Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 1
Cupuaçu


Notas iniciais do capítulo

Olá, amiguinhas e amiguinhos! Como prometido, estou de volta. Pegue a pipoca e senta que lá vem história.

Como alguns (cof, Maria Fernanda, cof) poderiam pensar, não pulei tanto tempo assim da última história para essa. É quase como se estivesse continuando de onde parou, mas com personagens novinhos em folha.

E estou feliz porque não vou ter mais que aguentar os choros da Marina por causa da imbecilidade do Dylan. Mas relaxe, vai ter novos personagens para você odiar.

E aproveitem, porque esse é o começo do fim.



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Os pássaros cantavam, quando o dia rompia, todos num coral.

Era o som mais lindo que eu já tinha ouvido, além da voz da By. E eu só o percebi quando parou.

Os maias previram o fim do mundo para 21 de dezembro de 2012. Na época, várias teorias absurdas sobre o dia surgiram: meteoros, tsunamis, terremotos, incêndios, esse tipo de coisa. Infelizmente, o planeta não entrou em colapso naquele dia, porque, aparentemente, o apocalipse maia era um “apocalipse sentimental”, onde os sentimentos ruins iriam acabar. Parece que não funcionou muito bem. A Terra continuou uma disputa de poder: ganharia quem tivesse mais dinheiro.

No dia seguinte, meu pai riu da cara da mídia, e me disse algo que eu nunca esqueceria: “Nós não somos deuses, Peter. Não podemos prever o fim do mundo, nem evitá-lo. As coisas são do jeito que têm que ser.”

Eu não era um cara da cidade. Preferia a calmaria relaxante da natureza ao barulho infernal das buzinas e dos outdoors. Mas até mesmo o solo verde da minha fazenda foi invadido pelas garras, presas e pés ligeiros dos monstros.

Era algo inacreditável, como se as histórias folclóricas tivessem saído dos livros infantis e tomado forma no mundo real.

Eu não tenho medo de morrer. Meu pai teve a certeza de me ensinar que a morte virá, de um jeito ou de outro. Mas eu não posso perder a By. Ela é a coisa mais importante da minha vida, e eu daria tudo para protegê-la.

Ouvi dizer que, na cidade, só sobraram alguns prédios. Os mais recentes, resistentes. Os velhos, desgastados, caíram, matando a maioria das pessoas que estavam dentro. Os corpos são incontáveis. Os prejuízos, milionários. Levará décadas para reconstruir as cidades, isto é, se sobrar alguém para reconstruir.

Até agora, só os Estados Unidos foram afetados por essa infestação, mas os telejornais — os que sobraram — já relatam avistamentos de criaturas desconhecidas em diversos lugares do globo. Eu não sei se vou aguentar muito tempo. Eu não sei se todos vão aguentar muito tempo.

Eu achava que meu pai estava certo, que não poderíamos impedir o fim do mundo. E, de fato, ele estava. Nós não podemos. Mas eles podem.

Eles parecem ter superpoderes, exatamente como nós sempre sonhamos ter. Eles podem fazer coisas que nós nunca conseguiríamos. Eles são chamados de meio-sangue.

Eu conheci um.

O nome dele é Lucas.

Ψ

— Anne! — um observador me chamou do alto de uma árvore.

— De novo? — perguntei.

Ele assentiu. Entrei no bunker e convoquei os guerreiros parar enfrentar mais uma horda de monstros. A sétima nesse dia.

Eles bufaram, levantaram-se e cada um pegou sua arma, inclusive eu. No lado de fora, formamos uma linha em frente à entrada do bunker, com espadas, lanças e adagas apontadas para a floresta. Foi quando escutamos o primeiro urro e vimos a cara feia do primeiro monstro que avançamos.

Era apenas um pequeno grupo de ciclopes aparentemente liderados por um minotauro, um tanto maior. Éramos dez, no total. Havia quinze ciclopes e o minotauro.

Assim que tivemos o primeiro contato, empalei um dos ciclopes com a minha lança, e vi um guerreiro jogar uma adaga na cabeça de outro. Quando eles “morreram”, eu chutei o monte que se formou para espalhar o pó, impedindo-os de se regenerar. Pelo menos por enquanto. Fizemos o mesmo com os outros treze, até que sobrou o minotauro.

A pele dele era dura demais para ser perfurada com qualquer espada, lança ou adaga. Mas, geralmente, monstros assim tinham um ponto fraco. Eu só precisava descobrir qual.

Senti alguém bater no meu ombro direito e olhei para o lado. Era Percy Jackson. Ele apontou para os chifres do minotauro. Claro, ele tinha experiência com esse monstro.

— Hellen, distraia-o! — ordenei.

Ela assentiu e se separou da formação, chamando a atenção do minotauro. Naturalmente, ele foi atrás dela. Transformei minha mão em uma corda e lacei o monstro, como um caubói, imobilizando os braços. Puxei a corda para o nó apertar, e depois os outros guerreiros o derrubaram, com um pouco de esforço. Percy teve a honra de arrancar os dois chifres, seguidos de mugidos agudos de dor, que foram ficando mais fracos à medida que o minotauro se transformava em pó, até que finalmente desapareceram.

Transformei a corda de volta em mão, estalei os dedos e guardei a lança no suporte que eu tinha nas costas.

— Espalhem bem. Não queremos outro desses de novo, queremos? — os guerreiros balançaram a cabeça e chutaram o monte de pó.

Fazer isso impedia que os monstros retornassem à vida imediatamente depois de serem derrotados. Claro que eventualmente o pó se juntaria e os monstros ressuscitariam, mas essa técnica nos dava uns dois dias antes disso acontecer, e o vento cuidava de levá-los para longe.

Depois que terminamos, voltamos para dentro do bunker. Apesar de escuro, era um lugar grande e aconchegante. Ficava no meio da floresta, e somente os filhos de Hefesto sabiam da existência dele. Mas, como essa era uma situação de emergência, eles cederam o bunker para abrigar os campistas. Ou pelo menos os que sobraram da carnificina repentina. Só havia uma porta, ou seja, ninguém entrava ou saía sem o contador ficar sabendo.

Antes que você fique se perguntando, eu vou explicar as posições que temos.

Estamos divididos em grupos. Os observadores, geralmente filhos de Hermes, que ficam no alto das árvores e nos avisam caso tenha algum ataque de monstros iminente; os guerreiros, geralmente filhos de Ares, ou qualquer um bom com armas, que defendem o bunker contra os ataques dos monstros; os curandeiros, geralmente filhos de Apolo, cuja função eu não preciso explicar; os influentes, geralmente filhos de Deméter, que cuidam de produzir, organizar e distribuir alimento; os afluentes, filhos de Poseidon, que fazem a mesma coisa com a água; e o contador, Colin, que no final do dia literalmente conta as pessoas que estão dentro do bunker, para verificar se não há ninguém desaparecido. Caso não haja, as portas do bunker são fechadas e lacradas, somente abertas no dia seguinte. Caso haja, um grupo é formado e procura a pessoa desaparecida.

Os que não se encaixam em nenhum desses fazem o que podem para contribuir. Basicamente, ninguém fica parado.

Sentei no chão, encostada à parede, e retirei o colete de couro que dava suporte à minha lança. Coloquei as mãos no rosto e bufei, liberando todo o estresse do dia. Senti alguém sentar ao meu lado.

— Como você está? — Colin perguntou. Ele tinha olheiras fortes. Uma namorada grávida não é algo fácil de lidar.

— Melhor que você, aparentemente.

Ele riu. Uma risada fraca e triste.

— Acho que é para ocasiões como essa que treinamos a vida toda, não é? — ele disse. — Eu só não imaginava que iria chegar assim, tão de surpresa. E ainda mais com a Julieta grávida. Vou morrer de estresse a qualquer dia.

— Ela te acorda de noite com desejos ou o quê?

— Ah, e como. Ontem mesmo ela pediu cupuaçu às três da madrugada. Eu tive que acordar um influente para pedir algo que eu nem sei o que é.

Pus a mão no bolso e remexi até sentir uma embalagem, tirei e entreguei a ele.

— O que é isso?

— Um bombom de cupuaçu. Caso ela peça de novo.

Ele sorriu. Um momento raro ultimamente.

— Às vezes eu esqueço que você é filha de Deméter.

— Às vezes até eu esqueço isso.

— Mas não é como se tivesse uma árvore de bombom de cupuaçu. Onde você arranjou isso?

— Eu tenho meus truques.

Ele me lançou um olhar curioso de filho de Atena. Eu não resisti.

— Abra a mão — eu pedi.

Ele obedeceu. Coloquei a minha mão “especial” em cima da mão dele e transformei um dedo em um bombom. Ele abriu a embalagem, fascinado, e comeu.

— É um bombom mesmo — ele concluiu.

— E o que mais seria?

— Já ouviu falar na lei de conservação de massa?

— Colin, eu odeio química.

— Mesmo assim. Basicamente eu comi o seu dedo.

Alguns segundos depois, um novo dedo cresceu, exatamente igual ao outro.

— E desde quando as leis da natureza se aplicam a nós?

Ele riu de novo, mas ainda fraco.

— Você mudou.

Franzi o cenho.

— Como assim?

— Eu lembro como você era antes de sair naquela “missão” — ele fez as aspas com as mãos.

— É, e essa “missão” — fiz o mesmo gesto — é a causa de estarmos nessa situação agora.

— Eu sei, mas não é disso que estou falando.

— Certo, eu mudei, mas e daí? Todo mundo muda. É só olhar para a Louise.

— Bom, ela morreu e foi trazida de volta à vida, você não. Algo aconteceu com você lá. Algo importante.

Aproximei minha boca do ouvido dele.

— E se você não deixar isso para lá, eu vou meter um soco nesse seu rosto bonitinho.

Ele sorriu e assentiu. Depois, deu batidinhas na minha perna, levantou-se e foi até onde Julieta estava, sentando e acariciando a barriga dela.

Ψ

Conferi se ninguém estava olhando. Quando eu tive certeza que não, peguei uma adaga do armamento e saí de fininho pelo lado do bunker.

Uma harpia furiosa tentou me parar, mas acabou em um monte de pó chutado depois de ter a garganta cortada em um milésimo de segundo. Além dela e de algumas empousai — que acabaram do mesmo jeito —, eu não tive mais complicações. Depois de alguns minutos de caminhada, cheguei à praia.

Ela já estava lá, me esperando. Seu brilho fazia o reflexo do sol na água parecer uma mera lantejoula.

— Estou aqui há um bom tempo, Hellen. — disse, firme e séria. Ela nunca fazia piadas.

— Minhas desculpas, senhora. Não é fácil lidar com os outros campistas. Eles estão tomando cuidado dobrado desde… A senhora sabe, a invasão.

— Pelo menos você veio. Pelo que eu vi, a fortaleza que eles formaram é boa. Os ataques que eu estou enviando não servem para nada.

— A senhora poderia mandar um ataque em massa, eles seriam dizimados.

— Não. Eles simplesmente lacrariam as portas. E, além do mais, não posso arriscar perder você. Eu tenho um plano melhor.

— Estou à sua disposição para o que precisar.

Ela andou pela beira-mar, com os pés nus pisando na areia, afundando um pouco, e o vestido dourado balançando com o vento marítimo.

— Se Colin for tão inteligente quanto diz ser, ele convocará uma reunião para decidir o futuro dos campistas. Eu quero que você participe, e ofereça uma saída para eles.

— Qual seria essa saída?

— Ofereça-os o Acampamento Romano.

Eu congelei. Os romanos e os gregos eram rivais desde a antiguidade. Como ela esperava que eu os unisse agora?

— Mas, senhora…

— Hellen — eu fui interrompida.

Ela se aproximou de mim e tocou meu queixo com um dedo. Só esse toque foi suficiente para um sentimento aflorar cada parte do meu corpo. Era como se tudo fosse possível.

— Eu confio em você. Convença-os. Não lembra do que eu te prometi caso fique do meu lado?

— Lembro.

Ela sorriu. Uma das coisas mais perfeitas que eu já tinha visto. Eu a obedeceria sem hesitar. Logo depois, sua imagem foi ficando mais fraca, até que sumiu.

Senti um pouco da brisa do oceano antes de voltar para o bunker.

Ψ

— Noventa e sete. Noventa e oito. Noventa e nove. Cem.

Voltei ao começo da fila e contei novamente, só para ter certeza. Quando eu percebi que deu a mesma contagem, olhei para Anne. Ela entendeu o que significava.

— Está faltando um — ela falou, alto.

— Seria eu? — olhei para a porta. Hellen estava lá, jogando sua adaga no armamento antes de entrar.

— Pelo amor dos deuses, Hellen. O que você estava fazendo lá fora a essa hora? — falei, me acalmando.

Ela deu de ombros.

— Queria ver um pouco do sol. Só vou vê-lo de novo amanhã, não é?

— Entre logo. Anne, poderia fechar as portas?

Os filhos de Hefesto produziram um mecanismo muito útil para nós. Só havia um jeito de fechar as portas, assim ninguém poderia nos trancar por acidente, ou propositalmente.

Anne tirou o berrante do bolso e o tocou. O som de engrenagens nas paredes ficou mais alto, e a enorme placa de pedra suspensa foi abaixando até tocar o chão. Depois, barras de metal nas paredes se conectaram à pedra, lacrando-a nessa posição.

Quando o último raio de sol foi apagado pela pedra, Anne parou.

~Ψ~


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