Aracne escrita por Jeniffer


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! :D



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Pierre caminhava nervoso, ouvindo o eco de seus passos pelo corredor. Odiava o silêncio daquela parte do escritório e o som de seus passos contra o piso. Aos seus ouvidos sua caminhada soava como as trombetas que anunciavam o fim do mundo. Porém, pensando bem, talvez fosse. Aquela pasta em suas mãos certamente se parecia com um anúncio do apocalipse.

O corredor era longo e quase completamente vazio, com paredes de vidro que proporcionavam uma visão estonteante da cidade. Esta parte da cobertura fora escolhida por ser linda e silenciosa, como ela queria. Instintivamente diminuiu o ritmo dos passos quando chegou perto da porta, mas sabia que seria em vão.

— Entre, Pierre. – a voz feminina e levemente entediada ecoou através da porta.

Ela provavelmente me ouviu desde que eu saí do elevador, pensou Pierre enquanto entrava no escritório.

— Bom dia, Marie. Tudo bem? – ele tentou parecer descontraído, mas o seu sorriso não conseguia esconder o seu nervosismo.

Marie estava concentrada em um desenho em sua mesa, fazendo anotações nas bordas, seu cabelo perfeitamente arrumado de modo a não atrapalhar a sua visão e seus óculos pendendo perigosamente na ponta de seu nariz. Ela parecia estar em outro mundo.

— Está tudo bem, Pierre? – perguntou ela quando lançou um olhar fugaz a ele, o suficiente para perceber o estado de seu estilista chefe. Ela tirou seus óculos e indicou a cadeira à sua frente, convidando-o a se sentar.

—Posso ir direto ao assunto? – ele disse, sentando-se pesadamente.

— Eu não esperaria nada menos de você. – ela fechou a pasta com os desenhos em sua mesa e focou sua atenção em Pierre.

— Eu estava fazendo minha caminhada rotineira ontem pela manhã e acabei decidindo explorar uma nova parte da cidade. Quando dei por mim já estava próximo ao Garreth’s e encontrei uma coisa... Uma coisa deveras interessante.

Marie ficou séria, imediatamente compreendendo a gravidade da situação, por isso, preferiu não tecer nenhum comentário. Afinal de contas ela sabia que Pierre não praticava esportes e o restaurante que ele citara ficava em uma parte afastada da cidade, muito próximo de onde seu namorado vivia. Normalmente Pierre era muito reservado sobre isso e para se dar ao trabalho de inventar uma grande história para explicar sua presença naquele local, o motivo deveria ser muito importante.

— O que você encontrou, Pierre?

Ele não respondeu, apenas estendeu a pasta que trazia em suas mãos, deixando que ela observasse o conteúdo.

— Eu tentei lhe trazer essas fotos o mais rápido possível. – ele disse, enquanto Marie analisava cada uma detalhadamente.

— São lindos. – ela comentou, baixinho. Cada foto trazia alguém vestindo uma peça diferente. Um casaco com um caimento perfeito, um vestido com formas divinas, uma calça que Marie desejou ter em seu guarda-roupa e uma peça com um tom de vermelho que ela nunca vira antes.

— Todas são criações da mesma pessoa. – Marie esqueceu-se das fotos por um segundo, surpresa com a informação. – Ara Rowell.

— Nunca ouvi este nome.

— Eu também não, até ontem. Contudo, algo me diz, querida Marie, que vamos ouvi-lo até demais daqui para frente. – Pierre ajustou a sua gravata em um gesto instintivo. – Acredito que esta possa ser nossa maior concorrente.

— Concorrente? – Marie riu com desdém. – Nós somos a Atena’s Fashion Design. Você sabe o que isso significa, não é, Pierre? Nós não temos concorrentes.

Pierre sorriu com admiração, pois ali estava ela. Marie Carlisle Abbot, a criadora do maior e mais influente estúdio de moda que já existiu. Ele já nem mesmo lembrava-se da última vez que se preocupou com concorrentes. Eles simplesmente de digladiavam pela fatia de mercado que sobrava da Atena’s, enquanto eles continuavam no topo.

— Conte-me mais sobre o que descobriu.

— Aparentemente, Ara é algum tipo de milagre naquela vizinhança. Questionei algumas pessoas, e apesar de todos conhece-la, ninguém sabe nada a seu respeito. Dizem que, da noite para o dia, o ateliê estava lá.

— Como isso é possível? – Marie questionou.

— Bem, é mais impressionante do que improvável. – Pierre divagou. – Se ela está atuando com uma estrutura básica, não levaria muito tempo de qualquer jeito. E acredito que a curiosidade das pessoas tenha criado a sua clientela.

— Ela tem muitos trabalhos?

— Segundo dizem, Ara não dorme. Trabalha com prazos curtos e não atrasa uma única entrega. – Pierre apontou para as fotos esquecidas na mesa. – E veja a qualidade. Não posso afirmar nada sobre o material, mas observe o resultado final. Eu morreria por um vestido como este.

— E o que exatamente nela o assustou tanto? – Marie questionou, ignorando o último comentário.

— Veja esta peça aqui. – Pierre apontou para uma foto específica. – O caimento do casaco, o desenho assimétrico e colarinho. Não lembra nossa coleção de inverno do ano passado?

— Sim, lembra. – Marie concordou, apesar de o casaco na foto ser bem diferente da coleção. A referência era clara, mas a execução era inovadora. – Então ela nos copiou. Esta não é a primeira e, receio que, não será a última vez que isso acontece.

— Não estou apontando o fato de ela ter sido influenciada por nossa coleção, Marie. Eu estou apontando o fato de que uma única pessoa conseguiu executar algo que nos exigiu uma equipe inteira.

Marie ficou em silêncio. Sim, isso merecia ser destacado. Ela levantou-se e foi até a janela, ponderando cada palavra dita por Pierre.

— Talvez devêssemos visita-la. – sugeriu Marie, apreciando a linda vista que tinha dali.

— E dizer o que? – Pierre riu. – Olá, você copiou nossa coleção de inverno do ano passado?

— É claro que não, Pierre. – Marie respondeu. – Eu pensei em algo como “olá, eu gostaria de um vestido”.

***

Marie entrou no elevador sozinha e pressionou o botão que a levaria até a garagem. Enquanto a música suave e irritante preenchia o ambiente, ela observou seu reflexo no espelho. Vestiu-se de maneira simples, mas não desleixada. Apenas o suficiente para indicar que tinha dinheiro para comprar o vestido que quisesse, mas não para indicar quem realmente era.

Quando as portas do elevador se abriram, Pierre a esperava.

— Marie! – ele a recebeu. – Achei que vestiria sua melhor roupa de empresária da moda hoje.

— Não acho que uma costureira de classe média saiba quem eu sou, mas não vou arriscar nada hoje. – Marie foi em direção ao carro e percebeu a presença de Paul. – O que ele está fazendo aqui?

— Anne insistiu que ele nos acompanhasse. – Pierre deu de ombros, ignorando a presença do segurança enquanto abria a porta do carro. – Aparentemente alguém desapareceu naquele bairro semana passada e ela ficou preocupada.

— Como assim, desapareceu? – Marie entrou no carro e deixou a bolsa ao seu lado.

— Uma menina chamada Amélia, eu acho. Anne mostrou-me a reportagem no jornal, mas não li todas as informações. – Pierre sinalizou para o motorista. – Só sei que ela não foi encontrada.

— Achei que aquele bairro fosse tranquilo. – Marie comentou, sem nenhum interesse.

— E é. Ou era. – ele riu de maneira cansada. – Acho que não há mais um lugar seguro neste mundo.

— Descobriu mais alguma coisa sobre esta costureira? – Marie perguntou, indo direto ao seu ponto de interesse.

— Não. Mas acho que esta visita vai ser bem esclarecedora.

O resto da viagem foi percorrido em silêncio. Marie e Pierre pareciam absorvidos em seus celulares, respondendo e-mail e mensagens, lendo coisas aleatórias, enquanto o tumultuado centro da cidade ficava para trás e eles se aproximavam de um bairro calmo, com casas simples, mas bem cuidadas. O tipo de lugar que, no passado, Marie teria apreciado. Tempos longínquos, em que seu maior sonho era uma casa própria.

Pierre deu indicações ao motorista e ele estacionou o carro em frente ao ateliê. Marie saiu e observou a fachada. Não havia nada de surpreendente ali, apesar de, naquela vizinhança, a casa se destacava.

Havia rosas vermelhas delimitando o caminho da calçada até a porta, onde uma placa simples dizia apenas “A. Rowell”. Marie e Pierre aproximaram-se, sendo seguidos de perto por Paul, e tocaram a campainha. O som dos saltos ecoou anunciando a aproximação de alguém e então a porta se abriu.

— Olá. Posso ajuda-los? – perguntou a mulher que ali se encontrava.

Marie ficou congelada observando aquela mulher que, sem dúvida nenhuma, era Ara. Os cabelos eram negros. Impossivelmente negros, assim como seus olhos. Marie ficou desconcertada pela facilidade com que conseguia olhar para eles. Ela chegou a pensar que se, um dia, todas as estrelas se apagassem, o universo seria como o olhar de Ara: negro, profundo e levemente assustador. Ela vestia-se com um modelo profissional e incrivelmente prático que fez Marie arquear as sobrancelhas. Ela conhecia muito bem aquele estilo, afinal, ela o criara. Mas no corpo de Ara parecia muito mais belo.

— Nós estamos procurando Ara Rowell. – disse Pierre diante do silêncio de Marie.

— Sou eu. – ela respondeu. – Entrem, por favor. Vou atendê-los em um minuto.

Marie apenas seguiu Pierre em silêncio, adentrando o ateliê. Se por fora ele parecia simples, por dentro a realidade era bem diferente. A sala era confortável e muito bem decorada, com um sofá grande o suficiente para cinco pessoas, uma poltrona, uma mesinha com todos os tipos de guloseimas para entreter quem estivesse esperando. Um lindo lustre pendia no centro, brilhando com a luz do sol que entrava pela janela. Era simples, se comparado com a Atena’s, mas ainda sim, havia certo requinte no ambiente.

— Estrutura básica. – sussurrou Pierre.

— Sentem-se, por favor. Preciso terminar de atender uma cliente e já volto. – disse Ara, indicando o sofá. – Aceitam um café?

—Eu prefiro chá. – respondeu Marie, sentando-se.

— Oh, desculpe. – respondeu Ara, olhando-a nos olhos de uma maneira que deixou Marie desconfortável. – Eu só tenho café para lhe oferecer hoje.

— Não se preocupe com isso. – Marie disse, baixinho.

— Eu voltarei em um minuto.

Ara sorriu calmamente e desapareceu em uma segunda sala, deixando-os sozinhos.

— O que achou? – Pierre sussurrou.

Marie deu de ombros e não disse nada. Como explicar o arrepio que percorreu sua espinha ao olhar nos olhos de Ara?

— Eu usava este estilo quando comecei minha carreira. – Marie sussurrou. – Empresária chique, mas sem medo de trabalhar.

— Eu percebi! – Pierre riu.

Ara voltou logo depois, acompanhando sua cliente que segurava orgulhosamente uma sacola.

— Se ela precisar de qualquer ajuste, é só me procurar. – ela disse, alegremente.

— Nunca foi preciso, Ara. Você sempre acertou. – a mulher respondeu. – Ela vai adorar.

— Espero que sim. – Ara abriu a porta. – E diga que desejei um feliz aniversário a ela.

— Direi, sim. Adeus!

— Adeus, Susan! – Ara rapidamente voltou sua atenção à sala. – Desculpem pelo incômodo. Em que posso ajuda-los?

Movendo-se rápida e graciosamente, Ara sentou na poltrona, em frente à Marie, com olhos atentos.

— Eu gostaria de um vestido especial, para uma festa importante. – Marie tentou demonstrar com um ar de expectativa.

— Desculpe, eu não perguntei seus nomes. – Ara sorriu como quem se desculpa.

— Eu sou Marie, este é Pierre e este é Paul. – ela indicou cada um deles, e Ara observou cada um, depois voltando toda sua atenção à Marie, como se quisesse memorizar cada detalhe do rosto daquela mulher.

— E o que você imagina para o seu vestido? – Ara ajeitou seus cabelos, deixando-os caídos ao lado de seu rosto.

— Bem, eu não sei qual é a tendência. Talvez você pudesse me ajudar. – ela respondeu, com um exagero de inocência.

— É claro. – ela se prontificou. – Que tal começarmos tirando suas medidas?

O vento agitou os cabelos de Ara e ela rapidamente os ajeitou novamente, o que a levou a fechar a janela com rapidez e apreensão. De um de seus bolsos tirou a sua fita métrica e fez um gesto para que Marie ficasse de pé.

— Fique aqui, por favor. – disse Ara, colocando as mãos nos ombros de Marie e corrigindo a postura. Os olhos das duas estavam no mesmo nível e Marie sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ara olhava para ela como se ela fosse transparente.

Com uma rapidez e precisão espantosas, Ara mediu cada parte do corpo de Marie e anotou tudo com uma letra rebuscada em um caderninho. A cada nova medida o sorriso de satisfação dela crescia gradativamente, até ser quase uma máscara assustadora de uma felicidade inebriante.

— O que você está fazendo? – perguntou Marie, com surpresa, quando Ara começou a medir seu rosto.

— Este é um erro muito comum. – ela explicou, como se repetisse um discurso muito antigo que já não tinha mais importância. – Todos se preocupam com as medidas do corpo, mas não do rosto. Mas ele é justamente o que define toda a simetria do vestido. O vestido será parte de você, e você será parte dele. Precisamos pensar no todo, e não apenas na linha e no tecido.

— Fantástico. – sussurrou Pierre, tentando entender porque nunca pensara a respeito. Marie tentou relaxar sua expressão, parecer pouco impressionada, como se tudo aquilo fosse rotineiro, enquanto Ara media seu rosto.

— Tudo pronto. – Ara sorria com extrema satisfação. – Agora, que tal escolhermos o tecido?

*********

Marie levou aproximadamente uma hora para determinar os tecidos que seriam usados e para descrever a sua ideia de vestido. Ela pensou em detalhes altamente difíceis que vira em passarelas ao redor do mundo, em seus devaneios mais insanos que nem mesmo ela conseguira transportar para o tecido e em ideias ruins que serviam para testar o senso de moda da costureira.

Para a sua surpresa, Ara era muito habilidosa em captar a ideia e esboçar algo com rapidez. Em alguns casos o esboço ficou muito melhor do que Marie imaginara. Além disso, ela descartara com muita delicadeza cada ideia ruim apresentada, alegando prezar pelo conjunto da obra.

Parte disso foi apenas o resultado da irritação de Marie. A proximidade de Ara a deixava desconfortável, como se cada terminação nervosa do seu corpo entrasse em um estado de alerta constante. Marie tentou dar nome ao sentimento, e ficou ainda mais surpresa por perceber o leve toque de inveja que estava sentindo. Pela primeira vez em muito tempo ela reconhecera uma concorrente, alguém que tinha potencial para chegar aonde ela chegara.

Por mais que ela se negasse a admitir, elas eram muito parecidas.

— Acho que já tenho tudo o que preciso. – disse Ara, fechando seu caderninho.

— Sim, eu acredito que seja o suficiente. – Marie concordou, pegando sua bolsa.

— Estou ansioso pelo resultado final! – Pierre despediu-se de Ara com um caloroso aperto de mão.

— Espero não decepcioná-lo! – ela os guiou até a porta. – Eu entrarei em contato para marcamos a primeira prova do vestido.

— Aguardarei seu contato. – Marie estendeu a mão, mas Ara a puxou para um abraço.

Marie retribuiu e foi rapidamente em direção ao carro, querendo se distanciar dali. Paul, o segurança, abriu a porta para que ela entrasse.

— Então, o que achou? – perguntou Pierre com animação, assim o carro começou a se movimentar.

— Acredito que seja muito cedo para uma análise completa. Prefiro esperar e ver o resultado do vestido.

— Sim, mas o que achou dela? – Marie sabia exatamente o que ele queria ouvir.

— Eu acho que ela é muito promissora, e acredito que seja sábio de nossa parte fazer com que ela trabalhe para Atena’s antes que ela cresça demais por conta própria.

— Eu concordo. – ele disse, com um sorriso cúmplice. – Eu acho que o departamento de criação vai ganhar muito com ela na equipe e toda a atenção que ela tem com detalhes. Acho que ela seria ótima para a próxima coleção, já que pensamos em...

Marie deixou que Pierre continuasse a divagar sobre o futuro de Ara na Atena’s e dirigiu seus pensamentos para longe dali. Tentou pensar no trabalho que precisava realizar quando chegasse ao escritório, ou no vinho que tomaria quando chegasse em casa, ou na música que gostaria de ouvir.

Qualquer coisa para esquecer o estranhamento que percorria seu corpo quando lembrava do olhar de Ara.

***

Marie saiu do elevador sozinha, concentrada na reunião que teria em trinta minutos, quando sua secretária a encontrou.

— Bom dia, Marie. – disse ela, oferecendo um copo de café que Marie aceitou imediatamente. – O diretor da filial em Paris já está no prédio, e a sala de reunião já está pronta para você. O material da discussão está em sua mesa e a apresentação já foi revisada.

— O que o setor de marketing achou? – ela questionou, enquanto caminhava.

— Eles acham desnecessário mostrar as estatísticas do semestre passado já que elas não são muito boas.

— Eu devo esconder isso da filial? – Marie questionou incrédula. – O que eles vão alegar?

— Amostragem insuficiente, eu acredito.

— Isso é ridículo. Esta informação deve constar na apresentação. – Marie abriu a porta do escritório e esperou. – Mais alguma coisa?

— Sim. – a secretária checou a agenda. – Ara Rowell ligou e disse que a base do vestido está pronta para a primeira prova e disse estar livre esta manhã. Ela aguarda sua resposta.

Marie ficou em silêncio. Apenas três dias haviam se passado desde sua primeira visita, e este era um espaço de tempo muito curto para um trabalho tão elaborado. A curiosidade de Marie sobre o vestido cresceu incrivelmente.

— Diga a todos que a reunião vai começar imediatamente, então ligue para a senhorita Rowell e diga que estarei lá em duas horas. – Marie pegou a pasta sobre sua mesa, jogou o café fora e dirigiu-se para a sala de reuniões.

— Eles não terão tempo de ajustar a apresentação, Marie. – alertou a secretária.

— Sempre podemos dizer que a amostra foi insuficiente para o universo considerado. – ela disse, despreocupada. – Agora, ao trabalho!

***

Ao final da reunião Marie despediu-se de todos, recusando educadamente os convites para o almoço, e foi para a garagem. Ela iria dirigir até o ateliê de Ara e então almoçaria sozinha, já que havia agendado uma visita ao cabelereiro no início da tarde.

Ela ligou o rádio enquanto dirigia, procurando alguma coisa. Quando algum programa aleatório anunciou mais um desaparecimento, ela mudou de estação procurando uma música. Não estava com humor para tragédias hoje. Então, embalada pela música que encontrou no rádio, tentou lembrar-se do caminho até o ateliê. Quando o avistou estacionou o carro, retocou sua maquiagem utilizando o retrovisor como espelho e saiu. Antes mesmo que tivesse a chance de bater na porta, Ara a recebeu.

— Olá Marie. – disse ela, suavemente. – Fico feliz que tenha vindo.

— Minha curiosidade me venceu. – ela admitiu, dando de ombros.

— Imagino que sim.

Ara usava um vestido preto aparentemente simples, mas aos olhos treinados de Marie era muito requintado. O corte foi pensado para ressaltar as belas curvas de Ara, terminando um pouco acima do joelho e acompanhar divinamente o sapato que ela usava. Aquele era um vestido feito não só por alguém que dominava a arte da costura, mas também por alguém que conhecia muito bem seu próprio corpo.

— Entre, por favor.

Marie pensou que deveria ter trocado de roupa antes de encontra-la, mas dispensou o pensamento com um sorriso interno, depositando pontos na conta de Ara. Há muito tempo ela não se sentia intimidada.

Ara adiantou-se para a sala e foi em direção à mesa de centro.

— Aceita um chá? – ela estendeu uma xícara para Marie.

— Aceito, obrigada. – Marie deixou sua bolsa no sofá e pegou a xícara. Camomila, ela identificou. Não era o seu favorito, mas a agradava. – Então, posso ver o vestido?

— Ansiosa? – Ara riu, satisfeita, mas logo baixou a voz. – Eu também. Venha por aqui.

Marie não havia visto o resto do ateliê em sua primeira visita, então ficou ansiosa com o convite. Ara a guiou por um curto corredor que terminava em uma porta pesada, com aparência antiga. A costureira entrou e foi acender as luzes, deixando Marie absorver a cena.

A sala era ampla e estaria completamente vazia se não fosse por seis vestidos expostos ali. Eles estavam posicionados em duas fileiras, três de cada lado, como esculturas em um museu. Havia um fio quase invisível, como uma teia de aranha, preso ao teto alto e segurando-os suspensos no ar. Se Marie não tivesse aproximado deles, talvez pensasse em mágica. Mas o leve spot de luz que os faziam brilhar estragava a ilusão. Era como se a sala fosse um palco e cada vestido fosse o ator principal, iluminado por seu próprio holofote.

— Gosta? – a voz de Ara continuava baixa, suave.

— São lindos. – sussurrou Marie, segurando fortemente a xícara de chá em suas mãos.

— Sim, são mesmo. – ela caminhou devagar, cada passo calculado com antecedência, aproximando-se dos vestidos. – A obra da minha vida.

Marie deteve-se no primeiro vestido, impressionada com o trabalho. Era um vestido branco, perfeito para ser usado por uma noiva, com uma saia que lembrava muito os vestidos do século 18. As flores que o enfeitavam criavam a sensação de ele carregava um jardim inteiro consigo. No topo do vestido, preso ao fio via-se uma pequena placa onde lia-se “Jac” na caligrafia rebuscada de Ara.

— Este vestido deve ser muito pesado! – exclamou Marie, mais para si mesma. – E veja como esta saia se sustenta. É impossível conseguir este caimento com uma saia de armação. Modelo nenhuma conseguiria usá-lo em uma passarela.

— Conseguiria com facilidade, Marie. – Ara a observou com olhos atentos. – Este vestido pode ser pesado, mas a sustentação é muito forte.

­ — Mas para sustentar todo este trabalho a própria armação seria muito pesada. – Marie lembrou-se de um projeto descartado quatro anos atrás que passou pelo mesmo problema. – Meu melhor estilista tentou algo parecido e nem mesmo fibra de carbono foi viável.

— Quanto você pesa, Marie? – Ara perguntou, mas logo acenou com desdém, dizendo que isso não era importante ao ver a reação de Marie. – Você deve pesar 73kg, estou certa?

Marie não respondeu, mas ficou surpresa por Ara acertar o número exato. A satisfação na expressão dela ao perceber que estava correta fez com que Marie recuasse um passo.

— Existe um material na natureza que consegue carregar os seus 73kg e muito mais e faz isso com perfeição. ­E nós o carregamos todos os dias, sem cansar. E por isso é o material perfeito para este vestido.

— Do que você está falando? – Marie sussurrou, enquanto Ara ajeitava seus cabelos, trazendo-os para frente, levemente irritada com os fios rebeldes.

— Ossos.

— Desculpe, por um momento eu pensei que você tivesse dito...

— Ossos. – o sorriso de Ara era diabólico. – Eles carregam o seu peso com perfeição e você não sente isso, não é? Devo admitir que este é o meu favorito. Com certeza foi o mais trabalhoso, mas o que mais me orgulho de ter feito. Você tem ideia do quão difícil é transformar ossos em uma estrutura de sustentação?

Marie não conseguia reagir, sua mente estava vazia, suas engrenagens estavam travadas.

— Eles são perfeitos para o corpo humano, é claro, mas não para uma saia. – Ara acariciava o tecido com muito cuidado e um carinho doentio em seus olhos. – No começo tentei com bebês, pois, como os ossos ainda não estão em sua forma final, são muito mais maleáveis. Mas isso se provou pouco prático.

— Por que bebês são difíceis de conseguir? – Marie não sabia de onde essas palavras haviam saído. Ela nem mesmo pensara nelas, sua boca apenas as proferiu sem ordem prévia. Mas isso pareceu alegrar Ara.

— Não, é claro que não. Não seja boba. – ela riu. – Mas para um vestido como este seria preciso muitos deles. Mas com apenas uma pessoa adulta eu já consegui finalizar o vestido. Demorou muito mais, mas valeu a pena no final. Eu tive muita sorte em encontrar alguém tão alta como Jacquelina.

— Isso é algum tipo de piada, Ara? – Marie sussurrou, sua voz fervilhando de raiva.

— Marie, minha querida, nós somos amigas. Por favor, me chame por meu nome completo: Aracne.

— O que você pensa que está fazendo, sua maluca?

— E este? – Ara falou, ignorando-a. – Você gosta deste tom de vermelho?

Marie reconheceu o tom de vermelho das fotos que Pierre lhe mostrou quando descobriu Ara. Era ainda mais impressionante visto pessoalmente, completamente diferente de tudo o que ela já havia visto. A pequena placa no topo dizia apenas “Am”.

— Lindo, não é? – Ara disse, com um tom de reverência. – É de Amélia. Eu a conheci no café Pearl, conhece? Um lugar muito charmoso que serve o melhor mocaccino que já provei.

— A garota que desapareceu? – a voz de Marie não passava de um sussurrou agoniado que foi abafado pelo som da xícara quebrando-se em mil pedaços no chão. Ara não pareceu se abalar.

— Ah, os jornais... Sempre tão sensacionalistas, não acha? Você mais do que ninguém deve saber. – o olhar dela queimou sobre a pele de Marie. – Marie Carlisle Abbot, presidente da Atena’s Fashion Design, com certeza deve sofrer constantemente com os assédios da impressa.

Marie não reagiu. É claro que ela a reconhecera e não parecia nem um pouco feliz por ter sido considerada uma tola.

— Você é louca...

— Deixe-me lhe contar a melhor parte. Foi quando eu estava no café tomando um mocaccino, e um dos clientes ao meu lado derrubou um copo. Amélia era a garçonete e veio limpar a sujeira, mas acabou cortando a mão. Eu sempre digo que a pressa é a inimiga desta geração... – Ara suspirou como uma mãe preocupada, mas logo voltou ao seu estado de adoração quase divina. – Oh, o sangue dela, Marie. O tom de vermelho mais rubro e lindo que eu já vi! Eu soube, naquele instante, que precisava criar algo com aquele tom. Procurei em diversas lojas. Procurei por toda a cidade, procurei com fornecedores estrangeiros, mas ninguém possuía nada com aquele tom de vermelho. Então, eu precisei produzir meu próprio tecido.

— Você o que? – Marie engasgou-se.

— Eu testei primeiro, é claro! Não se apavore. – Ara parecia alarmada, ajeitando novamente seu cabelo. – Não desperdicei uma única gota de Amélia, pode ter certeza.

Marie olhou ao seu redor, sentindo-se tonta. Cada vestido possuía sua respectiva placa com algumas iniciais, todas diferentes das outras.

— Não se preocupe Marie. – Ara pegou uma pequena placa que trazia escondida em suas mãos. – A sua está bem aqui.

Marie tentou clarear sua mente, lutar contra a tontura que a consumia.

— O que está acontecendo? – ela perguntou, com um claro esforço para juntar as palavras, sentindo seus joelhos cederam em direção ao chão.

Ara aproximou-se dela, agora apenas uma imagem borrada. E antes que a consciência de Marie perdesse esta batalha, ela sentiu dedos frios percorrerem seu rosto e sua voz baixa dizer com um tom de pena:

— Da próxima vez, aceite o café.

***

Marie acordou atordoada, tentando identificar o local em que se encontrava. Quando avistou os longos cabelos de Ara ela tentou fugir, finalmente percebendo que estava presa e não conseguia mover uma única parte do seu corpo.

— Fique calma, será mais fácil. – Ara falou, sem se virar.

— Aracne, por favor. – implorou ela, lembrando-se do nome. – Por favor, eu lhe dou o que você quiser. Todo o dinheiro que quiser, mas me deixe ir.

Aracne então se virou e Marie pode ver o instrumento cirúrgico que ela trazia em suas mãos.

— Sim, você vai me dar. Mas isso não é pelo dinheiro. – ela acariciou o rosto de Marie com muito carinho. – Eu sempre quis ser a presidente da Atena’s, controlar aquele império. Então você apareceu na minha porta. Isso é destino, Marie! Você viu como conseguimos olhar nos olhos uma da outra sem esforço? Temos a mesma altura! E o seu rosto é perfeito em cada centímetro. Eu não poderia querer mais nada...

— Meu... rosto?

— Sim, mas não se preocupe. Eu já fiz os testes que precisava. Costurar pele é muito mais difícil do que parece, mas eu estou ficando muito boa nisso.

— Por favor, não... – Marie não conseguia controlar as lágrimas.

— Eu ainda tenho um pouco de dificuldade com o acabamento. – Ara divagou. – Você tem ideia do quão difícil é costurar atrás da sua orelha esquerda, sendo destra?

Ela afastou o cabelo que tanto insistia em deixar para frente, e Marie finalmente entendeu. Era para esconder a cicatriz que havia ali. Enojada, ela gritou.

— Ora, deixe disso. Como eu falei, estou ficando muito boa nisso. – ela aproximou o bisturi do rosto de Marie, que se contorcia sem parar. – Mas eu preciso que você fique parada. Não gosto de desperdícios. Vou sedá-la novamente, apenas por garantia.

— Você é louca! Socorro! Socorro! – Marie gritou a plenos pulmões, desespero impregnando sua voz.

Aracne injetou o sedativo no braço esquerdo de Marie e falou com a voz baixa e controlada.

— Eu lhe disse, Marie. O vestido é parte de você e você é parte do vestido. Nós somos o que vestimos.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! :D