Paradoxo - Figura de linguagem escrita por Glória San


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Dedicada com amor e carinho a Yasmin, não me bata, eu te adoro.



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Paradoxo do tempo-espaço

Se você morre, o que acontece a seguir?

Eric admirava profundamente a fé humana. Veja bem, existem coisas que são simplesmente fascinantes; a fé humana, algo tão irracional presente no animal mais inteligente, era, no mínimo, uma fabulosa antítese, e com certeza algo que se encaixava na categoria anteriormente citada. O Sistema Solar, junto com o planeta Terra, é algo que existe há bilhões de anos. Nos primórdios, não havia religião, o ser humano apenas vivia com a sensação de que havia alguma coisa superior. Depois, a religião foi inventada, principalmente porque eles não podiam explicar os fenômenos da natureza, a própria natureza. Eles simplesmente acreditavam em uma coisa que não podiam ver ou provar, era apenas esperança e fé (talvez a vontade de se reconfortar).

Hoje, no século XXXVI, existia explicação. A religião era algo que necessitava da mais pura forma de fé nos tempos atuais, algo que não existiu nem sequer no início da pré-história humana. Isso porque o mundo hoje era tecnologia, era ciência, eram explicações consistentes e concretas.

Eric certamente sentia falta dos tempos de ignorância da civilização. Não só ele, todos. Eles não saberiam de metade das coisas horríveis que estavam para acontecer se vivessem com os pensamentos daquela época. Obviamente que seria algo horrível por uma parte – uma grande parte -, mas preservaria suas faculdades mentais. As antigas crenças humanas não existiam mais, exceto por alguns religiosos que sobreviveram ao decorrer dos séculos, mas ninguém os levava a sério, infelizmente para eles.

O fim do mundo.

Não uma expressão tão usada para indicar que algo não estava indo como deveria (apesar de fazer muito sentido). O mundo estava realmente, realmente no fim.

A notícia foi confirmada por milhares de cientistas, não importando o quanto os estudiosos tentavam mudar o imutável. A Via Láctea iria colidir com Andrômeda, a galáxia mais próxima, em menos de cinco horas. Isso já era previsto, desde o século XXI, porém, para bilhões de anos mais a frente. Eles apenas não contavam que o Universo era imprevisível e que suas arrogâncias por acharem o contrário levaria tantas pessoas a um destino abominável.

A órbita das galáxias deixava claro para os pesquisadores que seus núcleos se colidiriam e que elas se fundiriam, formando a “Androláctea”. Nossa. Que irônico que Eric, uma pessoa considerada leiga soubesse disso. Isso porque, quando o planeta explodisse (não exatamente), milhares de anos de informações seriam perdidos. Pessoas leigas como Eric seriam verdadeiros gênios nos primeiros anos da nova civilização. Havia teorias de que antes da formação do planeta Terra, existia outra espécie de vida inteligente. E antes dessa espécie, outra. A próxima espécie de vida inteligente, assim como as teóricas espécies anteriores aos humanos, trabalharia duro, trilharia novamente um caminho amargo para o conhecimento e compreensão. Eles nunca saberão de nós.

Qual foi o sentido de tudo isso?

Será que havia alguém dormindo? Será que alguém passaria suas últimas – uma olhada no relógio – quatro horas e quarenta e sete minutos dormindo? Eric achava difícil, mas, com certeza havia essas pessoas, sempre há.

Eric desejava ser mais poético e menos adepto de filosofias baratas. Houve uma lenda, há muito por ele estudada, que fazia sentido demais para ser ignorada agora: Zeus, senhor dos céus, criou com a ajuda de um titã – aquele do qual Eric não lembra o nome –, a primeira raça inteligente. Eles tinham duas cabeças, um enorme tronco, quatro braços e quatro pernas. Era como se uma pessoa nascesse com um gêmeo siamês, porém mais organizado, gracioso e comum. Cada metade tinha sua própria consciência. Eles juntos não tinham defeitos, porque cada parte completava a outra. Zeus, vendo isso, estremeceu de medo... Ele temia que essa raça tão perfeita se rebelasse e destruísse o Olimpo. Em um impulso cruel, separou com raios os corpos. Alguns desta espécie eram metade (o que conhecemos hoje) homem e mulher, mulher e mulher, homem e homem. As metades, agora separadas, tinham a missão de vagar pela Terra, em busca de seu único e verdadeiro amor, sua alma gêmea.

Eric desejava ser mais poético, algo como poder expor de forma limpa seus sentimentos. Existia alguém que fazia seu coração bater tão rápido que parecia ser crédulo o órgão sair por sua boca. Os olhos castanhos carregavam sempre tanta sinceridade, tanto quanto era humanamente possível. Os cabelos escuros combinavam com os ditos olhos e faziam contraste com a pele da cor de leite. A voz era sempre firme, porém gentil. Eric amava Adam, com certeza; era difícil a ideia de que ele e a única pessoa com quem ele se importava, que amava, fossem morrer, dali a (outra olhada no relógio) quatro horas e quarenta minutos. A vida de ambos não era perfeita, nada o era. Entretanto, era a coisa mais segura e bonita que já conheceu, era quase como o conceito de arte do período Pseudo-igualitário, que cobria todo o século XXI. Se havia algo bonito naquela época enganadora, era isso.

Eric queria ter aproveitado sua curta existência, ter visto mais coisas, ter vivido mais. Não morrer sabendo que junto dele ia o mundo e sua âncora. Eric queria ter escrito milhares de sonetos, todos falando sobre as mãos de toque terno e o olhar suave que Adam tinha, como ele era adorável e compreensivo, como eles se amava. (Todos os preconceitos e violências sem fundamentos para o fato de um ser humano amar outro – mesmo que do mesmo sexo – sumira há milhares de anos, felizmente). Ele queria ter aproveitado cada chance.

Seus pais morreram seis anos atrás em um acidente com substâncias tóxicas no laboratório em que trabalhavam. Adam era um órfão que, pela quase inexistente meritocracia (algumas coisas não mudaram desde o século XXI, infelizmente), conquistou espaço na alta sociedade. Eles eram tudo o que o outro tinha.

Era mais ou menos duas e meia da madrugada, apenas três horas e alguns minutos para a grande explosão, e Eric passaria seus últimos momentos da melhor forma que poderia imaginar. Observando Adam dormir, como uma pessoa em paz, sem preocupações e medos. Era tranquilizante, saber que Adam não estava pensando pelo rumo que Eric estava...

– O que você está fazendo, Eric? – Adam perguntou, os olhos ainda fechados, a voz lúcida não parecia estar embargada por sono, como deveria, ou como Eric supunha.

– Nada... Apenas pensando. – contou, o menos sincero que pôde. Adam o olhou por longos momentos, sobrancelhas franzidas em preocupação quando questionou, inocentemente:

– Você está bem?

Eric sentiu uma pressão quase familiar em seu peito, como cordas firmes que o impediam de fazer movimentos livres, algo como um punho de chumbo sendo pressionado em seu tórax, coisa que o impedia de respirar. Era uma boa metáfora para um ataque de pânico, pensou com alegria amarga. Eric estava acostumado a ser, dos dois, o mais pé no chão, o porto seguro, as colunas e o sustento. Ele sempre era um grande pilar emocional. Apenas esqueceu-se de que Adam não era um peso morto em seu relacionamento. Ele também cuidava de Eric, sendo este uma das coisas mais importantes da vida do outro. Permitiu-se não mentir, dessa vez.

– Se eu estou bem com o fato de que a três horas você, eu, tudo o que conhecemos vai acabar? Ah, não, eu não estou nada bem. Sério, eu não queria que fosse assim. Eu acho isso tão injusto, que droga... – Adam o olhou quase com face em branco. Isso era incrível, fato inédito. – Por que você está tão calmo, Adam? – O jovem homem de olhos incrivelmente castanhos o encarou, com um suspiro de compaixão escapando por entre os lábios.

– Eu não posso fazer nada, assim como você ou qualquer um. Não seria justo comigo ou com você que eu gastasse minhas últimas horas pensando sobre o inevitável. Me preocupar não vai mudar nada lá fora. – a veracidade nas palavras melancólicas o atingiu em cheio, fazendo-o parar e pensar, por um instante, o que estava fazendo com seus últimos momentos.

– Eu odeio concordar que você tem razão dessa vez. – um riso sem graça foi ouvido. Obviamente era difícil fazer isso, fingir que estava tudo bem. – Você quer subir? – chamou, esperando uma confirmação que logo viria:

– Sim. – Adam respondeu simplesmente. – Eu quero subir.

O caminho até o telhado da casa onde moravam foi silencioso, com apenas o som de seus passos e de suas respirações forçosamente estáveis audíveis. Lá havia um pequeno jardim, coisa possível apenas porque as condições financeiras do órfão herdeiro Eric e do professor Adam – profissão essa que passou a ser muito valorizada quando educadores se tornaram escassos – eram realmente boas. Mas não era nada para se gabar. O mundo acabaria em duas horas e meia, não é como se fossem ser ricos depois disso. Não é como se o jardim de flores silvestres ou os sorrisos de Adam ao vê-las lentamente florescer depois do inverno fossem sobreviver à explosão da galáxia.

O jardim estava, naquele dia, como estava há seis anos, quando os pais de Eric morreram, antes mesmo de os cientistas saberem que a previsão do século XXI, a de que “Androláctea” viria a existir em bilhões de anos, estava errada. Eles deitaram, muito naturalmente, porque o costume os fazia fazer coisas em sincronia e harmonia de forma muda, sem falar um com o outro, ao som dos vizinhos festejando. Eric não poderia fingir que a escolha deles de como passar suas últimas horas lhe agradava, porém, percebeu que não poderia julgá-los; eram suas vidas, afinal. Eles estavam em um silêncio confortável e sociável, como era comum entre eles. Passaram-se meia hora e Eric não mais cronometrava o tempo. Ele olhou o rosto tão em paz da alma gentil que era Adam.

– Se você pudesse voltar para o século XXI... o que mudaria? – indagou displicentemente.

– Não muita coisa, eu acho. Quer dizer... eles tinham a faca e o queijo na mão para impedir o que aconteceria milhares de anos mais tarde. Acho que eu daria a eles a maior quantidade de informações que eu pudesse. E eles nunca teriam feito o que fizeram com o planeta. – Eric suspirou uma risada. Era bem comum de Adam falar algo assim em uma hora como essas.

– Às vezes, eu sinto raiva deles e da besteira que eles fizeram. Sério.

– Eles apenas não sabiam, eu acho. – comentou Adam, sem mudar seu tom de voz tão compreensivo.

Depois disso, o som de nada, mas de poucas naves-arraia sobrevoando o céu e da alta música ouvida pelos vizinhos eram ouvidos, como se fossem apenas ecos disformes, porque era tudo mais baixo que suas respirações.

Faltava uma hora e meia, agora.

Será que deveria ter escrito algo sobre Adam e as flores silvestres quando estavam com grandes expectativas de vida? Sorriu amargamente, porque era muito irônico um negócio desses. De acordo com algumas religiões – o hinduísmo, por exemplo – você não realmente morreria, porque seu espírito é eterno. Você reencarnaria, purificado e sem lembranças, mas com algo que o ligasse a sua vida passada. Cada marca de nascença era uma pequena lembrança, um sinal. É possível que, em alguma galáxia distante, uma que agora tenha vida, Eric venha a nascer com o nome de Adam em seu pulso? Provavelmente não, mas o devaneio estava lhe fazendo bem mentalmente.

Trinta minutos.

A música alta ainda não havia parado, e os vizinhos não pareciam dispostos a o fazer. Só que não mais importava, ninguém em sã consciência gastaria seus últimos minutos brigando com os vizinhos. Olhou para Adam. Os olhos castanhos o traziam pensamentos engraçados. Ninguém nascido depois do século XXIII viu mais uma estrela a olho nu (a poluição a partir daí não deixava), mas, os poemas sobre os astros resistiram. E na maioria desses poemas, estrelas e olhos bonitos, que geralmente transpareciam e refletiam emoções, algo como cristal, eram comparados. Eric desejava ter escrito algo sobre os olhos de Adam e as estrelas quando ainda achava que morreriam com seus cento e vinte anos, a nova expectativa de vida. Eles não esperavam morrer com vinte e cinco anos quase mal vividos.

Eric queria ter visto as estrelas quando estava vivo. Porque agora ele se sentia alguém morto em uma casca. Sem esperanças.

Quinze minutos.

Eles ainda estavam em silêncio, apenas aproveitando a companhia reconfortante um do outro, tentando não pensar muito em como tudo acabaria em alguns minutos.

Dois minutos.

A música finalmente parou e estava amanhecendo o dia. Os raios de Sol tocavam levemente a grama tão verde e acariciava seus cabelos claros, ao mesmo tempo em que tocava o rosto pálido de Adam. Ele ainda não parecia preocupado. A calma dele estava lentamente o deixando mais calmo também. Eric não se achava pronto para morrer, nunca acharia, mas era diferente agora. Ele não achava mais algo tão pavoroso morrer em um lugar bonito ao lado do amor de sua vida. Só achava muito injusto.

Um minuto.

O céu não era mais azul. Um clarão vermelho cor de sangue iluminava toda a atmosfera e nada parecia mais errado ou certo, como um paradoxo. O clarão sumiu, tão rápido quanto veio, e por um segundo, tudo era branco. As estrelas apareciam na abóboda celeste. Pontos prateados que iluminavam mais que qualquer luz artificial na opinião de Eric. Era complicado descrevê-las: tão longe e inacessíveis, mesmo que parecessem dançar ao seu redor. Era a coisa mais linda e mais triste que Eric já viu na vida, porque, sim, lembravam os olhos de Adam, mas não se comparavam, porque os olhos dele eram ainda mais bonitos. Era uma boa ideia ter essas coisas incríveis como a última visão. Ele encarou Adam, que apenas agora tinha um pequeno, quase inexistente traço de medo em seu rosto bonito.

– Eu não queria morrer assim. – Adam sussurrou de forma pesada.

– Eu também não. Eu não queria saber que iria acabar dessa forma.

– Mas está tudo bem. – Adam o tranquilizou gentilmente. – Você está ao meu lado. – Então ele segurou sua mão levemente, como uma carícia e algo quebrou em Eric. Ele não sentia mais toda aquela calma fria de quinze minutos atrás. Estava sendo mais difícil do que antes.

– Eu sempre estarei ao seu la-...

Sua frase foi cortada ao meio quando um último som foi ouvido. Ele olhou para rosto agora inexpressivo de Adam e observou o líquido vermelho – sangue, pensou tardiamente - descendo de suas orelhas, da mesma forma que sentia nas algo escorrendo por seu rosto vindo daí, graças ao aparelho auditivo destruído. Ele mais viu que ouviu, uma pequena leitura labial, quando Adam falou:

– Eu te amo. – Eric sorriu seu último sorriso quando falou, esperando que o outro visse também. Eric imaginou aquele tom de barítono que nunca mais escutaria.

– Eu também te amo.

Ele esperava que a religião hindu estivesse certa, porque a lei karmica era um negócio realmente confortante agora. Ele esperava ainda ter seu “felizes para sempre” com Adam.

Zero segundos.


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