Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 8
Andora




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— Ele não pode permanecer aqui, Melanie.

— Ele tem que permanecer aqui, Adam.

— Você não entende. Isso é contra os nossos princípios.

Revirei os olhos. Eu sabia que os romanos tinham seus fundamentos, mas eu não achava que eles eram válidos em uma situação como essa. Será que eles pensam que a pequena muralha deles vai protegê-los para sempre?

Sentei na cadeira defronte à mesa na qual Adam estava com as mãos. Os olhos dele estavam pesados e sem vida, e os cabelos como se ele tivesse passado os últimos quatro dias sem dormir, e talvez tivesse mesmo.

— Adam, acredite em mim, eu respeito muito os ideais romanos, e não pretendo quebrá-los ou desgastá-los, mas isso é vitalmente necessário. Você sabe mais do que ninguém o que está acontecendo lá fora, e eu quero tanto quanto você que isso pare. E, além do mais, o Acampamento Meio-Sangue foi destruído. Quanto tempo você acha que levará para todos os gregos virem aqui pedir abrigo e comida? Você vai negar e deixá-los apodrecer do lado de fora? Eu acho que não. Então qual o problema em abrigar só um por enquanto? E eu nem sei se é viável chamá-lo de grego ainda.

Ele suspirou, fechou os olhos e assentiu.

— Certo, Melanie. Você quis que ele ficasse, então você vai cuidar dele, ninguém mais. Se ele causar problemas, qualquer pequena briga que for, vai direto para o calabouço e só sai de lá para ir embora. E quando os gregos voltarem, ele vai junto. E se eu fosse você, o manteria longe de vista. Tem alguns campistas que dariam tudo para matá-lo. Agora vá, tenho muita coisa com o que me preocupar.

Eu juntei as mãos na boca e mandei um beijo para ele, que dispensou um aceno de mão, irritado.

Saí do escritório de Adam e me dirigi em passos rápidos ao templo de Marte, onde eu o deixei.

Ψ

TRÊS SEMANAS DEPOIS

— Porque, quando trabalhamos em equipe, somos melhores do que qualquer país, qualquer nação, qualquer um! Eu lhes apresento o Navegador de Mundos!

Colin cortou uma corda improvisada que segurava a porta do navio a um pedestal preso ao chão. O efeito foi magnífico: a força da tração do pedestal ocasionou um impulso no navio, fazendo com que ele entrasse na água e a porta abrisse, batendo na areia da praia e revelando uma escada que levava ao interior.

O Navegador em si era fantástico. Era todo feito de madeira polida e brilhante, com a proa em formato da cabeça de um pégaso, posicionada de tal forma que parecia que ele estava prestes a levantar voo. Havia três mastros de trinta metros cada, exceto o do meio, que deveria ter uns cinquenta, com uma vela laranja em cada mastro menor e duas velas pretas no mastro maior. No topo do mastro com duas velas, erguia-se uma bandeira em que se podia ler Ελληνική ειρήνη, “paz grega”. Em diversas partes podia-se ver um canhão, o que era irônico para a paz grega, mas eles foram feitos para nos defender dos monstros marinhos. A popa era feita de uma madeira mais escura, indicando que era um local de importância, e o timão era feio de aço. No total, a embarcação deveria ter uns setenta metros de comprimento.

Sim, era grande e bonito, e conseguimos montá-lo em apenas três semanas. Então é claro que merecíamos uma salva de palmas, que foi o que aconteceu. Uma centena de campistas batendo palmas e gritando e assobiando ao mesmo tempo.

Assim que Colin deu a ordem para embarcarmos, todos fomos pegar nossos pertences, o que não era muito. Ele também deu um tempo para que fôssemos nos despedir do Acampamento, indo até os chalés em grupos pequenos.

Os campistas foram entrando em ordem de grupos; o grupo que trabalhou mais entrava primeiro e escolhia os melhores quartos. Bom, eu não reclamei porque fiquei no grupo da segurança, que foi o terceiro a entrar. Por dentro, o navio era mais lindo ainda. Havia inúmeros corredores com piso liso e decorado e, em cada um, mais ou menos dez quartos. De vez em quando apareciam placas indicando para onde você deveria ir caso quisesse encontrar um corredor específico. Procurando por o corredor número onze, li direções como “bodega”, “armamento”, “controle de navegação” e “banheiros”. Os arquitetos do chalé de Atena tinham pensado em tudo mesmo.

Finalmente achei o corredor 11, e entrei no segundo quarto da parede esquerda. Os quartos eram simples, mas bem montados e aconchegantes, ou pelo menos o meu. Uma beliche branca, um criado-mudo também branco com um abajur amarelo, uma estante com alguns livros e decorações. Não tinha muita coisa além disso. Subi a escada do beliche e sentei na cama de cima, me perguntando quem seria meu companheiro de quarto.

O colchão era tão fofo que parecia que estávamos em um cruzeiro de férias e não em uma missão mortífera ao Acampamento inimigo. Mas, bem, sempre tinha como ficar melhor. Tirei a luva que protegia minha mão mágica — dez vez em quando Mina ficava louca e começava a se transformar em coisa aleatórias, não vi problema até que ela se transformou em um preservativo, o que foi bem embaraçoso — e a transformei em um urso de pelúcia rosa, parecido com o Lotso de Toy Story. É, podem rir de mim, mas eu não conseguia dormir sem ele. Lembrava o meu avô, quando nós costumávamos assistir o filme juntos. Ele apontava para Jessie, a caubói, e dizia que ela se parecia comigo.

Iiihaaa, Anne!, ele dizia, enquanto me pegava nos braços e me girava pela sala.

Quando percebi, já era tarde demais. Lágrimas estavam escorregando pelas minhas bochechas, caindo no olho de botão do urso. Sequei meus olhos e pus o urso embaixo do travesseiro, para que meu colega de quarto não visse, e ele seria… Mason?

Quando a porta abriu, a cabeleira vermelha foi a primeira coisa que chamou a minha atenção. Desde a primeira vez que o vi, quando Dylan o trouxe dois anos e meio atrás, ele tinha crescido bastante, chegando quase à minha altura, apesar de ser três anos mais novo que eu. Eu não falava muito com ele, até porque ele não falava muito com ninguém. Só com o Dylan e com o Lucas, mas bem, vocês sabem.

Eu sabia que ele era forte. Ele podia viajar nas sombras e controlar pessoas, mas nenhum deus tinha o reconhecido como filho ainda, deixando em aberto um monte de questões. Sem contar que ele já tinha perdido a memória quando Dylan o achou, então nem ele mesmo se conhecia. Ele vivia a maior parte do tempo na floresta, fazendo sei lá o quê. Talvez no cemitério, como Dylan ficava. E agora eu teria que passar meses com ele.

— Mason? — chamei.

— Ah, oi, Anne. Eu não sabia que você estava aqui.

— Bom, agora sabe.

Ele pegou a mochila que tinha colocado na cama e abriu a porta para sair.

— Ei, não foi o que eu quis dizer. Pode ficar.

— Tem certeza?

— Tenho.

Ele olhou para mim, curioso, como se eu fosse uma obra de arte.

É, seria ótimo.

Ψ

— Cale a boca.

— Quem você acha que é? Você me mata para depois me trazer de volta? O que diabos você…

— Cale a boca! — gritei, irritada. — Eu já te mantive em silêncio por um mês, não foi o suficiente para você aprender a ficar calada?

— Não! Eu quero explicações. Eu estou indignada.

Soltei a colher de pau dentro da panela. Foi um erro meu decidir desfazer o feitiço que a impedia de falar. Pelo menos ela parou de bater em tudo o que podia para chamar a minha atenção. Que tipo de pessoa fica com raiva porque ressuscitou? Só porque eu enfiei uma lâmina na barriga dela há dois anos e meio não significa que eu a odeie, significa?

— Talassa, por favor, entenda. Eu tive que fazer aquilo. Você estava fora de controle, e ia matar todo mundo.

— Achei que fosse isso que você queria! — ela estava falando muito alto. Agradeci aos deuses por minha paciência ser grande, ou eu acabaria matando-a novamente.

— Isso era o que Cila queria! Eu nunca concordei com os ideais dela.

— Então por que se juntou a ela, para começo de conversa?

— Não foi como se eu tivesse escolhido. Eu tive que me juntar a ela, se não eu iria morrer. Você sabe o que a Melanie fez comigo. Ou melhor, conosco.

Talassa pareceu ficar com mais raiva ainda.

— Melanie, aquela vadia…

— Calma, irmã, não temos estruturas para mais vingança. Ela destrói a alma, e a sua já está bem destruída, por sinal.

— E isso é culpa de quem?

Revirei os olhos. Fui até o armário e peguei um pouco de erva-doce. Joguei-a na panela, misturando logo em seguida. A sopa estava com uma tonalidade meio amarelada, o que dizia ser o ideal.

— Talassa, os semideuses estão indo para o Acampamento Romano.

— E o que nós temos a ver com isso? Eu não quero mais me meter. Deixe-os morrerem em paz.

— Nós temos uma última missão, irmã, e você sabe disso.

Ela fez um barulho como se quisesse chorar e bufar ao mesmo tempo.

— Eu odeio isso, sabe?

— É, eu também. Mas eu juro que depois de completa a missão, poderemos sumir para sempre.

— E por que não podemos sumir agora e deixar tudo como está?

— Esqueceu que somos meio-sangue também? Você sabe tanto quanto eu a quantidade de monstros que aparece aqui todo santo dia. Se continuarmos assim, Talassa, eventualmente nós vamos morrer. E não vai ter ninguém para nos trazer de volta. As Portas da Morte têm que ser fechadas, e nós duas sabemos como. Só não podemos fazer sozinhas, precisamos da ajuda e do consentimento deles — apontei para uma mensagem de Íris modificada que mostrava como os semideuses estavam. Esperei alguns segundos antes de continuar para ver Colin cortando a “fita” da inauguração do navio. — Eles não serão capazes de decifrar essa parte da profecia. Mas não vai ser agora. Você ainda tem que se recuperar um pouco.

Dizendo isso, peguei uma tigela do armário e a enchi com a sopa que fiz. Talassa hesitou, mas bebeu.

Sentei ao lado dela na mesa.

— Não era para ser assim. Eu nunca pensei que o Dylan fosse ir tão longe pela Louise. Maldito, decretou o fim do mundo… Eu planejei tudo, cada passo, cada carta, e ele fez aquilo só para concretizar os planos da Senhora Dourada.

Talassa cuspiu a sopa que tinha na boca com uma risada.

— Senhora Dourada? Deuses… Não é mais fácil só dizer…

— NÃO! Não ouse dizer o nome dela em voz alta, ou ela saberá onde estamos e o que vamos fazer. Um sussurro, Talassa, e nós morremos.

— Nossa, Luna, você tem tanto medo dela assim?

— Ela destruiu o Acampamento Meio-Sangue. E se não fizermos nada, ela vai destruir o Acampamento Romano, então o caminho estará aberto para ela destruir o mundo.

— E o que vamos fazer agora?

Olhei para a tela, e vi o último semideus lacrando o bunker, entrando no navio e fechando a porta. Vi um filho de Hermes manuseando o timão, e vi o navio partindo pelo mar em direção ao sul.

— Agora, minha irmã, nós esperamos.

~Ψ~


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