Chamizo escrita por RedLily


Capítulo 1
Chamizo


Notas iniciais do capítulo

Ainda posso sentir tudo o que escrevi reverberando em mim.
Posso sentir cada contorno, e até a silhueta.
Do que há em ser nada. Do que há em ser tudo.
Do que há em ser Aver e do que há em ser Signa.
Do que há em ser passado. E do que há em ser mistério.
Espero que sinta.



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Nunca soube exatamente o motivo pelo qual ergui meus olhos.

Não deveria, sei. Não sei, verdade. Talvez o destino soubesse que aquilo deveria acontecer. Que meus olhos se encontrariam nos dele e eu leria mistério. Li mistério, mas não fui capaz de lê-lo. Demônios dançavam em suas íris, segredos se banhavam em negro. E por tal brilho, fui arrebatada. Uma armadilha, ao fim, sempre tem seu encantamento.

Seu andar era como o de um caçador, como se não quisesse fazer barulho, os galhos se moveriam e sua presa notaria sua presença. Não sabia se era seu alvo, sua presa desde o início. Na verdade, minhas perguntas continuaram sem respostas. Estávamos num bar, no entanto, mas que continuava a ser selva. Pessoas são animais, ao fim. Somos civilizadamente selvagens.

E em nossa selvageria, nos consumimos. Como se os sentimentos fossem o sumo de algo que nos move. Viemos da intensidade. Do que se é intenso entre viver e morrer. Do que se é intenso em ter um coração batente.

Ele era intensamente leve, intensivamente nada e tudo. Seu rosto era inexpressivo, mas tal aspecto fazia-o parecer que estava mergulhado em memórias. Como se cantasse uma música eterna em seu âmago. Uma música sua. Era presença e ausência. E mesmo ausente, notava tudo. Sendo presente, era sentido.

Era uma bomba em meu radar. Se o tocasse, explodiria. Três segundos e nenhuma reação a não ser a libertação do deixar ser levado.

Tinha as mãos nas calças negras, uma blusa social branca como neve, quase da cor de sua pele. Era incrivelmente atraente para mim. Seus olhos-cadeado me fascinavam.

Não era tão musculoso, mas tinha músculos discretos, não se sobressaindo muito de sua camisa. Contornos em sua pele alva. Seus cabelos negros eram levemente ondulados, tão negros que causavam um profundo contraste no branco. Era o quadro mais profundo que já havia observado. A mais bela obra de arte.

Havia algo trágico em seus traços e em sua beleza preto ou branco, oito ou oitenta. Parecia-me o contorno de algo que já existiu. Mas só deixara restos e nada mais. Castelo no deserto, ou no ártico. Cavalheiro gasto de uma batalha ainda não vencida. Veterano há muito acabado. Ruínas.

Sentou-se ao meu lado, olhou-me de soslaio. Pedi silenciosamente para que me olhasse de novo.

— Um copo de uísque com gelo, por favor. — pediu ao bartender, um cinquentão de cabelos brancos e olhos experientes. Este, no entanto, carregava um brilho feliz nos olhos. Diferentemente do jovem.

— Um instante, senhor. — virou-se. À sua frente prateleiras repletas de bebidas. O lugar, logicamente, cheirava a álcool. Mas também havia o cheiro constante e leve de produtos de limpeza e um cheiro forte e agradável de madeira.

Perguntei-me como um corpo tão esguio poderia aguentar bebidas tão fortes. Ou um passado tão forte quanto ele parecia ter.
Apoiei meus braços na bancada, bebi mais de minha vodka, sentindo o líquido causar a sensação satisfatória e familiar de queimação em minha garganta. Podia sentir a bebida fazendo ainda mais efeito sobre mim.

Logo, o bartender se virou e pôs a bebida do de cabelos negros a sua frente. Ele, no entanto, não fizera nada a não ser esticar seu braço para pegar o copo. Bebeu tudo num único gole, as costas da mão esquerda passando por sua boca levemente rosada, mas pálida. Pôs o copo sobre a mesa novamente, produzindo um leve ruído.

— Bebe como se uísque fosse a única coisa que o mantém vivo. — comentei.

Ele demonstrara uma leve surpresa ao perceber de onde vinha tal voz. Quando seu olhar pousou sobre mim, senti-o queimar. Seus olhos eram expressivos, olhava para mim como o olhava: como se fosse um enigma. E como se gostasse de enigmas.

— Não, querida. Existem outros meios de me manter vivo. — seu sorriso era melancólico. — Meios não menos sórdidos, garanto.

— Deixou-me curiosa. — olhei-o de soslaio, bebendo pouco mais de minha bebida.

— Sombras nunca foram de deixar alguém curioso. — ele disse, as palavras pareciam escorregar de seus lábios.

— Neste ponto tenho de discordar. Sombras são mistério, e muitos querem desvendar. — as palavras saltaram, melódicas, de meus pensamentos. Não me arrependi, no entanto.

Depois de algum tempo, acabei por descobrir que arrependimentos nunca fizeram morada em mim. O que fui, o que deixei de ser, tudo isto foi causado pelo que fiz e o que não fiz. Estava vivendo, me arriscaria. Assim como meu coração se arriscava, batendo para me fazer viva sem saber que efeito surtiria.

— Temos uma poetisa, aqui, então. — os olhos melancólicos me analisaram. Ele parecia fazer anotações mentais como se fosse seu último dia de vida. Mas será que ele realmente a possuía? Como poderia se despedir de algo que nunca teve?

— Poderá me chamar assim. — disse, olhando-o de forma sagaz. — Mas e você, como devo chamá-lo? — perguntei.

Cabelos negros cobriam seus olhos, não pude ler o que expressava. Talvez o vazio constante que parecia existir nele.

— Pode me chamar do que achar melhor. — disse, indiferente.

— "Do que achar melhor"? Possui um apelido estranho. — meu sorriso era cortante.

Virou-se para mim, os olhos cintilantes de uma cobra, mas estranhamente sarcásticos.

— Certo, poetisa. Chame-me de poeta.

— Devia pensar que tal jogo de palavras possui um significado subjacente? — ergui uma sobrancelha, pretensiosa. Ele era direto, mais que o apropriado. No entanto, um dos detalhes que mais gostei nele.

— Talvez simbologia seja algo que temos em comum, querida. Possivelmente a capacidade de ler as entrelinhas. — disse-me, rodando o gelo em seu copo com fascínio, virou o copo em sua boca, em seguida. Os cubos de gelo se derretiam e eram engolidos, e ele não parecia se importar com mais nada no mundo. Já sabia de todos os seus segredos.

— Já que é poeta, possui algum pseudônimo? — perguntei, ele entenderia.

— Aver. — olhou para as bebidas enfileiradas como se fosse névoa, e não se concentrasse em nada de fato.

— Signa. — ele me olhou de soslaio, um sorrisinho de se perder a cabeça nos lábios. Sorriso faça-me-sua. Aver... Conhecia os poderes que tinha.

— E o que uma garota com um nome tão inusitado estaria fazendo desacompanhada nesta noite? — ele olhou-me, olhos poço-de-escuridão tão brilhantes. Olhos tão mergulhe-em-mim. Aquela essência... Se fosse água, que me banhasse. Já estava encharcada. Fantasma... Roubou-me tudo, deixara-me nada.

— Quê há? — dou de ombros. — Uma poetisa só, por sua solidão, sabe a extensão da dor que as boas companhias interferem. Procuro aquele a quem me ensine não só que é eu, como aquele que amplie as extensões de todo o sentir. Não que atrapalhe. Nem mesmo a dor. — eu o olhei por um instante. Seus olhos deslizam sobre o balcão antes de encontrarem os meus.

— Então, meu bem, chama-me de dor. Pois ela ampliará toda a essência de se sentir infinidade. E eu, querida poetisa, não sou interferência. Serei algo apenas se quiser que seja. Posso ser nada, se assim quiser. Posso senti-la, se assim preferir. Posso vendá-la, se assim desejar.

— E se me vendar... Para onde me mandará?

— Para onde quer, poetisa. . — olhou para mim. Íris-fechadura. O sentir que me perfura, que vem, e então, perdura. Que realidade tão dura... Que verdade tão muda quanto aquelas que não dissemos. — Lhe levarei até lá.

— Me vende. — meus olhos, pura intensidade.

— É sã? Como sabe o quê lhe farei? — e seus olhos eram sarcasmo, mas tinham algo sedutor.

— Futuro nunca foi medo, poeta. — bebi o resto de minha bebida de uma única vez. — Uma vez vendada, desvendada. — pisquei. Um sorriso formou-se nos lábios dele.

O efeito era enferrujado. Era como se tivesse desaprendido a sorrir, de forma que soa desajeitado. Mas charmoso de uma forma que jamais conseguiria esquecer.

— Faça cidade de venda, poetisa. — sorri, ele pôs o dinheiro na bancada. — E você, dama, mergulharia na noite comigo? — e ele se levantou, mas seu braço esquerdo movimentou-se como o movimento de uma onda. Siga-me, ele quer dizer. O li. Olhei, mas vi pouco. Aver, sempre tão turvo. Sempre me fazendo desejar mais.

Ele abriu a porta, vidro, contorno de madeira envernizada. O sino soou aos nossos ouvidos, e juntos, observamos o que havia de melhor na noite: a profundeza de ser vazio. Havia combustível que induzia o ato de deixar seus demônios virem à tona. Havia combustível para loucuras, e tal componente químico devorou minha sanidade de forma corrosiva. Havia espaço para a euforia de gente sorumbática como Aver. Como gente fantasma e fantástica — de pura fantasia. Havia infinidade. Tanta que as estrelas pareciam perto, e a lua, grandiosa. O mar redondo e radiante, brilhante em seu brilho perolado.

Fora a noite preto e branco que marcara o colorido. De contrastante e indefinível, tocara tudo. Manchara-me de forma indelével.

Nanquim e borracha. Passado e esquecimento.

Aquela noite era reflexo e imagem.

Vagamos em silêncio por instantes que se interligavam e permaneciam eternidade. Os postes choravam sua iluminação amarelada sobre o asfalto e sobre os carros. E sobre as poucas pessoas que ali passavam. Os becos continuavam ocultos como um segredo que deveria ser mantido escondido.

Mas havia o segredo vivo que andava ao meu lado naquele instante. E, este, de coração batente, pareceu-me uma antiga biblioteca onde os livros decidiram se suicidar. Rolaram escadas, derrubaram estantes quase sem querer.

Destruíram tudo. Destruíram-se.

Senhor Caos, se fizesse de mim resultado de furacão distribuiria minhas pétalas por sua extensão. Marcaria-te em vinho e nanquim. Assinaria teu fim com meu nome, para jamais esquecer-me.

— É diferente de uma forma que nunca consegui encontrar. É corajosa a ponto de mostrar o que é, sem nenhuma espécie de máscara. Corajosa poetisa... Tem medo de muito e pouco, não é? — e suas mãos estavam em seu bolso, a lua, parente sua, o iluminava. Meu coração sugou sua essência num piscar de olhos.

— Eu considero medo aquilo que podemos sobrepor. E, nesse caso, nunca tive medo de ir fundo em mim, ou nas pessoas. Querido poeta, — meu sorriso era esperto. — medo do infinito da noite já não tem porque é ambos, mas qual seria seu medo? — desviei de uma poça, e perto dali avistei uma praça. Vazia. O vento perfurou minhas roupas e o resultado era invisível, mas o frio que sentia era anestesiante.

— Tenho medo de, por fim, estar preso na monotonia do permanente. — sua voz era suave como o vento, e mesmo quando falava, exalava silêncio. — Entende?

— Claramente. O encontro do caos é o destino, poeta. — eu sorri, mas absorvi tudo aquilo. Absorvi letra por letra, e absorvi o elemento fantasmagórico que já conhecera.

Andamos, passos calmos, logo estávamos na praça. O chão era ornamentado de pedras antigas, o banco era de madeira, mas estava seco com excessão de algumas gotas, pois estava debaixo de uma árvore. Havia uma sorveteria, e todos ali presentes continuaram o que estavam fazendo como se não estivéssemos ali de fato.

Mas estava acostumada a ser enganada, sempre havia alguém olhando. Mesmo quando acreditava que não.

E se não fosse alguém, seria o universo.

Aver olhou para mim, e sorriu. Sorriu como nunca pensei que o fizesse. Sorriu como se uma estrela se acendesse em seu rosto, de forma que esmagou o que havia dentro de mim e me embaçou a vista. Meu garoto-segredo, apreciaria mais que o saudável poder observar tal sorriso todos os dias.

Adoraria ter dito mais do que disse, e ter despejado ainda mais do que minha aura louçã. Gostaria que todo remoque tivesse perpetuado, e que toda poesia me perseguisse para onde fosse: como se pudesse sentir toda a delicadeza de sua voz e de suas palavras, e toda a brutalidade que elas também carregavam.

Ao invés disso, naquele instante, não pensei. Não pensei no amanhã, não pensei nas consequências. Não pensei no fato de ter amado tanto naquela única noite. Não pensei no fato de que ele poderia simplesmente evaporar e me consumir como nunca antes ninguém fizera. Nem ao menos pensei no fato de que Aver se tornaria saudade com o passar do tempo. De que suas lembranças se tornariam um quadro permanente enfeitando o cômodo de coração.

Nossas mãos se tocaram como se tal impacto fosse o doce encontro de duas pétalas de rosa. A mão dele encontrou meu meu pescoço e pareceu leve como pluma, mas viciante como uma droga da qual me viciei e jamais achei cura.

Sua mão esguia e gélida encontrou minha bochecha. E não havia guerra, ou dor, ou escuridão. Tudo se resumiu ao nada.

— Uma vez tocada, desnuda. — a voz dele era pura hipnose.

— Sábias palavras daquele que me descobriu a silhueta. — eu disse, mas já não respondia por mim. Minha voz era um sopro como a dele o era, apesar de saber que sua voz era muito mais do que um sopro, apesar de ser suave, pois mesmo tão rosa, tinha pétalas vermelhas que carregavam consigo a intensidade de muito mais do que futuro, presente, ou mesmo passado: carregava consigo a capacidade de congelar o tempo, derreter os ponteiros de um relógio.

Seus olhos me descobriram. Me despiram. Aver disse que estava nua. E eu estava. Pois ele me despiu todos os segredos e tudo o que um dia escondeu o que sentia.

Sua boca encostou na minha, e minha alma se esvaiu no gosto de álcool, e no gosto doce de seus lábios, que carregavam o memorável do vinho. Que carregavam muito mais do que simplesmente sede de sentir, mas sede de algo mais forte que isso. Sede de estrelas, de lua e sol, sede de mundo. Sede de universo. Mas não sabia mais se era do meu.

Ah, meu Aver... Meu viajante, meu chamizo...

Nunca soube como seu vazio pôde me preencher tanto.


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Notas finais do capítulo

Signa foi tingida de estrelas, e nem ao menos sabia disso.
xx Red



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