Cigano de Dom Pedrito escrita por Evo Gonzales


Capítulo 6
O feiticeiro Alvarez


Notas iniciais do capítulo

Neste capítulo conheceremos um feiticeiro uruguaio que veio a mudar o rumo da vida de Pacácio e Maria.



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***

No zaino à galope ele correu o que deu enquanto a noitinha o encobria, distanciando da fazenda onde a emboscada aconteceu. Já não ouvia mais nenhum tiro nem barulhos da peleia. Era tudo silêncio. Quem havia de ter morrido, já morreu, quem havia de ter fugido, já fugiu. Agora, nas beiras do Arroio Velhaco, só morte e silêncio.

Antes que o dia raiasse, Pacácio se alongou em uma capoeira. Não era de segurança cavalgar pelas estradas já que soldados do império rondavam por aquelas bandas e ele sozinho, seria de fácil vitimado por aqueles homens.

Apeou do cavalo e se jogou na relva, por sobre as folhas úmidas ressequidas das árvores ao chão. Olhava ao céu que trazia seu azul, ainda que opacado pela penumbra do amanhecer. Ia esperar clarear bem para explorar os arredores e ver se podia seguir sem ser capturado.

Estava ele longe de casa, sozinho e praticamente desarmado. Mas, deitado sobre aquelas folhas, estava um homem livre. Ele cumpriu os desígnios de Coronel Poncilhano. Por meses lutou ao lado do General Netto e apenas abandonou seu posto quando a brigada foi vencida. Estava liberto, portanto, de sua promessa de sangue.

Ainda que longe de casa e com a saudade lhe queimando no peito, havia um motivo para novamente sorrir. Tinha a possibilidade de voltar para a tafona e lá encontrar Maria, a negra que tanto amava e seu filho por nascer. Mas para isso, precisava cavalgar por dias a fio pelos pampas do Rio Grande.

O sol já trazia seus raios sobre as copas do arvoredo quando ele se levantou. Pegou o zaino pelo cabresto e margeou o mato, onde se estendia uma plantação de erva-mate. Montou no cavalo e seguiu margeando a estrada mas sem nela adentrar.

Assim, cavalgando de mato em mato, de plantação em plantação. Sem pegar estrada para não encontrar imperiais, ele seguiu por seus dias. Por um, por dois, por quatro, por dez.

Para matar a fome, comia mandioca crua que achava pelo caminho, chupava cana e bebia água das vertentes que encontrava. Preocupado com os imperiais, só andou por atalhos. Em todos aqueles dias, as patas de seu cavalo não conheceram o chão firme de uma estrada.

Vez ou outra, avistava alguns batalhões de soldados da coroa. Aí, cerrava o trote e aguardava até que distanciasse e o caminho novamente se visse livre. Também encontrou algumas tropas farrapas. Da mesma forma, se camuflava nas moitas.

Maria sempre no pensamento, com a saudade a queimar como brasa.

Assim foram os dias e as noites do cigano Pacácio.

Contava já para mais de vinte dias quando se aproximou do povoado de Dom Pedrito. Ele agora conhecia o lugar e deixou os atalhos. Percorreu pelas estradas o restante do caminho, sem se preocupar com os imperiais, pois sabia que eles não andavam por aquela região.

Era tardinha quando ele sentiu o chão de sua terra, montado naquele zaino de pura raça crioula.

A noite entrou funda e ele no trote costumeiro, sem diminuir ou aumentar o compasso. A noite escura emitia apenas o som de seus andarilhos. De primórdio, as corujas que piavam nos palanques das invernadas, disputando melodias com alguns gaviões em busca de alimentos. Pirilampos enfeitavam a noite, trazendo sua luz dourada sobre o breu da escuridão.

Logo a estrada perdeu a invernada e entrou em uma capoeira com cedros e araucárias. A noite que já escura, aumentou mais ainda o seu breu.

Na capoeira a estrada se dividiu e no reponte da meia noite ele chegava à encruzilhada da Estância Madalena de los Contos. De longe viu o vulto de um homem que parecia dançar uma catira ao som de uma castanhola clareado por algumas velas ao chão. O zaino levantou a cabeça, estirou as orelhas e deu sinal de refugo. De relancina, tomado talvez pelo instinto, estacou o cavalo, observando a cena que por estranha tomou.

Mas por ali tinha que passar, outro caminho não havia. E medo ele não tinha. Puxou de dentro da camisa a medalha de Santa Efigênia e deu um beijo em devoção. Depois, escorreu a mão à cintura e conferiu a adaga. Com cuidado e devagar, prosseguiu seu caminho.

Talvez alma penada que vagueia neste mundo. Mas de perto reconheceu o negro Alvarez, feiticeiros uruguaio que viera de San Luis e por ali fixava residência desde as últimas aguadas de maio.

Alvarez era pouco conhecido de Pacácio. O cigano sabia que ele vivia pelas redondezas fazendo macumba para separar casamentos ou para unir casais em desalinho amoroso. Mas não o notou quando algumas vezes rondava a tapera, observando de soslaio a negra Maria. Por não poucas vezes, o feiticeiro pôs nela atenção enquanto cortava guanxuma para varrer o terreiro ou ia ao rio buscar água na cacimba. Os olhos de Alvarez também acompanhava Maria quando lavava roupas no rio e se despia para um mergulho.

O feiticeiro continuava a dançar e tocar castanholas pitando um cachimbo. Parecia tomado por um espírito zombeteiro.

Saltitava ao centro da encruzilhada complicando a passagem.

Além de Alvarez saltitando de um lado a outro, a encruzilhada estava toda tomada pelos elementos da feitiçaria. Galinhas pretas mortas destroncadas, outras ainda vivas se debatendo e gritando. Um gato preto miava atado pelo pé. Em um tacho de ferro, queimavam alguns elementos que elevavam ao céu uma fumaça preta e fétida. Algumas bacias com farinha, ervas e garrafas de canha, além de guirlandas de alho e fumo de corda completavam o impedimento.

De modo que Pacácio não poderia passar sem comprometer o feitiço, já que seguiam de uma margem à outra da estrada, findando na capoeira. Com a saudade queimando, não poderia esperar o fim do ritual. Teria que seguir e de já.

Mas não convinha atrapalhar a cerimônia, pois poderia trazer má sorte. De certo que não acreditava de todo em feitiços, mas não convinha blasfemar. Do que há no universo e no mundo das almas, ninguém sabe ao certo. Pelo maior dos pecados, convinha respeitar.

— Peço passagem, Alvarez, sem desdenho à sua crença. - disse Pacácio enquanto o cavalo sapateava aflito frente ao feiticeiro que dançava.

No entanto, Alvarez seguiu sua dança sem dar confiança ao que disse o cigano. Parecia nem notar a presença dele ali.

— Peço passagem, Alvarez, sem desdenho à sua crença. - Pacácio repetiu mais forte, ainda que tentasse manter a calma, mas já expressando irritamento com o descaso do feiticeiro.

Alvarez, no entanto, continuou com seu ritual com se ninguém lhe dirigisse a fala, como se estivesse sozinho naquela encruzilhada em meio à mata. Pulava de um lado a outro, saltitava em meio às galinhas que gritavam espantadas, pitando cachimbo exalando a fumaça preta.

Pacácio, com saudades da prenda a queimar o coração, perdeu paciência com o tal do feiticeiro. De calmo que tentava permanecer, deixou aflorar sua fúria.

— Escute, seu feiticeiro de pouca bosta, se não sair agora e abrir passagem nessas suas traquitanas, jogo meu cavalo em cima e espalho essas suas galinhas. Preciso ver logo Maria e não vai ser feitiçaria que me sirva de impedimento.

Alvarez parou os saltos e deu um último tocar na castanhola. Ficou inerte o homem, respirando compassado, movimentando o tronco bem de leve para frente e para trás. Trouxe os olhos a Pacácio e começou a falar, com uma voz que parecia sair das profundezas do inferno.

— Maria é prenda bonita, Maria é prenda formosa. Não merece vivê cocê, que vive de del em del a vagá pelo mundo. Esse feitiço e para ela. Vô esvaziá o bucho dela e tê ela pra mim.

Pacácio se espantou com o dito, foi por demais inesperado. De vez se enfezou e desceu do cavalo. Sacou de pronto a adaga e foi por cima de Alvarez. O feiticeiro começou novamente a bater a castanhola e dar início a saltitar. O cigano o juntou pelo pescoço e deu sua sentença.

— Mas que coisa é essa, seu feiticeiro de araque? Maria é mulher minha e minha sempre será. Não é um feitiço de merda que acaba com o nosso amor.

Grudou o feiticeiro pelo pescoço e começou a suspender. O ar faltou ao homem, tal a força do apertão, já com os pés suspensos ao ar. Pacácio deu siga à fala.

— Se quer que ela seja sua, deveria conquistar por amor. Mas já que preferiu feitiço, vai sangrar até morrer.

Preparou já posição para enfiar a adaga em Alvarez e tirar a vida daquele homem. Mas com o sopro de força que lhe restava, o feiticeiro levou o cachimbo à boca e deu uma tragada. Soltou a fumaça negra na face de Pacácio e falou palavra esquisita.

O cigano, atordoado, brandou a força do braço, deixando o feiticeiro escapar.

— Se minha não vai sê, tua também não será. - proferiu ainda o feiticeiro.

Tão logo chegou ao chão, Alvarez começou novamente sua dança enfeitiçada e a tocar a castanhola. Gritava palavras estranhas e ria em meio a elas.

Pacácio sentiu esquisito com o corpo a nebular. Sua alma se esvaiu e ele ficou sem tino. Não sabia onde estava nem o que fazia ali. O feiticeiro mais dançava e falava palavras estranhas em meio ao gritar das galinhas e da castanhola que tocava.

O cigano deixou ali o cavalo e seguiu caminho à pé, andando por aquela estrada. Nem mais ouvia o feiticeiro que continuava a feitiçaria. Caminhou na escuridão, com a ciência atordoada.

Passos lentos, imprecisos, por hora cambaleando, se sustentando nas árvores e palanques da invernada.

Estava ainda muito escuro, indo longe a madrugada, quando deu na ponte sobre o rio Santa Maria. Viu lá um vulto que andava também em descompasso. Maria Caminhava ao léu, sentindo as dores do parto. Por certo procurava alguém que lhe desse socorro e guarida.

Se encontraram na cabeceira da ponte, já bem perto da tapera. Pacácio olhou a negra sem lembrar quem era ela.

O cusco que a acompanhava, correu latindo faceiro.

Em Maria cresceu um riso que todo o mundo abarcava. Esqueceu as dores que tinha e correu em direção ao seu homem, esperando dele um abraço.

Mas encontrou a adaga de Pacácio, que ele desferiu contra o coração da amada. Sem remorso, sem culpa, sem exatidão do ato. Nada sentiu o homem, além de um instinto estranho.

Maria desfalecida, sem saber do sucedido, nada conseguiu exclamar, pois o tempo se esvaiu. Morreu a negra Maria, sangrando frente a Pacácio.

Com o sangue da amada lhe molhando as mãos, o juízo retornou. Viu ele o que tinha feito e se acabou em desolo. Sentiu a alma esvaecer, sentiu o chão lhe faltar. Até o choro lhe faltou. Abaixou frente a mulher e um beijo na testa lhe deu, sem entender o sucedido, sem compreender o que tinha feito.

Olhou a barriga da prenda, tão grande e tão formosa. Com respiração ofegante, fez um talho de cima a baixo com a adaga em sangue banhada. Era a última tentativa de salvar o filho seu. Talvez ele conseguisse tirar vivo o filho dela.

Mas estava morto também o menino. Foi morto por sua adaga.

Ele levantou e ali ficou, observando o sucedido. Nem chorava, só sentia uma dor que não tinha tamanho.

O dia clareou e ele ainda ali. Talvez esperasse o sol para ter a certeza do feito. E era verdade. Realmente ele tinha matado aquela que tanto amava.

Não havia o que fazer além de outro destino a adaga. Cravou ela no peito, rumo ao seu próprio coração. Caiu ali sobre Maria, e o filho que tanto amava.

O cusco chorava, lambendo o sangue que pela terra escorria.

***


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Notas finais do capítulo

É isso aí.

Duas músicas que me inspiraram:
http://www.youtube.com/watch?v=ERztwn8GOKI
http://www.youtube.com/watch?v=wS5aSrVSHcA



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