Cigano de Dom Pedrito escrita por Evo Gonzales


Capítulo 5
Guerreiro de si


Notas iniciais do capítulo

A tropa de Netto adentra pelo interior do Rio Grande rumo à Porto Alegre. O cigano luta por si mesmo...
Penúltimo capítulo :)



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***

O sol repontava na fazenda Imaculada Maria das Dores quando Pacácio lá chegou. Apeou de seu tordilho e o segurou pelo cabresto. Haviam já alguns peões e logo chegaram outros de fazendas e estâncias vizinhas, investidos pela envergadura do orgulho de lutar por sua terra.

Pouco tempo mais e estava a tropa por completa. Para mais de trinta como queria o Coronel. Brancos, negros e mestiços. Todos juntos à caminho da guerra.

Logo veio o Coronel Poncilhano à varanda, com sua pilcha gaúcha e guampa de mate nas mãos. Deu uma tragada no mate, bateu com as mãos na soleira da varanda para chamar a atenção e início à oratória.

– Peço atenção meus camaradas, companheiros da lida dura. - falou imponente. - O Rio Grande precisa de nós. As forças do império precisa ser vencida e somente o homem que impunha o orgulho por essa terra pode fazer esta batalha vitoriosa.

Os caboclos, em roupas farrapas, ouviam atentos. Após uma pequena pausa para dar ênfase ao que dizia, o Coronel seguiu.

– Não temos medo dos assombros dos chincais e vamos vencê-los um a um. Seguiremos o grito guerreiro de Netto e os malditos imperiais irão tombar sob nossas espadas. - falava frenético, gesticulando com as mãos e braços a cada frase proferida. - Vamos queimar a maldita bandeira do império e hastear a Tricolor no mais alto posto dessa nossa república.

Os caboclos em silêncio ao lado de seus cavalos, crescendo em cada um deles o orgulho pelo Rio Grande, desejosos em lutar pela terra que amavam. Pacácio entristecido, lastimando Maria.

O Coronel correu os olhos pelos caboclos e deu ordem à partida.

– Vão que o General Netto os espera. Vocês agora são soldados defendendo nossa terra. Vão que a vitória os aguarda. - concluiu entusiasmado.

Os peões gritaram malesas ao império e louvores ao Rio Grande, jogando os chapéus para cima, aos olhos satisfeito do Coronel.

Pacácio também possuía orgulho, mas aquela luta não era sua. Ele sabia que aqueles maltrapilhos estavam sendo ludibriados pelos senhores e que no peito, ao invés de medalhas, iriam trazer as cicatrizes da batalha.

Com resquícios de ódio, o cigano viu o Coronel entrar à casa grande degustando seu chimarrão, se perdendo no corredor.

Capitão Dornelas, capanga de Poncilhano, montou em seu alazão e soou a clarineta. Dornelas era homem de confiança do Coronel e foi o escolhido para guiar os caboclos até a região de Bagé, onde o General Netto os estava aguardando.

O capitão era homem de muita força e frio como a neve. Corria noticiário que já havia matado por mais de trinta só a mando do Coronel Poncilhano, sem contar as mortes que matava por si mesmo. Com ele ninguém fazia floreio e teriam que seguir a disciplina.

Era ainda cedinho quando deixaram a fazenda. Pacácio entristecido, seguiu um pouco atrás. Estava com pesar em seu coração por imaginar a sorte de Maria sozinha naquela tapera com seu filho no ventre. Sequer notava o minuano que soprava leve, esvoaçando seus cabelos aos olhos.

Pelo sol do meio dia, chegaram à fazenda Poncião do Amaral. Coronel Degário os aguardavam para o almoço. Costela ao fogo de chão e quirera servido em um paiol atrás da casa grande. O cigano mastigava sem gosto ou fome.

Na fazenda, mais alguns caboclos esperavam para se juntar aos outros e aumentar o esquadrão.

Depois do almoço, ouviram do Coronel mais palavras de louvores; do quanto eles eram importantes para revolução; de quanto as suas fibras eram o sangue do Rio Grande. Pacácio desolado, ouvia sem dar atenção.

Logo a clarineta do capitão Dornelas chamou os homens para a partida. Puseram novamente em marcha, agora por mais de cinquenta.

Passaram pela charqueada da fazenda e seguiram pela invernadas. Logo perderam vistas da casa grande e entram em uma capoeira cravada no pampa gaúcho.

Começava a noitinha quando chegaram à fazenda Mariano Torres, do Coronel Mariano. Extensa plantação de mate cobria todo o campo, com um aroma agradável lhes tomando o olfato. O Coronel os aguardava com a janta preparada. Charque cozido na sopa de mandioca.

Comeram de lambuzar. Mas Pacácio, só tristeza. A noite trouxe ainda mais angústia. Deitado em um dos paióis, sobre folhas de mate ceco, o cigano manteve acordado, olhando ao telhado de sapé. Lembrava de Maria enquanto o peito queimava. Não sabia se ela estava bem, se algum bicho a havia picado, se o menino remexia em seu ventre. Uma noite angustiante, a pior de sua vida.

De manhazinha, quando o capitão soou a clarineta, Pacácio estava de pé.

Depois do mate servido, foram novamente à caminho. Eram já para mais de oitenta com os homens do Coronel Mariano.

Assim passaram os dias, de fazenda em fazenda, cavalgando por invernadas, lavouras de mates, capoeiras e charqueadas. No peito de Pacácio, a saudade só crescia, e uma angústia lamentável, perseguia sua alma.

Não uma vez, pensou em regressar. Mas não poderia refugar à sua promessa de sangue. Ademais, tinha a ameaça do Coronel Poncilhano que mataria sua amada e o filho que ela esperava. Restava seguir adiante e contar com a sorte e Deus… ou o demônio, se preciso fosse.

A partir do primeiro dia o caminho carecia de ser cuidadoso já que tropas do império estavam pela região. Os farrapos eram muitos, mas estavam armados apenas com suas adagas, quando muito algumas cartucheiras. Mas frente às tropas imperiais, aquilo nada mais eram que brinquedos de crianças.

Entre paradas, desvios e contornos, fizeram em dez dias o percurso que levariam três. Rendava dez dias de cavalgada quando avistaram o vilarejo de Bagé. O contornaram e seguiram adiante. General Netto estava por ali.

O encontraram em uma tarde, na boca da noite, estanciado na fazenda Verdenancia de los Ninõs, de propriedade de Dom Gaudêncio. Com ele estavam estanciados mais de trezentos homens, todos farrapos maltrapilhos dos rincões do Rio Grande.

General Netto veio pessoalmente receber os soldados. Dispensou a eles palavras calorosas de boas-vindas e agradeceu os préstimos que estavam dispostos, por livre e espontânea vontade, a oferecer pelo Rio Grande.

– Pertencem hoje à primeira brigada da cavalaria Rio-grandense. Serão vós responsáveis pela instauração de nossa república, uma república que será de cada um de vocês, onde negros e brancos, homens e mulheres, viverão livres e serão senhores de seus passos. - falava entusiasmado trazendo orgulho àqueles maltrapilhos cansados da longa viagem.

A noite entrou e dormiram pelas cocheiras e paióis. No outro dia, de manhecita, receberam as primeiras armas das mãos de Borges, o soldado encarregado do armamento.

– Primeiramente, lança e espadas. Quando pegarem o jeito da guerra, receberão armas de fogo, garrucha e carabina. - disse ele aos recém-chegados.

Para Pacácio, mais uma noite como as tantas outras, com o coração apertado e a alma aflita por sua amada.

No outro dia, treinamento de espadas e lança. Os caboclos aprenderam a manejar as armas à cavalo. Com a psicologia de guerra, aprenderam a matar sem remorso, piedade ou compaixão.

Mais alguns dias de treinamentos e Netto reuniu os homens. Eles iriam abrir caminho até Porto Alegre, onde o General Bento Gonçalves estava com as forças gaúchas. O intento de Netto era dizimar os imperiais pelo caminho e sucumbir as forças do império pelo interior do Rio Grande.

– Meus companheiros, colegas de armas e almas. - dizia ele aos farrapos. - Será longa nossa trajetória, mas tanto grandiosa quanto vitoriosa. Seremos reconhecidos pela história como os instauradores da república Rio-grandense, com a bandeira Tricolor hasteada definitivamente no chão de Porto Alegre.

O cigano ouvia estático. Naquele exército, ele nada mais era que uma marionete lutando pela sobrevivência. Na realidade, todos eram, mas talvez apenas ele era conhecedor de sua condição.

No outro dia, raiar do sol, deixaram a Verdenancia de los Ninõs rumo à Porto Alegre. À frente, General Netto e os homens com as armas de fogo. Depois, os de lanças e espadas. Pacácio entre eles, com sua espada a tiracolo.

Pelo caminho, diversas batalhas. Algumas vitoriosas, em outras, muitas perdas e recuos.

Pacácio matava com pesar. Sabia que os soldados da coroa, como ele, lutavam em uma guerra que não era dele. Ele, que matava apenas terneiros, à cada homem que feria pedia clemencia a Deus e que velasse pela alma do soldado.

Os farrapos mortos eram substituídos por outros nas fazendas por onde passavam. Sempre colonos maltrapilhos enviados pelos Coronéis.

Assim foi um mês, foram dois, foram três, foram quatro. Foi-se a primavera, adentrou o verão. Maria recolhia no nono mês de gravidez. Pacácio em desespero, não fazia conta de si. Lutava com ardência defendendo seu quinhão de vida.

Findava janeiro, entrava fevereiro, quando chegaram ao rio Arroio Velhaco, bem próximo à Lagoa dos Patos. Iriam margear a lagoa até Porto alegre. Arrancharam ali, já bem cansados da viagem.

Pacácio agora via a esperança lhe esvaindo pelas mãos. Pouco contava em novamente ver Maria, já que tão longe estava. Em poucos dias ela teria o filho naquela tafona sozinha, fincada nos confins do Rio Grande. Ele talvez morto, já que a cada batalha mais homens morriam. Por sorte estava vivo ainda, mas logo cairia pela arma de um imperial.

Amargurava pensando em como estaria sua negra fazendo para comer. A farinha, por certo, já teria acabado. O dinheiro foi pouco, não der para juntar. Talvez fome passasse a negra que tanto amava.

A noite se foi, veio a madrugada e Pacácio acordado pensando em Maria, deitado ali, no chão do estábulo.

Ouviu latidos de alguns cachorros. O ouvido acendeu. Depois, tiros e gritos. Levantou apressado e se pôs para fora.

Viu de logo que estavam sendo atacados. Foram pegos de surpresa, em desarma. Na madrugada de lua alta, ele viu muitos saldados do império armados de trabucos e carabinas ceifando vidas de seus companheiros.

Nenhuma arma ele tinha à seu alcance além da adaga de lâmina curta. Correu até o mourão de uma porteira. Ficou escondido ali.

Viu que muitos soldados vinham de todos os lados. A matança seria das grandes. Por certo General Netto não seria pego, teria tempo e condições para fugir antes. Estava na casa grande muito bem guarnecido. Mas os soldados farrapos que dormiam pelos arredores, muitos, senão todos, seriam abatidos. Ele ouvia os lamentos e os gritos de morte.

Protegido pelas sombras da noite ele foi furtivo pelos palanques da cerca, fugindo da carnificina que ocorria nas margens do Arroio Velhaco.

Quando já a certa distância, parou e olhou. Ouvindo os gritos de vitória das forças imperiais. Aquela batalha estava perdida. Esperou um momento até que tudo acalmasse e furtivamente foi ao estábulo. Alguns soldados estavam por ali, mas não davam atenção já que os farrapos estavam todos mortos.

No silêncio da noite ele pegou um cavalo zaino. Selou bem quieto, rogando a Deus para não ser ouvido. Foi puxando o animal por detrás do estábulo até que a certa distância, montou no zaino e cavalgou sem olhar para trás.

Muito longe dali, Maria o esperava. Dom Pedrito estava longe e seria longa a viagem. Mas quem sabe ele não chegaria a tempo. Um riso tímido cresceu em seu semblante. Um riso que a muito havia esquecido o caminho.

***


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