Eu estava deitada em meu quarto.

Minha mente divagava pelo dia anterior. Em meus devaneios eu via o rosto de Merl, ela dizia para eu continuar, mas a única coisa que eu queria era morrer. Eu não conseguiria viver com tanto peso nas costas, a cada passo que eu dava mais pessoas morriam. Jorge, Diana e agora Merl, minha melhor amiga.

Minha vontade era de me jogar em um abismo, contudo eu não morreria. Eu era imortal e fora exatamente isso que Irriel me dissera, a vida é uma prisão. Todas as vidas começariam e acabariam e eu estaria da mesma forma: sozinha e presa. Vendo cada ser passar pelo mundo, deixar sua marca, mas nunca seria a minha vez de ir embora... Era como uma viagem sem volta. Não pude escolher meu destino e para piorar ainda havia uma guerra em vista.

Ada estava sentada ao meu lado. Ela via minha situação deplorável: olhos inchados, nariz vermelho. Meu pé quebrado estava bem, mas eu ainda sentia dor ao andar. As queimaduras no braço e a costela fraturada já estavam curadas. Somente meu coração não se recuperava, porque a cada vez que fechava os olhos eu via as pessoas que eu amava indo embora, continuando sua viagem e me deixando pra trás.

—Você tem que se preparar — a anjo falou acariciando meu braço.

Eu continuava afundada em meu travesseiro molhado em lágrimas.

O Trono de Shamayim me esperava. Quando os anjos viram o Chefe dos Anjos morto já sabiam que eu tomaria seu lugar e isso deveria ser o mais rápido possível. Dei um sorriso forçado para Ada e levantei-me. Meu corpo protestava, porém eu devia seguir o protocolo.

Ada me ajudou a colocar o vestido bege com uma longa calda. Ela prendeu meu cabelo e colocou uma tiara brilhante que me fez parecer uma princesa, logo após fez uma maquiagem corretiva que escondeu minhas olheiras. Eu estava bonita, mas não havia brilho em meus olhos. Qualquer um diria que eu estava indo para um enterro... O enterro da minha felicidade.

Saímos apressadas do quarto. Ada segurava a calda do meu vestido com aptidão. Seguimos pelos corredores do Palácio e paramos em frente ao Salão, onde na noite anterior eu havia consolidado meu destino miserável.  Centenas de anjos estavam ocupando o espaço, o sorriso em seus rostos pareciam ignorar a barbaridade que havia acontecido. Eu era a única fragilizada ali. E Lukiel também, por trás de sua postura sólida eu via sua tristeza. Sorri para ele com delicadeza e entrei no Salão. Os anjos aplaudiam e vibravam. Aquela cena me remetia à coroação de reis na Idade Média, era como se eu fosse ser a rainha daqueles anjos... Isso me assustou.

Se eu fosse à rainha deles quando iria ter a minha vida? Quando seria eu mesma?

Eu caminhei entre os anjos, seguindo o caminho até o Trono reluzente. Minha mente voltava a divagar...

Eu nunca entendi do que se tratava o amor que os humanos insistem em acreditar, mas agora sei o que é. Sou capaz de dar minha vida por você, Saraí.

Era a voz de Merl em minha mente.

Sinto muito, querida. Sei como é perder a família, mas você tem a nós, inclusive Irriel. Lembra-se do que eu te disse? Você tem a lealdade dele.

Eu tinha Irriel.

Quando eu me sentar naquele Trono, vou poder te ver? Era a minha voz.

Quando você tomar posse, vou passar a ser seu inimigo. A voz de Irriel pairava em minha mente.

Eu olhei para o rosto daqueles anjos e estrei em pânico.

Talvez seja a última vez que te vejo... Eu podia ver o rosto de Irriel ao me dizer isso.

— Não — falei assustada ao sair do transe.

Eu não queria perdê-lo. Eu não sacrificaria meu amor por essa profecia. Eu não me sentarei no Trono de Shamayim!

Eu estava de frente ao Trono. Lukiel ao meu lado me incentivando a ir em frente. Se me sentasse ali seria Chefe dos Anjos, um posto que me prenderia a Shamayim por toda a eternidade, eu nunca voltaria para meu mundo. Eu não queria aquilo.

— Eu não posso — falei baixo para que Lukiel escutasse.

Ele arregalou os olhos e fez sinal para que eu continuasse.

— Eu não serei Chefe dos Anjos — falei mais alto e os anjos se assustaram — Não posso ocupar esse posto.

Lukiel estava perto de mim. Seu rosto não me recriminava.

— Você deve ser o Chefe — falei para ele — O único que fará o que deve ser feito. Não posso assumir o posto principal de um povo que não é meu. Eu sou humana, meu lugar é em Eretz!

Os anjos escutavam minhas palavras, mas nenhum se intrometeu. Talvez eles concordassem com minha decisão... Lukiel era o melhor para o cargo. E eu poderia me concentrar na guerra e depois ir embora para viver minha vida. Eu nunca seria feliz presa a Shamayim, mesmo que aquele lugar fosse o poço da paz e da tranquilidade.

— O que você me diz? — eu sorria para incentivar o anjo — Merl ficaria feliz por isso.

Lukiel olhou para Trono, para mim e para as centenas de anjos. Ele estava se decidindo.

— Sim — ele respondeu — Eu aceito.

O anjo subiu os degraus do Trono e se sentou. Todos os anjos gritaram de alegria e eu fiz o mesmo. Eu poderia seguir meu caminho...

CONTINUA.

ᴥ

Semanas antes na Fortaleza dos Anjos Caídos – Antes do Pacto de Sangue

Os dois Caídos estavam em uma pequena sala de reuniões. Arghaus sentado com uma pose intimadora e Irriel em pé olhando diretamente para ele. Ambos pareciam insatisfeitos com algo, mas até o momento nada havia sido dito para resolver a situação.

—Por quê? — Arghaus perguntou depois de remoer o que Irriel havia dito. Ele simplesmente não poderia deixar o outro fazer aquilo — Pensei que você gostasse da garota...

— Isso não vem ao caso, Arghaus. Eu só não quero entrar em mais uma guerra... — Irriel falou se sentindo irritado.

— Você já está nessa guerra, meu querido.

— Eu não quero que você me inclua no seu Pacto de Sangue com Saraí — Irriel repetiu sua vontade —Vou ajuda-la a salvar Merl, mas não quero entrar em outra guerra. Não me inclua no seu povo, eu não faço mais parte da Fortaleza e você sabe disso.

— E o que ela acha disso? — Arghaus estava curioso.

— Ela aceitará.

— Você vai trair seu povo pela segunda vez? — Arghaus estava indignado com a atitude de Irriel — Eu sei que você e Saraí são namorados. Você vai abandoná-la? Deixá-la sozinha nessa guerra imunda?

— Arghaus, não me inclua no seu Pacto — Irriel esbravejou e saiu da sala sem olhar para trás, batendo a porta.

Dentro da sala, Arghaus se perguntava o porquê de Irriel resolver abandonar sua amada. Mas até o velho líder sabia que em uma guerra o medo podia vencer o amor...