Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 9
Fumée




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As árvores da Califórnia eram realmente bonitas. Parecia que estávamos no meio do país, em algum lugar de clima temperado e com florestas fechadas e muito verdes, e não no litoral, com praias e vegetação rasteira. Ou talvez Lucas tivesse escolhido o melhor lugar possível para se viver em um bunker: escondido, longe da visão dos outros. Claro, ele sempre escolhia o melhor lugar, o melhor em tudo. Eu queria estar escondido, longe da visão dele.

Cansei de ficar em pé olhando a floresta e procurei uma pedra grande para me sentar. Eu estava descalço, pois esqueci minhas sandálias, e as pedrinhas no chão machucavam meus pés. Peguei uma folha de um ramo próximo e comecei a picá-la com os dedos.

Depois de algum tempo, alguém sentou do meu lado. Eu não me virei, estava com medo de que fosse ela. E era.

— O que você tem, Peter? — Beatrice perguntou, com a mesma voz doce de sempre, mas minha raiva não me deixou ficar encantado, como eu sempre ficava.

— Nada. Por que você acha que eu tenho algo? — respondi, tentando não ser grosso, o que aparentemente não deu muito certo.

— Deve ser porque você está aqui, sozinho, triste, enquanto todo mundo está lá dentro conversando e bebendo.

Fiquei em silêncio por um tempo, pensando no que dizer, picando a folha. Quando só restou o pecíolo da folha na minha mão, eu o joguei para longe e suspirei.

— Então você deveria me deixar aqui, sozinho e triste.

— Eu até faria isso, sabe, se eu não fosse a sua namorada.

— É mesmo? Porque não parece que é. Não nas últimas semanas.

Ela franziu a testa, confusa.

— Do que você está falando?

— Estou falando do tempo que você passa com aquele cara.

— Sério, Peter? Ele é nosso treinador!

— Isso não quer dizer que você precisa estar vinte e quatro horas do dia pedindo conselhos a ele ou pedindo para ele te ensinar golpes, ou sei lá o que vocês fazem quando estão juntos.

— Pelo amor de Deus, Peter. A gente não faz nada demais. Você nunca ficou assim com nenhum dos meus amigos, por que está assim com ele?

— Sabe o que acontece com seus olhos quando você olha para ele? Eles brilham, Beatrice.

— Seus olhos também brilham quando você olha para um videogame, e nem por isso eu fico assim. Sabe o que você é? Uma grande criança.

Senti uma dor aguda no peito. Eu fiquei realmente magoado, odiava quando alguém me chamava de criança. Simplesmente odiava.

— Você realmente deveria voltar para lá.

— Quer saber? Eu deveria mesmo. Ele é mais legal que você, mais inteligente que você e até mais bonito que você. E, além do mais, ele não ficaria com um ciúme ridículo.

Eu tinha me levantado da pedra sem perceber, e ela também. Sentei de novo, pegando outra folha para picotar.

— Sai daqui. — pedi, com calma.

O olhar de raiva dela desapareceu. Ela se aproximou de mim, estendendo a mão para me tocar, mas eu desviei.

— Peter…

— SAI DAQUI! — eu gritei, o mais alto que podia. A música que vinha do bunker parou, e o mundo todo ficou silencioso. Só eu e a Beatrice, me olhando aterrorizada. Uma lágrima deslizou pela maçã do rosto dela, que saiu correndo, chorando.

Eu também corri, mas não atrás dela. Nunca mais.

Ψ

Encostei-me no portão, arfando. Meus pulmões rogavam por ar. Eu não sei quando tempo tinha corrido/andado, o que importava é que eu tinha chegado.

Abri a fechadura enferrujada e empurrei o portão para trás até que houvesse espaço suficiente para eu passar.

Andei pela estradinha de terra até chegar na frente da porta de madeira de lei, perfeitamente polida. Meus pais gostavam de tudo muito arrumado, perfeito. Lembrei da última vez que falei com meu pai, quando saí de casa naquele dia. Antes de bater na porta, fiquei me perguntando se o copo de leite ainda estaria lá.

Ninguém atendeu.

Bati um pouco mais forte, e a porta abriu. Estava destrancada. A porta nunca ficava destrancada.

— Mãe? — chamei. — Pai?

Ninguém respondeu.

Entrei na casa e fechei a porta atrás de mim.

Tudo estava em perfeito estado: o sofá continuava limpo e forrado, a mesa de cabeceira ainda tinha os porta-retratos com fotos nossas e um vaso com margaridas no meio, o carpete estava varrido e liso, os quadros na parede permaneciam completamente retos e espanados. Mas a televisão estava ligada.

Uma mulher falava sobre como temperar bem o seu peru de Ação de Graças usando erva-doce e alecrim. Peguei o controle no mesmo lugar de sempre: no braço da poltrona do meu pai. Desliguei a televisão e despluguei a tomada.

Fui até o corredor e parei na primeira porta, o quarto da minha mãe. Abri-a e fiquei surpreso por ela não estar lá. Quando não estava assistindo televisão abraçada com o meu pai, Nicole Nogg ficava no quarto, costurando. Era um dos passatempos favoritos dela, mas agora a máquina de costurar estava vazia, com um vestido incompleto pendurado na agulha. Ela nunca saía sem terminar o que estava fazendo. Algo devia ter acontecido.

Fechei a porta quando saí e entrei no escritório do meu pai. Abraham Nogg era um homem com muitos usos. Ele sabia consertar quase qualquer coisa que você pudesse imaginar, além de montar circuitos elétricos e encanamentos. Ele poderia abrir uma loja de manutenção na cidade e nos deixar ricos, mas prefere viver aqui, na fazenda, longe do barulho ensurdecedor de carros, máquinas e essas coisas; mas hoje, as ferramentas dele estavam largadas no chão. E, nossa, as ferramentas eram algo sagrado. Nem eu podia tocar nelas. Engoli em seco. Eu já estava ficando nervoso com tudo isso.

Cheguei à cozinha e então eu me desesperei.

Um rastro de sangue começava da porta e ia até o quintal. Fui até lá, esperando achar os cadáveres da minha mãe e do meu pai, mas não achei nada além de um bilhete ensanguentado escrito às pressas.

PETER, NÓS SABEMOS DE LUCAS. ESTAMOS BEM, ENCONTRE-NOS NESSE ENDEREÇO

O nome da rua era o nome de algum político famoso que eu não sabia pronunciar, mas o que me deixou mais confuso foi a cidade.

COLUMBUS, OHIO

O que diabos meus pais estavam fazendo em Columbus, do outro lado do país? Como eles tinham chegado lá, sendo que alguém tinha saído sangrando daqui? Como eles sabiam quem é Lucas? Então isso quer dizer que eles sabiam que os deuses gregos são reais? E como eu faria para chegar lá? Meu Deus, meu deuses — a essa altura, não sei qual usar.

Ah, não. Eu teria que voltar para o bunker do Lucas e pedir para ele me transportar para lá.

Eu teria que ver a Beatrice de novo.

Não tive tempo de parar para pensar no quanto isso seria ruim, porque, agora, na minha frente, eu vi o que deixou um dos meus pais sangrando.

Eu não sabia o nome da criatura, mas eu sabia que ela tinha garras enormes e olhos sombrios. Eu corri, e ela corria atrás de mim pela casa como um raio, já que não tinha pernas — a parte abaixo da cintura era feita de fumaça, que ficava rodopiando para causar o movimento.

Sim, era muito estranho, e eu estava aterrorizado. Só fui lembrar que eu tinha treinamento de batalha depois de correr a casa toda.

Percebi que não adiantaria correr mais, eu já estava ficando cansado, e não tinha certeza se era possível fumaça se cansar também.

Então só me restavam duas opções: morrer ou lutar. Se bem que, dadas as minhas habilidades, as duas acabariam do mesmo jeito.

Ele tentou rasgar meu pescoço com a mão direita mas eu consegui, no último segundo, levantar a espada que eu tinha desembainhado e bloquear o ataque, por pouco, o que só o deixou com mais raiva. Ele desferiu outro golpe com a mão esquerda, que pegou diretamente no meu braço, abrindo uma ferida mais profunda e maior no lugar da primeira, que já tinha cicatrizado. Eu vi minha própria carne e meu sangue escorrendo e gritei de dor. O monstro não tinha boca, mas o jeito que sua cabeça se mexeu quando ele viu o meu estado sugeriu que estava rindo.

Tentei me concentrar, invocar outro cavalo voador e uma lança ou qualquer coisa que me ajudasse nessa hora, mas eu não tinha ninguém por quem lutar dessa vez.

Minha visão estava turva por conta da dor, mas eu ainda conseguia vê-lo rindo da minha cara. Uma onda de raiva ascendeu, enchendo meu corpo de adrenalina e me fazendo esquecer na dor temporariamente.

Não esperei que ele atacasse, levantei a espada e mirei no peito dele, que parecia o único lugar que não era afiado ou que não era feito de fumaça. Ele moveu as mãos tão rapidamente que, quando eu vi, minha espada estava deslizando pelo chão, longe do meu alcance.

Ele golpeou minhas pernas, fazendo três cortes tão profundos que eu tinha certeza que o meu fêmur estava visível. Caí no chão, batendo os cortes no rodapé da parede, deixando mais gritos ainda mais altos e sofridos.

Ele se aproximou de mim lentamente, e encostou as garras no meu peito. Ele apertou, e eu segurei a mão dele com toda a força que tinha, mesmo que isso fizesse minha mão sangrar. Quanto mais forte ele pressionava, mais forte eu segurava e me debatia, tentando tirá-lo de cima de mim, mas, conforme o tempo foi passando, eu fui ficando mais fraco, e as garras iam penetrando cada vez mais na minha carne.

Era só uma questão de tempo até que ele conseguisse perfurar meu coração e me matar de uma vez, mas eu lutaria até o último momento.

Do jeito que estávamos, para para eu ver as pernas de fumaça dele agitadas, e também dava para ver a parte onde elas começavam. Essa parte era vermelha, brilhante e escura. Parecia quase… carne viva.

Parei de me debater aleatoriamente e dei um chute lá. Eu chutei o cara entre as pernas, mas ele não tinha pernas. A cabeça dele virou, como se ele estivesse gritando. Ele caiu para o lado, me libertando. Aquele deveria ser o ponto fraco dele.

Sem perder tempo, eu peguei a mão do monstro e golpeei o peito dele, fazendo o corte mais profundo que eu podia. Em um instante, todo o corpo dele virou poeira dourada. Mas a parte que se desintegrou primeiro já estava começando a reformar o corpo preto e feio. Eu espalhei a poeira o máximo que eu podia com as mãos para ganhar tempo, e deitei com os braços abertos. Eu tinha uns dez cortes no corpo em constante sangramento. Eu não conseguiria correr e muito menos lutar de novo com ele. Então só fiquei lá, esperando a morte por hemorragia.

Mas foi quando tudo já estava ficando preto que alguém segurou minha mão, vendo se eu ainda tinha pulso. Tentei manter os olhos abertos para a pessoa ver que eu ainda estava vivo.

— Droga, demorei muito. Fique comigo, cara, você vai sair dessa.

Era uma menina. Era ela… linda.

Foi tudo o que eu pensei antes do meu coração parar.

~Ψ~


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