Hellishness escrita por hellishness


Capítulo 2
Chapter I — Fluorescent Adolescent


Notas iniciais do capítulo

Apresento-lhes Magdalena Hillsborough, sua estimada protagonista. Ela é um amor. Quer dizer, quase.



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O relógio marcava 1:20 da manhã quando Magdalena finalmente fechou o zíper de sua última mala, lotada até a boca com pincéis, canetas, e materiais de desenhos “indispensáveis” para sua formação. Devia ter acabado aquilo dias antes, quando o pai despachara os documentos de admissão para Londres, junto de alguns objetos pessoais que tinham o objetivo de tornar a estadia na Weston Academy a menos dolorosa possível. A verdade era que a garota evitara pensar na mudança pelo máximo de tempo que pôde, procrastinando suas responsabilidades até não aguentar mais. Realmente não queria voltar.

O quarto onde passara seus últimos três anos encontrava-se vazio agora, toda sua vida guardada dentro de caixas de papelão como mercadorias descartáveis. Era hora de mudar, de novo. Lena deixou um suspiro escapar por seus lábios enquanto puxava a bagagem para perto da porta, onde seria mais fácil para a governanta pegar de manhã. Ela observou seu reflexo na parede de espelhos ao lado do antigo guarda-roupa, insatisfeita com o que via. Os olhos azuis perderam o brilho, o corpo esguio, elegante, estava curvado de exaustão, os cabelos castanho-escuros na altura dos ombros escapavam do coque, tão bagunçados quanto seu estado de espírito. Estava um caco.

Com um bater de palmas as luzes no recinto se apagaram, e a garota se jogou na cama como um peso morto, de repente esgotada demais para qualquer coisa. Muriel, uma gata branca filhote, pulou de susto e fincou as unhas no braço da dona em sua aterrissagem. Nem isso foi capaz de arrancar uma reação de Lena.

O que a maioria das pessoas eram incapazes de compreender – o pai, o terapeuta, a madrasta, os funcionários gentis da casa – era o verdadeiro problema daquela transferência. A herdeira Hillsborough estudara na Academia até seus 12 anos, e nunca fora feliz lá. Não eram apenas os típicos bullies, dramas e conflitos, nem mesmo os professores irritadiços. Todo aquele lugar possuía uma atmosfera tóxica, como uma câmara de gás nazista. Tudo bem, a comparação pode parecer meio exagerada, mas, naquela época, era o que parecia. Nenhum adulto parecia confortável em trabalhar ali, muito menos sorria, como se compartilhassem de um segredo obscuro cujo fardo era pesado demais para carregarem sozinhos.

— Ah, Muriel... O que será de mim sem você? — Apertou a gata com força, sem se preocupar em machucá-la, pois sabia que ela aguentava o tranco. O animal miou baixinho, quase um lamento, humano demais.

Levou a mão até a bolsa estilo carteiro atirada no chão, onde guardara os itens essenciais para a viagem de jato até a capital inglesa. Segurou o maço de cigarros entre os dedos, ponderando se devia ou não fumar um para acalmar os nervos. Optou por guardá-los, mordendo o lábio inferior com força suficiente para fazê-lo sangrar. Nada podia tê-la preparado para a difícil luta contra o vício, principalmente em uma situação estressante.

Mesmo contra sua vontade, ponderava se aquilo estaria acontecendo caso não tivesse sido detida pela polícia no mês anterior. Ainda conseguia se lembrar da expressão de desgosto do pai, o bom e velho discurso da decepção enquanto pagava a fiança para tirá-la da cadeia. Graças a seus contatos, evitara que a filha fosse enviada ao reformatório, porém tinha ficado furioso. Ela, no entanto, não entendia qual era o grande problema de grafitar a parede de seu colegial. Era branca e chata, tudo que fizera fora torná-la atraente com imagens de alienígenas abduzindo a professora babaca de Economia e o jargão das feminazis da turma: “O feminismo nunca matou ninguém, o machismo mata todos os dias”. A cara do diretor tarado foi impagável.

De qualquer jeito, não havia mais volta.

O que passou, passou.

Alinhada em Muriel, Magdalena adormeceu, um sono cheio de sonhos e inquieto. Em sua mente o rosto de Eli piscava entre cenas nostálgicas do tempo que passaram juntos na Weston.

Sonhou com as tardes brincando nos corredores, o dia em que destruíram o laboratório de informática com ovos podres roubados, as conversas profundas demais para duas crianças de 12 anos, tarde da noite. “Você não devia ser uma menina, é legal demais e odeia rosa”, ele dizia, e ela apenas ria. Eram felizes, verdadeiramente felizes.

Estúpida, fraca. Buscando esperança inexistente e agarrando-se a lembranças infantis que para nada serviam.

Mesmo com aquela amizade, sair de lá fora a melhor coisa que já fizera. Tivera a chance de amadurecer longe daquele inferno, e tornara-se uma jovem muito diferente do que a garotinha energética e reclamona de antigamente. Experimentou tudo o que não poderia na Academia, bebidas, sexo, e até mesmo algumas drogas. Foi uma experiência adolescente quase completa.

E agora, prestes a retornar, imaginava se o amigo continuava lá. Ainda não havia decidido se preferia que sim ou que não.

Será que ele me reconhecerá depois de tanto tempo?

Será que eu quero que ele me reconheça?

[. . .]

Na manhã seguinte, ou melhor, quatro horas depois que caiu no sono, foi acordada pela governanta, Evangeline, berrando em seu ouvido e escancarando as janelas, deixando a luz da manhã entrar. Enquanto a mulher disparava pelo quarto, puxando as malas com certa dificuldade para o corredor, onde outro empregado da mansão as levaria para o carro, Lena sofria tentando se levantar, trôpega de sono, e vestir as roupas separadas para a viagem de avião. Foi aos tropeços até a cômoda, e tratou de despir-se, sem vergonha alguma na cara.

Plateia nunca foi um problema, orgulhava-se de sua imagem nua.

— Leninha, vai usar isso aí? Pelo amor de Deus, cubra os peitos, minha filha. São pequenos, mas mesmo assim aparecem, e é feio viu?

— Que merda, Eva! Isso é um sutiã, onde estão seus óculos? — Magdalena vestiu a regata larga por cima da roupa íntima, mostrando a língua. Enfiou a calça jeans rasgada e os coturnos gastos, lerda feito um zumbi, prologando o máximo possível sua estadia na casa. Embora fosse orgulhosa para admitir, estava com medo de voltar para o internato. Suspirou, indo até a velha e dando-lhe um beijo estalado na testa — Você é um porre, sabia?

— Está atrasando o chefe, pentelha — Os olhos de Evangeline brilhavam com lágrimas que não podia deixar escapar. Despedir-se de sua protegida era tão difícil quanto vice-e-versa. Cuidara da moça desde seu nascimento, ocupando o local da mãe morta e dando o carinho esquecido pelo pai. A senhora balançou a cabeça, espantando toda emoção para bem longe, e começou a empurrar a patroa na direção da porta — Coitadas das pessoas que vão tentar te controlar, as pobrezinhas nem imaginam. Acabe com elas, sim?

Lena riu, o rosto marcado por um misto de tristeza e diversão, e abraçou a única figura materna que conhecera. Iam se ver novamente, sabia disso, mas não tornava a situação menos dolorosa. Vivendo sob o mesmo teto de um empresário ausente, ocupado demais fazendo dinheiro baseado na exploração dos outros, Eva foi a avó que nunca teve, e, provavelmente, quem mais admirava.

Após dar um último adeus para Muriel e seu quarto, a adolescente correu até a garagem, onde o motorista da família aguardava impaciente pela passageira nada pontual. O sedan discreto – blindado, claro – não demorou em sair, ziguezagueando pela estrada e levando os Hillsborough ao aeroporto de Bristol. Magdalena evitava os olhos do progenitor, ou “Demônio Keith” como gostava de chamá-lo, sentado no banco do lado, focando toda atenção na música que explodia pelos fones de ouvido.

Tinha muito para falar, mas, caso resolvesse retomar a discussão das últimas semanas sobre ir ou não à Londres, começaria uma briga impossível de vencer, sabia disso. O melhor era calar a boca e engolir a teimosia, pelo menos por enquanto.

O carro parou algum tempo depois em um estacionamento particular, o barulho dos freios quebrando aquele silêncio constrangedor. Pouco mais à frente, um jato com o logo da Conschet Co. – a empresa tecnológica da família, número um no mercado e, bem, origem de toda sua riqueza – aquecia os motores, e os técnicos arrumavam e verificavam os últimos detalhes antes da decolagem, correndo de um lado para outro.

— Vamos, levante-se Maggie — Keith deu as costas para a filha, o corpo curvado e os olhos cravados na tela do celular. Seus dedos pareciam máquinas digitando inumanamente depressa.

— Vá à merda — Ela respondeu, acendendo um cigarro assim que pôs os pés do lado de fora. Deu uma tragada profunda, soltando a fumaça bem na cara do homem. Os olhares enraivecidos dele já não faziam efeito algum.

Combater o vício não valia à pena, assim como tentar discutir com o empresário. Querendo ou não estava sendo descartada, um fardo sendo passado para outro infeliz cuidar. Não que isso importasse, claro.

Que seja.

Podiam trancá-la em um colégio no meio do nada, cercado por um bosque digno de filmes de terror, com pessoas piores que os monstros das histórias infantis, porém Lena sempre encontraria um modo de virar a situação a seu favor. Nem que para isso fosse necessário mexer um ou dois pauzinhos.

Como não se importava com os olhares sujos dos outros – como os que recebia naquele exato momento do motorista, checando sua bunda disfarçadamente –, muito menos com o que pensava a seu respeito, pouco se pode fazer para impedir que se divertisse. Sempre há alguma besteira para testar, boatos para começar, uma reputação para criar.

Lançou um sorriso irônico para o pai, depois de jogar a droga pela metade no chão e pisar em cima, apagando-a. Antes que ele conseguisse gritar alguma coisa, ou começar um novo sermão, colocou os fones novamente, aumentou o volume e caminhou calmamente até a entrada de passageiros. Recusava-se a dar satisfações para aquele monstro. Suas costas estavam eretas, o queixo erguido e os ombros relaxados, como se não estivesse uma hora atrasada para o voo, e dois dias atrasada para o início do ano letivo.

Era a rainha de seu próprio universo.

Selecionou “Anthem of Angry Women” no celular, a playlist da semana, combinando com seu estado de espírito. Keith tentou novamente repreendê-la aos gritos, e Lena conseguiu ver alguns pilotos sussurrando, observando a dupla discutir. Deviam estar fazendo uma aposta ou algo do gênero. Ela riu.

Bitch better have my money — Cantou, ao invés de responder às broncas. Entrou no avião sem olhar para trás e jogou-se em sua poltrona costumeira, no fundo, onde ninguém ousava incomodá-la.

Viu o piloto mais jovem, um loirinho maravilhoso, dar um high five com o colega negro engraçado com quem Magdalena já havia conversado antes. Seus companheiros passaram algumas notas de vinte dólares, cabisbaixos; perderam seu dinheiro pensando que Keith seria capaz de impor algum tipo de autoridade. Patético, pensou a jovem. Cruzou os braços e inclinou o assento, preparando-se para três horas de tédio. O loiro dirigiu-lhe um sorriso malicioso e uma piscadinha antes de entrar na cabine de comando, e ela revirou os olhos, contendo uma risadinha.

Quem sabe a viagem não fosse tão terrível assim? Talvez ele precisasse de alguma ajuda para achar o banheiro.

Como é mesmo aquele negócio dos condenados à pena de morte? Aproveitar as últimas horas ou alguma merda do gênero. Bom, vejamos a situação deste jeito, estou indo para a cadeira elétrica e aquele cara é minha última refeição.

Ligou sua série na pequena televisão presa ao teto, balançando a cabeça para afastar os pensamentos impuros.

Controle-se, Lena. Seje menas.


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Notas finais do capítulo

Por favor, comentem pra tia. O que acharam, o que precisa melhorar, o que esperam... Aceito qualquer coisa. Esse capítulo é bem introdutório, então acalmem-se. A treta está por vir.