Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 6
Ascoli




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— Eu vou confiar em você, Hellen. Tem certeza do que está falando, não tem?

Com aquele vestido dourado ribombando com o vento e aquela luz penetrante dos raios de sol refletindo na pele dela, o meu primeiro instinto era de me ajoelhar, mas assim que o fiz ela riu com desdém e ordenou que eu me levantasse. Tudo que eu queria era fazer o que ela mandasse, quando mandasse, sem restrições. Meu corpo e minha alma estavam dispostos a mentir, matar e morrer por ela.

— Sim, minha senhora. Os campistas estão ocupados demais com suas tarefas diárias para se preocupar comigo, e eu segui todas as instruções para garantir que não estou sendo seguida, como sempre faço.

— Ótimo. Você é importante para mim, Hellen. Sem você, seria muito difícil agir dentro do Acampamento, ou pelo menos do que sobrou dele. Mas já que você está do meu lado, é só uma questão de tempo para que o meu triunfo prevaleça. Só precisamos ter paciência, assim como eu tive por vários séculos. Eu esperei tanto, e agora está tão perto… Se a Angelina não estivesse morta, eu iria agradecê-la pessoalmente por ter criado a chave do meu sucesso.

— A senhora está dizendo que isso tudo só foi possível por causa de um inútil como o Dylan? — eu estava indignada. Como era possível ele ser a causa de tudo isso? Ele não passava de um semideus comum. E agora está morto, como todos os outros que não se renderem estarão em breve.

— Eu estava com tudo planejado há séculos, querida. Bem antes de qualquer pessoa desse mundo sequer cogitar existir. Devo admitir, de fato, que eu não poderia abrir as Portas da Morte pessoalmente. Esperei tanto para que nascesse alguém capaz de fazer isso, e aqui estamos.

Fiquei em silêncio, analisando a situação. Ela considerava o Dylan mais importante que eu? Eu, que tanto a ajudei desde o começo, agora fui rebaixada a um simples brinquedo? Isso é injusto.

Como se lesse os meus pensamentos, ela se aproximou, com seu brilho dourado fazendo minhas pupilas contraírem e meus olhos doerem. Ela pôs os dedos macios e suaves no meu queixo, e sorriu para mim. Todos os meus pensamentos negativos se foram, restando apenas a vontade de adorá-la. Ela era maravilhosa, e o meu ciúme era desnecessário.

Mas então o sorriso dela desapareceu.

— Melanie… — disse, em tom de raiva controlado.

— O quê? — eu falei, confusa.

— Eu tenho que ir. Agora.

E, sem mais explicações, ela sumiu, e eu fiquei lá.

Ψ

— O quê?

— Como assim?

— Do que vocês estão falando?

— Está brincando?

— Não!

— Nem pensar!

Isso era o que se podia ouvir da multidão que se aglomerou no meio do bunker para ouvir o enunciado: íamos ao Acampamento Romano.

— E ainda vamos ter que trabalhar para isso?

— Ficaram malucos?!

— Tem como vocês calarem a boca? — eu gritei, tão alto que alguns monstros começaram a bater na porta do bunker. — O que, acham que decidimos isso porque gostamos da ideia? Nós decidimos porque é a coisa certa a se fazer. Não perceberam que se ficarmos aqui, mais cedo ou mais tarde vamos morrer? Aquelas portas não vão segurar aqueles monstros para todo o sempre, caso não tenham notado. Já perdemos muitas pessoas, e nem eu, os outros líderes, e acredito que nem vocês estejam dispostos a perder mais. Lá nós estaremos seguros e confortáveis, e vocês poderão descansar suas bundas em algo que não seja chão duro. E, além do mais, vocês sabem que nossa água e comida está acabando, não é? O que vocês vão beber? A água do lago onde os ciclopes limpam os suvacos e os minotauros fazem suas necessidades? E o que vão comer? A casca das árvores? Deixem que lado essa rivalidade estúpida e pensem racionalmente pelo menos uma vez na vida.

Quando eu terminei, todos ficaram calados, inclusive Colin, Palani e Hellen, que estavam comigo no centro do círculo formado pelos campistas.

— O que foi? — falei, baixinho, para só eles escutarem.

— Eles respeitam você, Anne — disse Colin, também baixinho.

Eu pigarreei, um pouco envergonhada com o silêncio repentino.

— Já ficamos tempo demais presos aqui nesse bunker — continuei. — É hora de criar coragem e enfrentar o que tem lá fora. Colin vai explicar para vocês como vai funcionar a construção desse navio.

Ele deu um passo para frente. Os cabelos loiros dele estavam um pouco sujos. Claro, fazia tempo que eu tomei um banho também, e eu acho que a maioria das pessoas daqui não foi ao lago recentemente. Mas, apesar disso, ele continuava bonito e confiante. Eu olhei para a multidão, procurando alguém em especial, e a achei. Julieta estava na frente, olhando orgulhosa para o namorado — ou seria marido agora? — e acariciando a barriga. Eu não sei como ele tinha reagido à notícia, e também não vou perguntar. Deve ser muito estressante ter que liderar uma algazarra de uma centena de semideuses desamparados e ainda por cima cuidar da parceira grávida. Ele merecia um prêmio só por ainda estar de pé.

— Nós somos cem. Certo, cento e alguma coisa, mas não importa. O fato é que vocês serão divididos em equipes que realizarão tarefas específicas. Ali, naquela parede — ele apontou para a parede da esquerda, e todos viraram simultaneamente para olhá-la — estão dez folhas, e em cada uma há dez nomes. Dez equipes. Vocês também podem ver que as folhas estão numeradas de um a dez. As equipes estão organizadas estrategicamente para juntar o maior número possível de semideuses adequados para determinada tarefa de acordo com o seu familiar divino. Como vocês já devem saber, ao nosso lado, após a parede à esquerda, há um depósito de materiais. Gigantesco, por sinal. A equipe um ficará encarregada de separar esses materiais, juntá-los por categoria e tirá-los do depósito, deixando na porta do mesmo. A equipe dois será responsável por locomover esses materiais da porta do depósito até a margem do lago, que será o nosso principal local de construção. Não é como se os monstros fossem tirar férias enquanto construímos o nosso cruzeiro transatlântico, então a equipe três cuidará da segurança e bem-estar das outras equipes. Mas os outros também carregarão suas armas, em caso de emergência. Como, eu acho, a maioria das pessoas aqui não tem uma maquete de um navio pronta na cabeça, temos a equipe quatro composta com as melhores mentes dos Estados Unidos para projetar uma embarcação que garanta conforto, segurança e, é claro, glamour. A equipe cinco irá montar a base do navio; a equipe seis, o corpo do navio; a equipe sete, a parte de cima do navio. As equipes oito e nove tomarão conta das partes internas do navio. E, pelo amor dos deuses, façam camas decentes, especialmente a da Julieta. E, finalmente, a equipe dez, que contém os ladrões mais traiçoeiros e especializados de todo o Leste, irá verificar se o navio está “navegável”. Eles tentarão de todas as maneiras sabotá-lo, e, numa grande ironia, só descansarão quando não conseguirem. Vocês podem ver em qual equipe estão agora mesmo, nos folhetos, e devem começar o trabalho imediatamente. Bem, nem todos.

Colin fez uma reverência à Palani, e ela deu um passo à frente.

— Obviamente, nós não vamos só ficar sentados enquanto vocês fazem todo o trabalho duro. Para confirmar isso, vocês podem ver que o nome de Anne está na equipe três, Hellen está na equipe quatro e Colin está na equipe um. Mas, assim como eu, alguns de vocês não acharão seus nomes na lista. Isso é porque nós temos outra tarefa um tanto quanto difícil. Os que não acharem o nome irão me esperar na entrada do bunker para irmos até o Acampamento, ver o que conseguimos recuperar de lá, já que vai demorar um bocado para retornarmos.

Alguns burburinhos de lamentação correram pela multidão. Ninguém queria ir lá para ver os corpos, destruição e os monstros vivendo onde costumávamos viver. Mas era necessário.

— Ficou tudo claro? Alguém tem alguma dúvida?

— Qual vai ser o nome desse navio? — alguém perguntou.

— Nome? Precisa mesmo disso?

— É tradição! — outra pessoa falou.

— Certo. Bem, — Colin levantou os braços. — foi a Hellen quem nos deu essa ideia maravilhosa, então acho que ela tem todo o direito de escolher um nome. Tem algo em mente, Hellen?

— Navegador de Mundos. — ela disse, rápido.

— O quê? — perguntei.

— Estamos indo de um mundo nosso para outro novo. Uma transição. Acho que Navegador de Mundos seria bom.

— Ah, desculpe, você falou tão rápido que eu pensei ter ouvido Navegador de Bundas.

Eu ouvi risadas vindas dos campistas, mas Hellen continuou me olhando inexpressível como se eu não tivesse acabado de contar uma piada. Essa menina era estranha.

O discurso de explicação tão bem-humorado de Colin deixou os campistas animados para começarem logo suas tarefas. Estava tão alvoroçado ao redor dos folhetos que foi preciso Palani ir lá e listar as pessoas pertencentes a cada equipe.

Alguns minutos depois, eu já podia ouvir o barulho de madeira sendo derrubada no depósito ao lado. A equipe quatro já havia se reunido em torno de um monte de cartolinas gigantescas para fazer os desenhos e a equipe três, inclusive eu, já estava indo pegar suas armas e escudos. Hoje era o dia em que nos libertaríamos das paredes do bunker e mostraríamos aos montros quem são os donos desse lugar.

Ao passar pela porta, eu vi Palani reunida com as pessoas que iriam ao Acampamento com ela. Uma delas deu um olhar de pesar ao me ver.

Ψ

Pela primeira vez desde que eu voltei à vida, fui presentada com uma arma de verdade. Uma espada de bronze celestial incrustada com desenhos detalhados que formavam gotas escorregando pela base. Era como se a espada estivesse sangrando. Se pensar bem, é uma ironia, porque geralmente é a espada que faz sangrar. Acho que quem fez isso quis mostrar que até o mais poderoso sempre cai.

Eu já tinha “matado” mais de quinze monstros, e só tínhamos andado uns trezentos metros do bunker. Era maravilhoso poder sair novamente daquele lugar infernal. Eu já estava virando uma Mirina: enjoada de ficar perto de pessoas. E agora que inventaram de construir um navio, então. Só estou esperando para ver a merda em que isso vai terminar.

Mais um quilômetro e um monte de monstros depois, nós chegamos à grande ferradura que um dia formara os chalés.

Estava tudo muito estranho. A quadra de vôlei estava malcuidada e suja, a Casa Grande com a tinta descascando revelando paredes cinzas e sem vida, a fogueira estava tão podre que eu duvidava que alguém conseguiria acendê-la novamente, e os chalés estavam tão vazios e silenciosos que formavam uma imagem espectral de cidade fantasmas. O conhecido campo de morangos estava grande demais e com um verde meio desbotado, como se a vida estivesse indo embora aos poucos. O lugar que conhecíamos se fora: só restava ruínas do Acampamento. Eu senti vontade de dar meia-volta e correr de volta para o bunker, que comparado a esse lugar parecia um paraíso.

Palani foi quem quebrou o silêncio.

— Não foi à toa que eu selecionei exatamente doze de vocês. Cada um fica com um chalé, e pega tudo o que julgar necessário. Aqui, tomem essas sacolas.

Eu peguei uma sacola e vi Julieta indo em direção ao Chalé 3.

— Ei, hm… Pode deixar eu ficar com esse?

— Ah, Louise, eu queria evitar que você ficasse com esse. Tem certeza?

— Tenho sim, pode deixar.

Eu odiava o jeito como as pessoas me olhavam depois de falar comigo, como se eu precisasse da compaixão delas. Mas tudo bem, eu deveria continuar fazendo o que sempre fiz e não ligar para a opinião alheia. Não era da conta de ninguém o que eu sentia.

Fechei a cara e entrei no chalé sem mais drama, só para sentir uma pontada no peito ao ver a cama vazia. A porta fechou sozinha atrás de mim, e o escuro me impediu de ver mais alguma coisa.

Respirei fundo, tateando as paredes até achar um interruptor, e acendi a luz.

As conchas nas paredes e a fonte que formava um arco-íris me fez lembrar de dois anos e meio atrás, quando eu batia na porta com raiva para que o Dylan não se atrasasse para o treinamento de esgrima. Lembrei do dia em que ele atendeu à porta só de cueca e soltei uma risada fraca.

Com esforço, me levantei e peguei a sacola que eu tinha deixado cair na entrada do chalé. Procurei ao redor até achar o criado-mudo que normalmente ficava ao lado da cama, mas que agora estava nos fundos, abandonado e empoeirado. Abri a primeira gaveta para achar um caderninho azul amarrado por uma fita de pano marrom e de aspecto velho. Eu tirei a poeira do caderno com algumas batidas e parti a fita com um dedo, abrindo-o e sentindo o cheiro de tinta seca.

À Louise.

Era o que dizia na primeira página. Eu passei a folha, prevendo o que viria em seguida. Eu não sabia que ele tinha feito isso. Não acho que alguém além dele sabia.

2014, 30 de setembro.

Hoje faz mais ou menos um mês que ela morreu. Eu estava na floresta quando achei esse caderno num buraco em uma árvore. Tinha algumas anotações sobre bronze celestial e ouro imperial, mas eu tomei a liberdade de arrancar. Eu não sei por que estou escrevendo isso, acho que é uma tentativa frustrada de revivê-la. Apesar desse tempo todo, eu ainda não acredito que ela se foi. Sempre que alguém bate na porta uma parte de mim se enche de alegria pensando que é ela vindo me chamar de novo. Eu acordo imaginando como seria se o sorriso dela, mesmo que raro, fosse a primeira coisa que eu visse todos os dias. E isso dói. Eu já levei vários e vários cortes profundos na esgrima, mas isso dói mais que todos eles juntos. Eu me pergunto se um dia essa dor vai passar, ou se essa vontade vai me assombrar para sempre.

Eu passei pelas outras páginas para ver, e quase todas estavam cheias. Até uma de outubro de 2016, falando sobre a ida dele.

Fechei o livro. Era a única parte dele que eu tinha restante, e estava novinha só para mim. Se eu começasse, sabia que leria tudo de uma vez, e depois ficaria sem nada.

Olhei para a gaveta de novo e vi o MP3. Ele não funcionava mais como reprodutor de música, mas ainda deveria funcionar como espada. Eu não testei, não tive coragem. Não conseguiria olhar para a lâmina azul-celeste e imaginá-lo segurando-a.

Eu senti minhas pernas ficarem fracas, e andei lentamente até a cama, com as palavras do diário ecoando na minha mente e com o MP3 marcando a palma da minha mão de tão forte que eu o segurava.

Eu me pergunto se um dia essa dor vai passar…

Eu também, Dylan.

Você não era o mais poderoso, então por que você caiu?

~Ψ~


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