Aos olhos de alguém escrita por Loressa G M


Capítulo 34
Um bruxo




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A macabra figura se aproxima, junto a ela, sua cópia. Fecho os olhos novamente, dessa vez, pensando em uma música qualquer – realmente não quero mais um monstro hibrido à minha frente.

  Um estranho som desperta minha curiosidade, ao olhar para o homem com rosto de lobo, percebo o singelo movimento de sua mão. Ele enfeitiçara sua perfeita réplica, a qual, aos poucos, começa a se desfazer em folhas de outono à minha frente, cobrindo parte de meus pés e do carpete.

  Magia... “Aquilo” é um bruxo? Por que um bruxo teria uma cabeça de lobo no lugar...

  Ele segura meus braços, interrompendo meus questionamentos. Só então percebo o quão suada estou, gotas gélidas cobrem cada centímetro de minha pele. A criatura se ajoelha à frente de meu corpo, entre as folhas secas, retirando a máscara incrivelmente realística. Seus cabelos castanhos caem em cachos sobre seus ombros, seus olhos esverdeados brilham ao encararem-me pessoalmente.

  Apesar de seu penteado e a cor de seus cabelos, ele se parece com Ramon... não apenas parecido, ele é idêntico. O formato de seu rosto, seu nariz, seus olhos... é como se um fosse o reflexo do outro.

  – Quem é você? – Pergunto em um sussurro. As palavras mal saem da minha boca, quando ele me levanta, pondo-me sentada na cama.

  As sobrancelhas dele arqueiam, me analisando dos pés à cabeça. “É uma longa história”, começa ele.

  – Sou o primeiro bruxo a pisar nessas terras – um arrepio percorre minha espinha, Ernesto— Primeiramente, desculpe-me pela máscara. Não queria ser reconhecido por ninguém além de você... e Natacha, é claro. Aquela maluca psicótica persegue-me desde antes do Big bang— um pequeno sorriso convencido se forma nos lábios do bruxo.

  – Ernesto... por que se parece tanto com meu pai?

  – Pai? – Ele me olha confuso. Digo-lhe o nome completo de Ramon, após alguns segundos ele balança a cabeça, como se tivesse se lembrado de algo sem muita importância à ele – Ah, aquele ruivo que vi quando entrei na mansão... ele é minha cópia.

  A naturalidade com qual ele me diz, assusta-me mais do que a própria noticia – O encaro de olhos arregalados. Após dizer-me aquilo, não foram mais precisas palavras, a mente do bruxo grita praticamente tudo que ele pensa.

  Ramon é a cópia que Natacha fez de Ernesto, como ela não poderia ter quem amava, criou uma réplica, à imagem e semelhança do bruxo. Porém, após a queda de Natacha, Alinpç roubou o “brinquedo” da casa de sua irmã, modificou-o, dando-lhe cabelos cor de sangue, para parecer-se menos com Ernesto, e entregou-lhe à sua amada Isabel.

  – Entretanto, um corpo sem alma é um parque de diversões para os demônios. – o bruxo começa a falar, para que não tenha sua mente invadida – Mais de uma vez, o corpo vazio do homem que conhece como Ramon fora possuído. Pequenas entidades brincaram pela ilha, causando incêndios em vilas, sacrificando animais e perturbando os habitantes. Até que um dia, um demônio um pouco maior o possuiu, enxotando os pequeninos. Já não eram mais simples sustos que Ramon fazia.

  “Ele matava pessoas”, digo, sem perceber acabo ouvindo novamente os pensamentos de Ernesto. Por algum motivo, o cérebro dele é diferente dos demais, é como se gritasse as frases enquanto pensa.

  ­– Ele matou dez dos novos habitantes que trouxera para repovoar a ilha. Foi quando resolvi dar um fim na situação, entreguei-o aos Maikles que sobreviveram ao surto de Natacha. Alipnç e Isabel não protestaram – O bruxo faz uma breve pausa, suficiente para que sua mente volte a gritar, dizendo mais alto do que sua boca. Ele percebe o que está acontecendo e se cala, como se já estivesse acostumado a tal situação.

   Enfim, quando Ernesto entregou o corpo sem vida para os Maikles, eles o aceitaram. Isabel havia fornecido um pouco de seu sangue a ele, ela achava que, como vampiro, Ramon seria um escravo mais útil, porém, para completar a transformação é preciso morrer. E não há como matar algo que nunca esteve vivo. A família Maikle sabia – e eles sempre tiveram pactos dos céus ao inferno. Eles deram a alma de um antigo herói deles, Ramon Maikle.

  – Só por curiosidade, quando Natacha aprendeu a controlar as pessoas, mesmo dentro de seu caixão a sei lá quantos metros do solo, ela fez o ruivo vagar pela floresta, procurando onde ela fora enterrada. Meu inimigo acabou por achar mais seguro bloquear toda a memória do vampiro, inventar outra e introduzi-lo como um humano em uma família qualquer de ruivos no mundo externo. – o bruxo sorri de lado – Quem diria que ele iria voltar a ser vampiro e acabaria novamente nessa ilha?

  – Ernesto, porque... – Tento perguntar sobre sua mente, mas sou interrompida. – Ele sabe deduzir o que um kirian pensa.

  – Kirians são uma evolução da espécie humana. – Ele encara-me nos olhos – Tudo nessa ilha evolui extremamente rápido se comparado ao mundo exterior. Os humanos e monstros que trouxe para cá, logo nas terceiras gerações das famílias já havia uma alteração em seus cérebros, deixando-os mais fechados aos kirians. Por volta de cem anos ininterruptos permanecendo nessa ilha, seu corpo muda. Eu nunca passei tanto tempo nessas terras.

  Sorrio, ele retibui o mesmo sorriso alegre. Sei, sem ao menos entrar em sua mente, que muito mais nessa ilha evoluiu rapidamente.

  – Me mostre. 

***

  Caminhávamos pelas idênticas calçadas do estado Vicely já havia um tempo, a iluminação das ruas destacava ainda mais os olhos esmeralda de Ernesto, era como se já conhecesse aqueles olhos uma vida inteira – mesmo que visto pela visão de outras pessoas a maior parte dela. Foi quando paramos em frente a uma pequena fresta entre as árvores da floresta Leste.

  Foi onde meus pais me encontraram, e onde certos monstros me deixaram.

 

  Me deparo com aquelas mesmas árvores comuns, será que...

  Corro por entre a mata, até parar em frente dela, a glicínia rosa em que esperara por dois dias os Deverron voltarem.

  – Por que me trouxe aqui Ernesto?

  Ele sorri, colocando de leve uma das mãos em minhas costas, fazendo-me continuar a andar mais à dentro da floresta. A maioria das arvores estão floridas, é outubro, a primavera encanta os olhos dos moradores da ilha.

  Um barulho de água parece pairar por toda a floresta, entretanto, não o ouvia a dois passos atrás.

  – Já ouvira falar daquelas histórias do mundo externo, em que procuram uma fonte da juventude para poderem viver eternamente? Então... – ele aponta com o queixo para algumas folhas laranjas, as quais, tão juntas, parecem uma cortina mística para outro mundo.

  Mais de perto, percebo que nenhuma das folhas estão realmente grudadas em outra ou em qualquer coisa, elas simplesmente flutuam. Encosto meu dedo em uma delas, ao fazê-lo, todas encolhem até desaparecerem. Passo por entre a abertura, uma cascata de água transparente parece brilhar em meio a queda, enquanto escorre por entre pedras roxas-acinzentadas até um profundo lago. Mesmo ainda sendo noite, a água do lago é extremamente clara, como se sugasse toda a luz do luar para si.

  “Ele surte um efeito diferente para Kirians, assim como para outros seres imortais por natureza”, ouço a mente do bruxo. Decido descobrir qual é o “outro efeito”.

  Antes mesmo de chegar até a borda do lago, começo a me surpreender. Um pequeno ponto brilhante voa em minha direção, seu corpo é minúsculo, mas como o de um humano, com o acréscimo de lindas asas cor de rosa. Alguns outros pontos começam a aparecer ao meu redor. Encantando-me. Elas são lindas, de cores diferentes, brilhando e rodeando-me.

  – Elas também são uma evolução da ilha?

  – São. Os primeiros habitantes da ilha tinham uma tradição, toda mulher que tivesse feito algo heroico, ou que passasse sua vida como uma guerreira, era trazida a este lugar pouco antes do fim. Banhavam-na no lago, e, se sua alma fosse pura o bastante, ela virava um ser de luz, como estas que vê.

  – Sério?

  – Claro que não! São só fadas.

  Rimos, sem nos preocuparmos de alguém nos ouvir. Não acredito que caí, deveria ter lido a mente dele antes. Mas, pensando bem, ele é a primeira pessoa que consegue me fazer rir por uma piada dessas.

  “Aqueles idiotas nunca chegaram a achar esse lugar” “Quando trouxe fadas para a ilha, a primeira coisa que fizeram foi se enfiarem aqui”. A mente de Ernesto começa a falara assim que ele fecha a boca, talvez por isso fale muito mais que Alinpç.

  – Relinquo

  As fadas saem do local, deixando-nos sozinhos.

  – “Deixar” em Latim – responde o bruxo antes de ouvir a pergunta – a maioria das fadas ainda falam apenas idiomas externos... tadinhas, mal sabem o quanto lá fora mudou.

  Depois de um instante, volto meu olhar para o reflexo de meu corpo na água, os olhos vermelhos e cabelos brancos se destacam, juntamente com a pele pálida, em meio a escuridão da noite. Afundo minhas mãos no lago e bebo um pouco.

Ao abrir os olhos, vejo uma mulher ao centro do lago, o sol pondo-se no horizonte colore seus brancos cabelos de laranja, a pele extremamente clara dela parece refletir a luz, e seus olhos o rosa alaranjado, do pôr do sol.  Ela... sou eu?

  A mulher – provavelmente minha versão adulta – saí do lago, a água contornando a roupa fina em seu corpo. Ela parece vislumbrar-se com algo, ou alguém. Logo atrás, entre sua cintura fina e braços cumpridos, vejo dois olhos azuis feito tinta, encobertos parcialmente pelas folhas das arvores ao seu redor.

  O homem se aproxima da jovem de aparentes vinte e quatro, seus cabelos negros se fundem aos brancos dela, como penas de corvo caindo em neve. Eles se encaram, os olhos safira dele parecem penetrar os vermelhos sangue dela, em uma oposição quase perfeita contemplada apenas pelos céus. Sinto o pulsar de seus corações, tão próximos, batendo em sincronia, como se fossem apenas um.

  Ela não pode beija-lo. Por mais que queira, não faz parte do pacto. Ele é quem deve resistir, à ela só resta corroer-se por dentro. Sua alma está presa em um corpo programado, fabricado.

  Suas bocas estão na mesma direção, apesar dela ser alguns milímetros maior que ele – Nem mesmo Konor é tão alto – ele a segura pela cintura, contornando-a com seus braços, seus corpos entrelaçados não conseguiriam ficar mais próximos... e ao mesmo tempo, tão distantes. 

  “Alinpç”. Assusto-me por dizer em voz alta, porém, as primeiras palavras após ter aberto os olhos novamente, não surpreendem a Ernesto. Pelo contrário, seu sorriso demonstra que era exatamente o que ele queria.

***

  Finalmente durmo, entretanto, alguns sons me acordam antes do necessário.

  Desço as escadas. Sofi teve outro surto, matou mais um dos empregados, o sangue ainda escorre por suas compridas unhas. Konor discute com ela.

  Tudo ainda me parece muito turvo, precisava mesmo de mais horas de sono.

  – E o que faremos sobre o caso do Nishiki? – ouço a mesma voz que ouvia no lago ontem, mas dessa vez, sei que não é Ernesto.

— Quem? – Indaga Vic. As vozes vêm de uma sala próxima ao corredor, junto ao som do preparo de bebidas.

  – Dá para prestar atenção? É sobre nosso estado! – Encosto-me à porta entreaberta

  – Recapitula criatura – minha mãe diz de sobrancelhas arqueadas, enquanto bebe o liquido de seu copo.

  O ruivo vampiro suspira, unindo vários papéis sobre a mesa.

  – O cara que se casou com uma Maikle, mas recentemente foi mordido por um lobisomem...

  – Ah! Um lobisomem branco. Ele e a família querem vir para nosso estado não é criatura? Pode deixar ele vir.

  – Mas Vic, eles têm dois filhos – diz Ramon preocupado

  – Menores de quinze? – pergunta ela, finalmente se voltando para o irmão ao invés das bebidas – Ramon? – Ele balança a cabeça indicando que não. Ela suspira – Ramon... conhece as regras, nesse caso só o habitante em perigo obtém refúgio.

  – Eu sei – ele sorri vacilante – Queria poder salvar a todos... mas com tanta gente nunca conseguiríamos manter um estado do modo que fazemos com esse... Davina?

  Ele me percebe, entro na sala de reuniões. Eles me olham como se dissessem “Pode dormir mais filinha. Teve um pesadelo?”  

  – Pai, mãe. Eu acordei por causa da Sofi, ao descer as escadas eu vi sangue... – “vi”, não acredito que deixei escapar dessa maneira.

  – Viu? – pergunta Ramon perplexo

  – Ah! É mesmo... Eu agora consigo enxergar. – sorrio, meio constrangida por não ter contado antes.

  Um leve clima de decepção consome o ambiente. Eu realmente deveria ter contado pelo menos a eles, logo que tivesse a primeira chance. Mesmo assim, após um instante, Ramon me abraça. Vic hesita, mas acaba por se juntar ao irmão. Me sinto protegida, Ramon e Vic devem ser as únicas pessoas, juntamente à Tayler, que realmente me amam, sem querer nada em troca.

  Embalada pelo abraço de meus pais, os gritos na sala parecem distantes, incompreensíveis. Entretanto, uma voz parece atingir-me direto o pensamento. Sei que aquele bruxo jurássico está por perto, não o vejo, mas posso senti-lo, e principalmente, ouvir sua mente gritante.

  “Ouça os sinos Davina... Sua irmã tem mais de uma surpresinha para você”.


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