Vida de Negro escrita por Hunter Pri Rosen


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Só uma explicação: Daomé era como era chamada a região da África onde hoje fica o Benim.

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/646711/chapter/1

Minha história começa com a minha mãe, uma negra forte e bonita, fazendo uma grande viagem em um lotado e fedorento navio que partiu de Daomé rumo ao outro lado do mar.

Lembro que, certa vez, ela me disse que nessa época ainda não sabia que eu estava dentro dela. E que pensou que os enjoos e vômitos fossem frutos do balançar constante e incômodo do tumbeiro.

Tumbeiro. Esta foi a primeira palavra em português que minha mãe aprendeu, embora, a princípio, ela não tivesse entendido muito bem o seu significado.

Ela ouviu um dos homens brancos do navio resmungar esta palavra várias vezes enquanto, com a ajuda de outros como ele, recolhia membros da nossa antiga comunidade e desapareceria com eles rumo ao convés.

Por ter visto aqueles homens, mulheres e até algumas crianças convalescendo na noite anterior, minha mãe chegou a pensar que padecia do mesmo mal. Que estava doente como eles. Que iria morrer como eles. Que havia algum tipo de doença assolando todos ali, no porão do tumbeiro.

Mas minha mãe não estava doente. Era apenas eu. Crescendo em seu ventre africano. Mais tarde, ela descobriu isso.

E ela nunca me disse, mas eu sei que se soubesse o que iria encontrar do outro lado do mar, minha mãe teria preferido sucumbir à doença, do que sucumbir ao homem branco, à verdadeira praga, à escravidão.

Todavia, minha mãe era uma mulher forte. Apesar dos poucos e insossos grãos que eram lançados no chão do tumbeiro pelos homens brancos, e da escassa água que era servida de qualquer jeito duas vezes ao dia — às vezes, menos do que isso —, minha mãe conseguiu sobreviver à penosa viagem.

Semanas depois, quando desembarcou em um porto, de um lugar que horas mais tarde ela descobriu se chamar Colônia do Brasil do Reino de Portugal, minha mãe recebeu um novo nome: Maria. E teve que esquecer o seu antigo nome, sem qualquer possibilidade de retrucar a respeito disso. Ela não tinha mais este direito. Na verdade, ela não tinha mais nenhum.

E todos os que, assim como ela, sobreviveram à viagem até aqui perderam os seus direitos e tiveram que esquecer suas identidades também. Inclusive o meu avô.

Minha mãe não falava muito sobre ele. Apenas que os dois foram separados ainda no porto, assim que ela foi comprada por um senhor da Capitania de Pernambuco, chamado Pedro Gomes. O mesmo homem que se recusou a comprar o meu avô, por considerá-lo muito velho para os serviços braçais no engenho de açúcar em sua fazenda.

Meu pai teve mais sorte — se é que pode-se chamar o que ele teve de sorte. Jovem, forte e saudável, ele foi comprado junto com a minha mãe e levado para o mesmo destino que ela. No entanto, ele não sobreviveu o suficiente para me ver nascer.

Meu pai e minha mãe tentaram fugir duas vezes da fazenda. Ela não falava muito sobre ele, muito menos sobre como as coisas aconteceram.

Mas, depois que eu cresci um pouco, e ouvi algumas histórias entre os escravos que já estavam na fazenda naquela época, desconfiei que o desfecho do meu pai e as marcas profundas que minha mãe possuía nas costas estavam ligados de alguma forma.

Não demorei muito tempo para imaginar o que havia acontecido. E só precisei ver um dos nossos sendo amarrado, açoitado e humilhado em um pelourinho, perto da senzala, para deduzir o que aconteceu com os meus pais. Os dois foram capturados e açoitados também.

Minha mãe, em algum momento, foi poupada. Não por estar esperando uma criança na época, mas, de certo, porque seria uma boa ama de leite para o filho do senhor do engenho que nasceria na mesma época que eu.

Já meu pai... Bem, ele não foi poupado. Ou melhor, até foi, em algum momento. Mas, de acordo com o que eu ouvi de um dos escravos da fazenda, os ferimentos profundos em sua carne somados ao sol escaldante no canavial, à dura jornada de trabalho no engenho de açúcar, à imundice da senzala e à fome quase constante que o assolava não ajudaram nem um pouco em sua recuperação.

Quando eu cresci mais um pouco, fiquei sabendo que ele se foi uma semana depois de ser açoitado como um animal. E que delirou por horas, antes de dar o seu último suspiro no chão batido da senzala, com a cabeça no colo de minha mãe e enquanto acariciava sua barriga. Foi o único contato que tivemos.

Meses depois, eu nasci. Na senzala, durante uma madrugada fria e com a ajuda de duas negras como minha mãe.

Ela não pôde gritar, para não incomodar o senhor de engenho, sua esposa e o seu filho recém nascido. E no dia seguinte, minha mãe teve que retomar o trabalho na cozinha da casa grande, enquanto a sua dona ainda estava de resguardo.

Minha mãe, meu pai e meu avô também eram escravos do outro lado do mar. Mas ela dizia que lá não era como aqui. Que aqui era pior. Muito pior.

Eu gostaria de saber como era ser escravo lá. Mas nunca soube e tive que me contentar com este lado de cá do mar.

Mas tive que concordar com a minha mãe de qualquer jeito, pois nada poderia ser pior do que a forma desumana e cruel com que éramos tratados ali. Não poderia haver algo pior do que aquilo. Ela estava certa, afinal.

Como não estaria, se eu me lembro muito bem das noites na senzala, onde dormíamos acorrentados?

Por falar nisso, lembro dos trapos que não nos protegiam do frio noturno, da fome que sentíamos e de roedores correndo perto de nós e dos outros como nós. Lembro do cheiro forte e desagradável pairando no ar a nossa volta.

Lembro que fui batizado como João e instruído a crer em Jesus Cristo. Mas lembro também que à noite, na senzala, minha mãe me contava histórias bonitas da nossa verdadeira religião e eram nelas que eu acreditava de verdade.

Eu gostava de ouvir tais histórias, pois elas me faziam crer em um lugar melhor do que aquele. Em dias melhores do que os que vivíamos ali, na senzala imunda. Acorrentados. Amontoados. Impedidos de fugir. E impedidos de viver.

Lembro dos cantos que eu, minha mãe e os outros como nós entoávamos às escondidas. Lembro que tais ritos nos davam força para continuar sobrevivendo dia após dia, apesar de tudo a nossa volta nos dizer que estávamos condenados à dor e ao esquecimento.

Lembro da capoeira também e que eu era bom nisso. Lembro de relatos de fugas. E de açoites. Lembro dos capitães do mato e dos gritos dos meus irmãos de cor recém capturados. Lembro de não ter visto mais alguns deles.

Mas o que realmente me marcou foi quando minha mãe me disse que um dia especial se aproximava, que eu ficaria mais velho.

Todos os anos, ela me lembrava de tal dia, embora não tivesse certeza exata da data. Acho que ela se guiava pelo nascimento do filho do senhor do engenho e de sua esposa que ocorreu na mesma época do meu.

Seja como for, aquele ano parecia ser diferente. E de fato, foi. Havia uma tristeza no olhar de minha mãe que eu nunca tinha visto antes e logo eu entendi por que.

Apesar dela ter me abraçado e repetido inúmeras vezes que só o que importava era que eu estava ficando mais velho, que era para eu pensar nisso e apenas nisso, logo eu entendi que… Não era só isso. Não podia ser. Não na nossa existência.

Eu era filho de uma escrava. E portanto, era um escravo também. Já nasci escravo. Meu destino já estava selado bem antes do primeiro choro. Minha mãe só não queria dizer isso com todas as letras. Ela queria me poupar, voltar no tempo e me acolher em seus braços, como se eu fosse um bebê de novo. Mas ela não podia.

Todavia, ela não precisou me explicar por que aquele ano era diferente dos demais. Ela não precisou, pois eu era um menino inteligente e muito observador. Eu sabia que crianças não estavam livres do trabalho no engenho de açúcar. E que, geralmente, elas começavam aos oito anos. A idade que completei naquela época.

No começo, eu não achei a lida tão ruim. Eu tinha que ajudar no cozimento do melaço, colocando-o em várias formas antes delas irem para dentro da fornalha. Depois, eu e outros escravos, adultos ou crianças como eu, levávamos o melaço para a casa de purgar, onde ele ficava por vários dias. E por fim, passei a ajudar também na separação dos tipos de açúcar, a esfarelá-lo e a embalá-lo em enormes sacos. Sempre com homens brancos de feições assustadoras por perto.

Era bem cansativo, é verdade. Meus braços doíam bastante durante o dia e, principalmente, à noite. O calor dentro do engenho de açúcar era, muitas vezes, insuportável, fazendo-me suar bastante. E a fome parecia maior devido a longa jornada ali. Mas, pelo menos, o lugar ficava mais perto da casa grande e, sempre que eu conseguia despistar os homens brancos, corria para a cozinha onde minha mãe trabalhava com mais três escravas. E estar com ela por alguns momentos me dava certo ânimo.

Muitas vezes, eu ia até lá atraído pelo aroma delicioso de pães e bolos que ela e as outras assavam. A fome era tanta que minha mãe sempre dava um jeito de pegar um pedaço para mim às escondidas.

Porém, certa vez, fomos pegos em flagrante pela mulher do senhor de engenho, nossa dona também, a senhora Margarida Gomes. Ela era uma mulher robusta e de feições endurecidas, não muito mais velha do que a minha mãe, mas longe de ser dócil como Maria era.

Na ocasião, pensei que devolver o pedaço de pão seria suficiente para a nossa dona esquecer o assunto. Mas me enganei completamente, pois quase no mesmo instante, ela ordenou que alguém trouxesse um anjinho.

Lembro de ter visto algo estranho no olhar de minha mãe quando ouvimos esta palavra. Algo que deduzi ser um pânico crescente e profundo. Em outras palavras, ela estava com muito medo. Dava para ver.

E lembro de ter ficado confuso também, sem saber o que exatamente era o tal anjinho.

Mas, naquele momento, enquanto eu observava a expressão assustada de minha mãe, eu tive certeza de duas coisas. Um, ela já o tinha visto antes. Dois, não devia ser um anjinho como aqueles que enfeitavam a fachada da capela da fazenda. E não era mesmo.

Logo um capataz entrou na cozinha trazendo um estranho objeto de ferro. Era relativamente pequeno, parecido com um anel, mas isso não parecia diminuir o seu poder de causar medo em minha mãe, já que ela arregalou os olhos e pude vê-la estremecer por um instante.

E isso me deixou com medo também. Mas ao mesmo tempo, fez algo se agitar dentro de mim e ganhar força. Um impulso, um instinto de defendê-la de alguma forma. Da melhor forma que eu pudesse. Da única forma que eu podia fazê-lo.

Então, deixando-me levar por este impulso dentro de mim e engolindo um nó que se formou em minha garganta, dei alguns passos trôpegos e me posicionei entre a minha mãe e a nossa dona.

A mulher que já havia tomado o tal anjinho das mãos do capataz se aproximou de mim prontamente e, sem hesitar, pegou a minha mão direita, segurando-a com uma força desnecessária.

E naquele momento, eu entendi que eu era o seu objetivo desde o começo, afinal era eu que estava com o pedaço de pão quando ela chegou na cozinha. Não era a minha mãe que o segurava.

Por outro lado, talvez a senhora Gomes soubesse sim que havia sido a minha mãe que pegou o alimento, mas não se importava em me castigar por isso. Ou talvez essa fosse a sua intenção desde o princípio. Castigar-me para atingir a minha mãe.

Haveria castigo pior do que este? Ver o seu filho ser torturado por um anjinho só porque estava com fome?

A atitude que minha mãe tomou em seguida fez-me acreditar que sim. Ela não iria mesmo suportar aquele castigo. Com certeza, preferiu ser castigada em meu lugar.

Sei disso porque minha mãe levantou-se imediatamente da cadeira onde estava sentada, me escondeu atrás de si e sibilou um tímido não, antes de abaixar a cabeça e estender a mão direita e trêmula para a nossa senhora.

Lembro-me de ter escondido o rosto em seus trapos encardidos e fechado os olhos com força, enquanto o corpo de minha mãe ficava tenso. Lembro-me que pensei em correr quando ela começou a gritar, mas que desisti no mesmo instante, pois não queria deixá-la sozinha.

Então, eu tentei pensar em outra coisa para não ouvir os seus gritos. Não funcionou muito bem, mas acabei lembrando de algo curioso e que só naquele momento começou a fazer sentido.

Isso porque eu lembrei que em certas noites, quando ela voltava para a senzala, trazia escondido algum pedaço de pão, bolo, rapadura ou uma fruta para mim.

Geralmente, era em dias que os restos de comida, que nos eram servidos de forma precária pela senzala, não eram suficientes para saciar a minha fome. Então, a minha mãe pegava algo da casa grande, trazia para mim e eu sempre lhe lançava um sorriso de agradecimento e felicidade por isso. Sem nem imaginar que, muitas vezes, ela pagou caro pela minha fome.

Sei disso porque acabei atentando-me a um detalhe que até então tinha passado despercebido: no dia seguinte aos pequenos mimos, ou poucos dias depois, minha mãe voltava para a senzala com os dedos das mãos vermelhos e um tanto inchados. Com um olhar assustado e sofrido. Completamente muda e visivelmente humilhada.

Naquele momento eu entendi por que. Minha mãe havia sido descoberta outras vezes. Alguém tinha visto-a roubando nas noites anteriores ou deduzia isso de alguma forma.

De um jeito ou de outro, a nossa senhora sempre acabava descobrindo e minha mãe sempre sofria as consequências por seus atos em nome do filho. Eu.

Quando a tortura finalmente terminou e minha mãe parou de gritar, abracei o seu corpo trêmulo, engoli a vontade de chorar e prometi para mim mesmo que nunca mais sentiria fome. Ou pelo menos que não deixaria ela perceber quando eu estivesse. Assim ela nunca mais precisaria passar por isso.

Consegui fingir durante algum tempo e não fui mais até a cozinha visitá-la, com medo de que ela teimasse em me dar algo que não era nosso para comer e isso irritasse a nossa dona novamente.

No entanto, o trabalho no engenho de açúcar ficava mais puxado dia após dia, a comida dada pelos capatazes não era o bastante para preencher o vazio em minha barriga e eu me sentia cada vez mais indisposto e fraco. Faminto. Como todos os outros escravos que eram explorados na fazenda.

Para piorar, passei a ajudar em outras funções também, como no processo de moagem que era mais pesado do que minhas primeiras atribuições e exigia mais força física, pois eu tinha que carregar a cana-de-açúcar até a moenda e fazia movimentos repetitivos o dia inteiro.

Com isso, meus braços e mãos nunca doeram tanto. Minhas pernas também, já que eu ficava em pé horas a fio. Às vezes, parado e, às vezes, andando de um lado para o outro. Meu corpo franzino estava definhando dia após dia.

Em outras palavras, eu não estava dando conta da vida de escravo. Da vida de negro. Porém, eu sabia que a menos que eu morresse jovem como o meu pai, ela estava só começando.

Não demorou muito para que minha mãe voltasse a roubar alguns alimentos da casa grande. Em sua maioria, eram sobras do almoço ou do jantar. Às vezes, pão amanhecido que iria para o lixo. Mas para mim, qualquer coisa que ela trouxesse era um verdadeiro banquete.

Para ela também, pois eu passei a exigir que dividisse qualquer coisa, por menor que fosse, comigo. Não parecia justo que minha mãe se arriscasse tanto e o seu estômago continuasse roncando durante a noite.

Durante toda a minha infância escrava, que não era uma infância de verdade, vi os dedos de minha mãe ficarem vermelhos e inchados incontáveis vezes.

Vi algo pior do que isso também. Certa vez, ela voltou para a senzala usando uma coisa estranha presa ao rosto. Um tipo de máscara que tampava a sua boca por completo.

Minha mãe passou dias com aquela monstruosidade em sua face e depois disso foi dispensada dos serviços domésticos e realocada na fazenda, passando a trabalhar na aragem das terras e no plantio da cana-de-açúcar pelos anos que se seguiram.

E então, sem que ela me pedisse isso, nós invertemos os papeis. Minha mãe estava envelhecendo, mas eu, apesar do duro trabalho na fazenda, fiquei mais ágil e rápido com o tempo.

Sendo assim, passei a dar um jeito de entrar na cozinha quando não havia ninguém por perto e pegava a primeira coisa que meus olhos encontravam. Um pedaço de queijo. Um pouco de rapadura. Grãos.

Às vezes, eu dava mais sorte. Quando havia algo sendo cozinhado no fogão à lenha ou alguma coisa já pronta sobre a mesa, eu sempre voltava com algo mais interessante para a senzala. E eu e minha mãe comíamos às pressas, com medo de que algum capataz nos visse.

Eu não era o único a pegar comida da casa grande. Outros escravos se arriscavam também. E com isso, os flagrantes e castigos se tornaram cada vez mais frequentes.

Foi devido a um flagrante assim que eu fui açoitado pela primeira vez. Eu tinha por volta de dezesseis anos na época e lembro que minha mãe precisou ser acorrentada na senzala em dado momento, pois ela não parava de gritar enquanto me via sendo machucado daquela forma, sem poder fazer nada para impedir.

Mesmo assim ela tentou me alcançar, mas antes que se colocasse entre mim e o açoite foi rendida por um dos capatazes e levada para a senzala.

Naquela noite, minha mãe cuidou das feridas nas minhas costas como pôde, limpando o sangue com um trapo velho e úmido. Lembro que eu tremi de dor e tentei conter as lágrimas para que ela não ficasse preocupada, mas não consegui e elas acabaram me vencendo. Mesmo assim, chorei em silêncio, tentando não pensar na dor lacerante em minhas costas e naquela ainda maior dentro de mim.

Perdi as contas de quantas vezes passei por isso e de quantas vezes vi os meus irmãos de cor na mesma situação ao longo dos anos, acorrentados no pelourinho e sendo açoitados brutalmente, como se fossem animais.

Não que os animais da fazenda fossem tratados desta forma, mas era assim que eu e os demais escravos nos sentíamos, como se não fôssemos humanos. Coagidos e humilhados. Feridos, não somente em nossos corpos endurecidos pelo trabalho puxado de todos os dias, mas também em nossas almas. Mesmo que houvesse aqueles que diziam que negros não tinham alma.

Havia outros tipos de tortura também, mas o açoite parecia ser o favorito dos capatazes. E qualquer falha de conduta era motivo para você ser o castigado da vez e provar o gosto amargo da humilhação. Pequenos furtos de alimentos, pedidos de água durante o trabalho no canavial, desmaios devido ao sol escaldante sobre nós, tentativas de fuga.

Esta última situação tornou-se cada vez mais recorrente. Os escravos preferiam correr o risco de serem capturados e castigados por tentarem fugir, do que permanecerem no canavial e no engenho de açúcar, sendo explorados e humilhados dia após dia.

Não foi diferente comigo e minha mãe. O desejo de fuga e de liberdade também habitava em nossos corações feridos. E um lampejo de esperança surgiu quando nós ouvimos a palavra quilombo pela primeira vez.

Lembro que no começo, nós pensamos que o tal lugar não existia de verdade, que fosse apenas uma lenda, uma forma de alguns escravos manterem a fé em dias melhores e em um lugar onde poderiam viver em comunidade e com certa liberdade, e não como bichos, açoitados durante o dia e enjaulados durante a noite.

Mas, quando alguns fujões — como eram chamados pelos capitães do mato — não foram encontrados nem trazidos de volta para a fazenda, a descrença deu lugar à esperança. E então, eu e minha mãe acreditamos na existência do quilombo. Mais do que isso, acreditamos que poderia haver um lugar para nós dois lá. Precisávamos acreditar.

Um lugar onde poderíamos ser livres? Onde minha mãe poderia voltar a usar o seu nome africano? Onde poderia me dar o nome que sempre quis? Onde não precisaríamos esconder nossas verdadeiras crenças? Como não acreditar em um lugar desses?

Então, assim que ela se recuperou das feridas em suas costas, causadas por uma sessão quase interminável de açoite, por ter sido descoberta roubando um pedaço de rapadura do engenho, nós fugimos. Durante o dia, depois de nos embrenharmos no meio do canavial até não sermos mais vistos pelos capatazes que estavam vigiando o trabalho de outros como nós e se distraíram por um instante.

Nesta época, eu tinha por volta de vinte e seis anos e minha mãe já passara dos cinquenta. Ela não era mais tão ágil, mas mesmo assim tentou acompanhar o meu ritmo enquanto corríamos rumo ao norte, como os escravos que partiram antes de nós fizeram.

Corremos por horas a fio, nos embrenhamos no meio da mata e deixamos a fazenda para trás. Passamos dias perdidos, sem saber mais para onde seguir, já que não sabíamos exatamente a localização do quilombo. Bebemos água lamacenta de um riacho quase seco e comemos folhas, frutos e pequenos insetos que nem sequer sabíamos os nomes ou se eram venenosos.

Em dado momento, voltamos a duvidar da existência do quilombo e perdemos a fé por algum tempo. O medo de sermos encontrados e levados de volta para a fazenda nos assombrava constantemente e não permitia que dormíssemos à noite. Tiramos apenas breves cochilos, sempre enquanto o outro ficava em alerta.

Até que um dia, enquanto caminhávamos com passos trôpegos por uma clareira, famintos e sedentos, vivos sem saber como isso era possível, avistamos algo por entre as árvores ao longe.

Eram precárias moradias com folhas de carnaúba sobre os telhados. Homens e mulheres de diversas idades e também algumas crianças entravam e saíam delas o tempo todo, andavam ao seu redor, trabalhavam em uma pequena lavoura mais adiante.

Lembro-me de olhar para minha mãe e vê-la sorrir. E lembro que fiquei paralisado por um momento, pois tinha muito tempo que eu não via os seus dentes daquela forma.

Mesmo quando entoávamos canções de nossa gente na senzala, era muito raro ver sorrisos em seu rosto. E eu não me lembrava de ter sorrido alguma vez antes daquele dia. Acho que foi a primeira vez que mostrei os meus dentes para o mundo.

Fomos recebidos no quilombo e aceitos na comunidade. Não era o paraíso como muitos acreditavam, tínhamos que trabalhar também e não deixamos de ser escravos, mas não era como na fazenda do senhor de engenho. Ali nós tínhamos um papel, mas também tínhamos direitos. Não passávamos fome nem éramos humilhados. Tínhamos alma.

Certa vez, minha mãe me disse que o quilombo era parecido com a sua antiga comunidade em Daomé. Foi uma das últimas conversas que tive com ela.

Pouco tempo depois, em uma tarde ensolarada, enquanto eu espreitava um animal na mata, a fim de abatê-lo e alimentar a comunidade, virei a caça de um verdadeiro predador.

Um capitão do mato me encontrou, me capturou e me levou de volta ao inferno. Não sem antes me amarrar em uma árvore e me açoitar por algum tempo, para que eu lhe dissesse a localização do quilombo onde estava escondido.

Por sorte, eu tinha me afastado muito de lá e seria difícil para ele encontrar o local sem a minha ajuda. E eu não o ajudei.

Mesmo assim, eu sabia que o quilombo estava ameaçado e esperava que, ao notar a minha ausência, o seu líder levasse todos os membros da comunidade mais para o norte. Incluindo minha mãe.

Nunca soube se ele fez isso.

Fui levado de volta para a fazenda, e passei a ser açoitado, torturado e humilhado, mas mantive a minha boca fechada.

Eu sabia que nunca mais veria a minha mãe, mas ela estar a salvo era a única coisa que importava para mim.

Eu também sabia que o líder do quilombo não iria permitir que ela viesse a minha procura. Eram as regras. Quem ficasse para trás, ficava para trás. A sobrevivência e a segurança da comunidade eram as prioridades. E eu esperava que minha mãe respeitasse isso.

Para suportar a dor do açoite, fechei meus olhos e lembrei do sorriso que vi nos lábios dela quando encontramos o quilombo. Agarrei-me a esta lembrança e sorri, embora houvesse lágrimas de dor em meus olhos.

Morri dias depois, devido aos ferimentos que não cicatrizaram. Delirei um pouco e vi minha mãe ali na senzala. Comigo.

Lembro que ela colocou minha cabeça em seu colo, como fazia quando eu era criança, e acariciou meu rosto suado com suas mãos calejadas. Seus lábios tocaram minha testa por um instante.

E então a minha história terminou. O que não significa que ela não tenha se repetido em outros lugares, com outros negros escravos como eu.

Eu sei que ela se repetiu. Mas só espero que não se repita mais.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

A máscara de flandres (que foi citada indiretamente) e o anjinho eram instrumentos de tortura, bem como o açoite.

Não sei muito o que dizer desta fic, apenas que ela mexeu bastante comigo e que, apesar de triste, gostei muito de retratar esta parte da nossa história.

Ah! E claro, foi muito legal participar de mais um desafio do Nyah!

Fontes de pesquisa:
http://www.historiazine.com/2010/05/africa-antes-dos-europeus.html
http://civilizacoesafricanas.blogspot.com.br/2010/05/participacao-africana-no-trafico-de.html?m=1
http://mundoestranho.abril.com.br/materia/como-era-um-navio-negreiro-da-epoca-da-escravidao
http://www.suapesquisa.com/historiadobrasil/trabalho_escravos.htm
http://www.alunosonline.com.br/historia-do-brasil/funcionamento-engenho-acucar-colonial.html
http://entretantashistorias.blogspot.com.br/2014/09/os-instrumentos-de-tortura-utilizados.html
http://www.brasilescola.com/historiab/engenho-acucar.htm
http://juhhistoriadora.blogspot.com.br/2011/06/os-escravos-e-os-quilombos-no-brasil.html

Obrigada a todos que leram e querendo comentar, fiquem à vontade.

Beijos de luz!