Bravura escrita por Freak Kyoko


Capítulo 1
Todos Têm Desejos


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem da história e deixem críticas construtivas! Tivemos um limite de 1.500 palavras, então não poderei alterar muita coisa, mas é sempre bom saber o que poderia ser melhorado.

Aconselho que ouçam a música que me inspirou, tanto obrigatoriamente pelo desafio quanto a ouvindo durante a escrita.

https://www.youtube.com/watch?v=TImqwfEbaeg

Boa leitura!

Molho meus lábios, jogo meu cabelo
E dou um sorriso
E uma nova história começa
E eu posso seguir a partir daqui
Eu vou achar minha própria bravura
(Bravado – Lorde)



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Pessoas têm desejos intricados na alma e, ainda que tentem moldá-los ou suprimi-los, eles continuarão queimando devagar do interior para a superfície de cada indivíduo. Alguns desejam o amor, outros a glória e há quem anseie pela calmaria proveniente da brisa marítima. Cada pessoa é singular e cada alma necessita de desejos para serem consideradas como humanas, sem o desejo deixamos de ser e nos limitamos a existir.

Sempre considerei que todo esse querer e almejar fossem raridade e, depois de anos pesquisando e observando, cheguei à conclusão de que nem todo o desejo é ardente e desesperado, alguns apenas deslizam, calmos, por debaixo da pele das pessoas. Comprar uma casa é um desejo; comer brigadeiro e, até mesmo, constituir uma família.

Família.

Esse era o tópico abordado, mais uma vez, no grupo de Assistência Social ao Adolescente Abandonado (ASA), que fora criado especialmente para apoiar e dar suporte aos adolescentes que haviam sido abandonados por suas famílias biológicas ou adotivas e que esperavam por adoção. O que era bastante raro, levando em consideração que o processo já era difícil para adaptar crianças pequenas, com jovens então, era complexo e amedrontador.

Costumava lidar com eles de forma direta, sem fazer com se sentissem coitados pelas circunstâncias da vida e ainda que meus novos colegas alertassem, eu havia me disposto a fazer a diferença onde estava. Cursei Ciências Sociais e era especializada em assistência social há vinte e oito anos, então tinha uma bagagem extremamente extensa sobre como essas crianças se sentiam e gostariam de ser abordadas. No entanto, ainda que tivesse me preparado por anos, nunca tinha lidado diretamente com um “Caso Diferenciado”. Particularmente eu não gostava de tantas nomenclaturas, mas elas ajudavam a discernir muitas coisas específicas, como era a situação de Helena Steele.

Quinze anos, sete de abandono e outros três anos de sucessivas fugas de qualquer lugar que tentassem estabelecê-la. Nosso primeiro contato foi há um mês, quando fui designada a outra cidade, logo, a uma nova ASA. Ela já estava lá quando cheguei e foi só abordar o tema família para perceber o quanto ela reagia de forma diferente dos outros. Não se esquivava, não ficava irritada, não parecia triste e muito menos receosa. Foi extremamente participativa e, a cada tema que sugeria, ela protagonizava as discussões e incentivava os outros a fazerem o mesmo.

Em determinado momento imaginei que ela tivesse desenvolvido um mecanismo de defesa tão bem elaborado que não se permitia sentir a dor pelo o que passou, mas não foi o caso. Lembro-me perfeitamente de quando terminamos uma das rodas e ela esperou que todos saíssem e pediu para conversar comigo, concordei prontamente. Era o que a função determinava. Lena, como preferia ser chamada, perguntou “Dra. Harrington a senhora sabe quantas famílias eu já tive?”. Pensei por um breve momento, mas a respondi de maneira sincera, incentivando com que ela prolongasse seu discurso e me fizesse entender o que estava acontecendo. “Não sei querida” e ela abriu um sorriso gentil enquanto seus olhos brilhavam “Foram cinco, queria que a senhora soubesse” e então se girou sobre calcanhares, fazendo sua saia xadrez do uniforme balançar. Sorri para que ela continuasse a falar, mas ela se encostou a parede e me encarou longamente, esperando alguma reação. “Por que queria que eu soubesse?” perguntei e ela sorriu novamente, como se eu tivesse feito exatamente a pergunta que ela precisava. “Ah... Não sei, acho que a senhora seja uma boa pessoa. Gosto muito da senhora, sinto que posso falar sobre isso” confessou e eu me levantei de minha mesa e andei até a jovem. Sem muita formalidade, pois sabia que isso era o que os assustavam, acariciei seus cabelos loiros e ela se inclinou em direção ao meu toque. “Sinta-se livre para falar o que quiser Lena, estou aqui para conversar com você e ajudar das formas que estiverem ao meu alcance”. Ela concordou fechando os olhos enquanto acariciava seus cabelos “Até sobre cigarro?” sorri “Até sobre isso”.

Foi dessa maneira que consegui alcançar Helena, ela mesma havia se aberto para que eu pudesse estar presente e a ajudasse. A menina tinha quinze anos, mas transbordava uma áurea infantil e solta, enquanto conversava de forma madura e coesa quando estávamos a sós. Lena tinha uma adaptabilidade notável e sabia como se portar em cada situação específica. Fosse numa excursão, nas reuniões ou no refeitório comendo, mas não deixava de me impressionar com a forma carinhosa e leve que ela se portava naqueles dez ou vinte minutos após as reuniões em que conversávamos tranquilamente sobre todo tipo de coisa.

Não poderia evitar a ligação que estava sendo formada entre nós. Aos cinquenta e um de idade, você começa a perceber certas características da sua personalidade que eram, anteriormente, suprimidas. Uma dessas percepções foi o quanto havia mantido relações apáticas com os adolescentes que aconselhava, já que, se comparados a relação que desenvolvera com Lena, pareciam superficiais e forçadas. No entanto a própria garota transformara a nossa interação em algo diferenciado e, dia após dia, vi aquela pequena e intrigante garota passar de “Caso Diferenciado” a uma relação recíproca de carinho, atenção e respeito.

Também me intrigava a forma como ela conseguia me contagiar com seus desejos ardentes, todos eles ligados a ser livre, viajar pelo mundo e superar seus traumas — que inicialmente eu não havia detectado, mas eram, basicamente, o medo de nunca ter alguém para quem correr quando as coisas dessem errado. Lena também ansiava em se tornar maior, fisicamente e em idade. Quando perguntei o porquê ela me respondeu com bochechas coradas “Para poder me casar com a senhora”. Achei graça, o que não deveria ter acontecido de maneira alguma, pois era antiético que fizesse, de alguma maneira, com que as crianças nutrissem sentimentos românticos em relação a mim.

Mas algo na forma como ela falava e se movia inocente e madura, doce e com essa selvageria interna, deixaram-me lisonjeada com suas palavras e, quando, uma semana depois, ela pediu para que pudesse passar o dia das mães comigo, deveria ter negado, porém preenchi o protocolo necessário e a levei para minha casa. Não sentia pena da garota, pelo contrário: admirava como ela não se culpava e nem a ninguém pelos constantes abandonos que sofrera. Lembro de como ela se arrumou rapidamente e saltitou dos dormitórios até meu carro cantarolando uma musica que não consegui entender. No carro ela cantarolou, mas ficou o caminho todo colocando a cabeça para o lado de fora, observado a paisagem.

Não a empatei até porque imaginava como era difícil ficar confinada em um orfanato por tanto tempo. Ao chegarmos ao meu apartamento, que ficava no térreo de um pequeno prédio de tijolos, ofereci uma manta para que ela se enrolasse e pedi que ficasse a vontade enquanto trazia a comida. Comemos e conversamos banalidades até ela me perguntar “Dra. Harringston porque não tem mais ninguém aqui?” e sorri fracamente antes de responder “Sou divorciada, então não tinha com quem passar o feriado”. “E a senhora não tem filhos?” perguntou com seus grandes olhos azuis piscando. “Não posso ter filhos” confessei e sua cabeça pendeu para o lado enquanto seu lábio inferior se projetava ligeiramente para fora, formando um beicinho triste. “Coitadinha... Posso te dar um abraço?” pediu e eu concordei.

Lena deu a volta na pequena mesa e não só passou os braços a minha volta, mas sentou-se em meu colo e afundou sua cabeça em meu pescoço, inalando auditivamente. Primeiro viera o choque, porém me via incapaz de resistir à doçura da garota. Todos nós temos desejos. Envolvi meus braços ao seu redor, acariciei suas costas e plantei um beijo terno no topo de sua cabeça. Seus dedos se desenroscaram do meu pescoço e deslizaram pelo meu braço fazendo com que todo a minha pele se arrepiasse com seu toque. Então, aconteceu algo que não havia imaginado de forma consciente, mas que meu corpo respondeu imediatamente: como o fogo cresce em contato com a gasolina.

A garota apertou seus pequenos lábios contra os meus e não fiz nada, senão responder. Eu era uma mulher de meia idade, profissional e responsável pela integridade física e moral daquela jovem, porém estava entregue ao seu toque gentil. “Obrigada por tudo doutora”, “Kate, me chame de Kate, Lena” disse e ela jogou seus cabelos para trás e sorriu. “Pode me fazer um chá então, Kate?” perguntou e concordei. “Claro” respondi e encostei nossos lábios uma ultima vez, antes de ir até a cozinha.

Quando voltei com as xícaras percebi o frio no apartamento e me deparei com a janela aberta, cortinas voando. Sobre a mesa, ao lado dos pratos vazios de comida, estava um pequeno papel de carta que dizia:

“Uma nova história começa e eu posso seguir a partir daqui.
Eu vou achar minha própria bravura.

Com amor, Lena Steele.”

Sorri, pois sabia o porquê ela havia tido cinco famílias, Lena simplesmente se conectava e ia embora. Não sabia como ficar. Era seu desejo mais profundo.

Ser livre.


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Notas finais do capítulo

E então? Gostaram? Peço que deixem suas opiniões nos comentários e que marquem a história como "Lida até o final" nos acompanhamentos, apenas pra eu ter noção de quantas pessoas realmente leram. Gostei muito de escrever essa One, realmente foi um desafio para mim, ainda mais pela quantidade de palavras. Obrigada pela atenção e volte sempre!