dois quarteirões e foi para lá que nos dirigimos sem pronunciar uma única palavra. O sol ainda estava totalmente erguido no horizonte. Meti as mãos já suadas nos bolsos.

— Ontem à noite estava frio, hoje tá quente. — Ele comentou.

— Normal nessa época do ano.

Ele sentou em um banquinho de cimento. Cruzou os braços e ergueu os olhos verdes para meu rosto.

— Me perdoa. — Me apressei em completar antes que ele falasse. Eu não teria a mínima audácia depois. — Por tudo o que eu te fiz de ruim.

— A última.... A última coisa... A última coisa que pensei em fazer nesse mundo foi te perdoar.

Mais silêncio.

— Eu achava que tinha te superado, mas tu me aparece desse jeito.

E mais silêncio.

Movi os lábios com palavras que procuravam encontrar um tom certo para embalagem. Ele não me superou. Ele sentia algo por mim. ELE SENTIA ALGO POR MIM. Após dez anos. Pela bilionésima vez na vida, Antônio provocou o bater forte do meu coração. Ele poderia me perdoar. Ele poderia... MEU DEUS.

— Mas eu quero te perdoar. Só que esquecer é uma tarefa muito difícil. Não é algo que eu possa fazer em 24 horas. Eu preciso de tempo para isso.

[...]

Meu professor se foi após dizer aquelas quatro frases, me deixando no banco da praça com um sentimento estranho após tanto tempo de tanta merda: esperança. Eu a sentia circular junto com meu sangue nas minhas veias e artérias, alcançando meu coração. Não era um “sim” definitivo ao meu pedido, mas também não era um “não”. Ele iria tentar me perdoar.

Isso era mais do que suficiente.

Porém o tempo passou. Logo era abril, então maio, junho, julho e finalmente agosto. Antônio não tinha dado nenhum sinal de vida. Eu queria muito argumentar que ele não tinha direito de me encher de expectativas e sumir do mapa, eu queria demais, no entanto, eu sabia, estava bem ciente, que Antônio tinha total direito de fazer o que ele quisesse.

O desalento encontrou uma brechinha para entrar. Talvez, sim, ele houvesse tentado. Só não tinha conseguido. Quem sabe, eu passei de todos os limites na nossa relação e já não havia volta.

— Feliz aniversário. — Caio partiu para cima de mim no meio de agosto. — Já já você faz quarenta, como se sente?

Ele me abraçou. Eu franzi a sobrancelha. Nem lembrava que era meu aniversário. Puxei o celular do bolso e vi que realmente, terça feira, 12 de agosto. Eu passei o dia inteiro na rua e não percebi isso, só agora, às oito da noite. Puta que pariu. Eu estava completando trinta e nove anos. De repente me pareceu que eu estava velho.

— Idoso.

Argh.

Ele riu.

— Eu tenho 34. Cala a boca. Temos bolo.

— Não, bolo não, Caio.

Sem chance. Danielly entrou na cozinha com o bolo. Era de milho com cobertura de chocolate. Especialidade da casa. Ela aprendeu a fazer o bolo com o YouTube. Tive que me resignar enquanto Jéssica acendia uma vela com o número 39. Mostrei uma careta. Eles cantaram “parabéns” e graças a forças divinas não colocaram a parte do “com quem será?”.

— Viva o Marcos! — Danielly riu.

— Primeiro pedaço do bolo. — Caio pôs o bolo na mesa. — Pra quem?

Suspirei e cortei o bendito pedaço.

— Pros dois. Não dá de escolher, né?

Caio pegou um suco na geladeira e começamos a comer. A conversa floresceu. Quer dizer, eles conversava. Eu apenas respondi positivamente e negativamente o que eles me direcionavam. Não era nada que me interessava: coisas do trabalho dos dois. Mas de repente, Caio afastou seu prato de bolo com uma cara diferente.

— Então, eu tenho uma novidade.

— Quê? — Arqueei uma sobrancelha.

— Estamos grávidos.

Oh. Danielly. Grávida. Imaginei uma menina copia de Dani em miniatura andando pela casa ou um menino cópia do caio em miniatura me chamando de “tio Marco”. Nunca simpatizei com crianças, não era agora que eu iria. Contudo, que ótimo. Após todos aqueles anos de tentativa, eles seriam uma família completa. Ela beijou Caio.

— Parabens.

Eu tinha que me esforçar para parabenizar alguém. Para mim, a pessoa devia ficar ciente sem que eu dissesse nada de que estava feliz por ela.

— Valeu, Marcos. — Ela sorriu.

Quando terminamos de comer, os dois subiram para o quarto deles. Eu permaneci na cozinha, olhando o céu pela janela. Eu tinha trinta e nove anos e meus amigos em alguns meses seriam pais de algum pirralho. E eu não tinha nenhuma perspectiva de mudança. Estava estagnado. Eu vivia mais no passado do que no presente.

Mas o passado...

Mas Antônio...

Decidi sair. Desci para a calçada. A brisa da noite era agradável. Não notei como meus pés me levaram para a mesma praça que estive com Gabriel no início do ano. Somente quando me vi sentado no mesmo banco em que nos sentamos. Deslizei meus dedos no lugar exato em que ele estava anteriormente.

Onde diabos estava o meu professor metido a doutor e falante de francês?

Uma mão apertou meu ombro. Ah, ótimo, eu iria ser assaltado pela centésima vez na vida para variar.

Me virei.

E congelei.

Era Antônio.

Eu não estava delirando, estava?

— Mas que porra...

— Feliz aniversário?

Ele sentou do meu lado. Olhei atônito para seu rosto, seus olhos, seu corpo que continuava malditamente perfeito.

— Eu ia para a casa de vocês, mas preferi ficar um pouco aqui primeiro, então você apareceu.

Eu engoli em seco.

Ele havia voltado.

Minhas mãos tremeram só com o susto por sua presença repentina.

Ele havia voltado.

Na porcaria do meu aniversário.

Ele apoiou os cotovelos nos joelhos e entrelaçou as mãos. Meu coração não era coração: era uma bomba relógio prestes a explodir. Esperei que falasse porque eu não tinha ideia do que dizer.

— Eu to em Belo Horizonte agora, pra Santa Bárbara, é um pulo. — Antônio prosseguiu. — E eu pensei em tudo que me falou.

— Pensou?

Ele esticou as pernas, respirando fundo.

— Pensei.

—E-e?

— O que você quer de mim, Marcos?

Você. Você. Você. Você, demônio. Você, instrumento de Satanás mandado para me atormentar. Você, seu professor do inferno. Você. Você. Você. Você. Você. Você.  Você. Você. Você. Você. Você. Você. Você. Você.  Você. Você. Você. Você. Você. Você. Você. Você.  Você. Você. Você. Você. Você. Você. Você. Você.  Você. Você. Você. Você. Você. Você. Você. Você.  Você. Você.

— Me perdoou? — Fui bravo o suficiente pra perguntar.

— Perdoei.

Pus a mão na boca e desviei os olhos para a lua cheia acima de nós. Ele me perdoou. Ele me perdoou. E eu não merecia. Eu tinha certeza de que não merecia.

— O que que de mim? — Antônio repetiu.

Meu peito se agitou. Pelos cães de Lilith, eu ainda era apaixonado por ele. Eu tinha transado com uma série de outros caras, mas era ele quem estava na minha cabeça quando eu estava prestes a gozar. Ele era meu primeiro e único amor. Eu o queria, todo, completo, sem meus preconceitos estúpidos no caminho. Era isso que eu queria dele.

Me recostei ao banco, nervos abalados.

— Você já me perdoou.

— Então ta tudo bem. — Antônio suspirou. — Eu voltou pra BH amanhã.

Não, ele não poderia voltar para capital. Por que ele tinha que estar lá? Por que ele não parava para estar comigo? Por quê? Não, não era apenas o perdão que eu desejava. O perdão era o substancial, porém, se viesse junto com ele seria dez mil vezes melhor. Uma segunda chance para fazer as coisas direito. Para ser uma pessoa digna dele.

Antônio me encarou e levantou.

Ele adorava ir embora e me deixar.

Professor filho da puta.

Com todos os sentimentos que se amontoavam abaixo da minha pele, me pus de pé e puxei seu braço. Antônio volveu o rosto. Então, eu o beijei. Beijei pelos dez anos que eu não tive nenhuma notícia dele, beijei pela última vez que nos vimos, beijei pela saudade que roía minha alma.

— Marquinhos. — Antônio mostrou um sorisso.

— Eu disse naquele dia. — Encostei a testa ao seu ombro. — Eu só queria uma segunda chance. Eu faço tudo certo dessa vez.

— Tá, seu idiota.

Ele passou a mão no meu cabelo e me abraçou em silêncio. Nossas únicas testemunhas eram as estrelas e a lua.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Comentar em uma fic é mostrar para o autor o quanto
você respeita e gosta da historia. Não custa nada e não
demora dois minutos, então por que não comentar?

Com certeza todos que leem essa nota já escreveram algo
e viram como é ruim escrever para as paredes. Muitos desistem,
outros desanimam.

Então faça uma forcinha, nem que seja para dizer que amou
ou odiou. Com toda certeza o autor se sentira melhor.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Teus Olhos Meus" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.