Escolha escrita por Literate


Capítulo 1
Escolha




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Era pra ter sido mais uma manhã comum. Mas aquele filho da mãe tinha que aparecer pra complicar a minha vida. E pra completar, eu ainda tinha acordado com o casco errado, saí da cama aborrecida e com dores; coisa que não é incomum, e muito desconfortável pr’uma velha. Mas, verdade seja dita, eu sou mais jovial que muita potra por aí, apesar de tudo. Enfim, acordei cedinho, como sempre, o sol começava a aparecer no horizonte; Bic Mac e Applejack já deviam ter acordado, eu precisava tirar Apple Bloom da cama. Quando entrei no quarto dela, ela puxou o lençol pra cima do rosto e deu um gemido preguiçoso.

“Tira o bumbum da cama, Apple Bloom. Acorda pra cuspir!”, disse e dei um beijo na testa dela.

“Mais cinco minutos...”, Apple Bloom insistiu enquanto eu abria as cortinas. Eu disse que ia chamar a Applejack pra tirar ela cama. Sempre funciona. Ela levantou num instante, queria se arrumar sozinha; minha netinha estava crescendo. Desci as escadas e deixei Apple Bloom se arrumar pra escola. Um cheiro de torta de maçã recém assada vinha da cozinha.

“Dia, vovó!”, Applejack disse animada. E fez menção de ir acordar a irmã.

“Não. Deixa. Eu já falei com ela. Ela tá se arrumando. Cadê o Big Mac?”

“Comeu rápido e saiu pra fazer as tarefas dele. Espero que ele não passe mal de novo”, ela respondeu preocupada. Estava comendo um pedaço de torta e tomando uma xícara de café bem forte. Apple Bloom desceu com os alforjes mais pesados do que o normal. Falou que ia sair com as amigas depois da aula em suas cruzadas pela Marca. Nem perguntei o que ela estava levando; essas três inventam cada coisa. Minhas netas ficaram esperando eu terminar de comer. Algumas coisas ruins em ser velha: faço tudo devagar, isso inclui comer; e me sujo muito fácil quando estou comendo, parece que fiquei de boca mole com a velhice; e meu pescoço dói quando me aproximo do prato pra pegar um pedaço de algo. Aliás, quando se é velha, tudo dói toda hora. E o pior, eu não gostava nem um pouco quando elas ficavam me esperando terminar o café. Eu fazia o meu melhor pra não passar vergonha na frente delas. Applejack sempre mastigava a comida de boca aberta, minha neta faz o favor de chamar mais atenção comendo do que eu. As duas ficavam conversando sobre o que fariam durante o dia. Como é bom ser jovem. Ter pôneis pra visitar, lugares pra ir, nunca se cansar. Isso faz tanta falta. Eu ficava pensando. Meu olhar estava perdido no espaço. Apple Bloom balançou um casco na frente do meu rosto pra chamar atenção.

“O que foi?”, perguntei surpresa.

“Tá tudo bem, vovó?”

“Ah, sim. Só estava pensando”, falei e sorri pra ela. Mais uma coisa ruim em ser velha: com o tempo cê acaba perdendo uns dentes, e sorrir fica feio, não importa o quão carinhoso ou feliz seja o seu sorriso. Apple Bloom sorriu de volta, os dentinhos brancos, brilhantes e perfeitos. Disse que ia pra aula. Eu a acompanhei até a porta de casa.

“Vê se não demora muito, tá? Se não estiver aqui até às quatro, sua irmã vai ter um ataque”, disse rindo.

“A AJ devia parar de se preocupar tanto. Eu já num sou mais um bebê”, Apple Bloom respondeu aborrecida.

“Ela se preocupa porque te ama. Eu também vou ficar preocupada se minha netinha querida demorar muito”, expliquei. E beijei a testa dela. Estávamos conversando no batente. Apple Bloom concordou em não demorar, se virou e partiu pra aula. Logo mais, Applejack passou por mim, dizendo que ia deixar a irmã no colégio e que voltaria depois pra cuidar do pomar. Galopou pra alcançar Apple Bloom.

Fiquei vendo elas irem. Por fim, lá estava eu sozinha em casa de novo. Entrei de volta, olhei pra sala e pensei nas minhas opções. Ainda estava cedo demais pra fazer o almoço. Mais uma coisa ruim em ser velha: falta do que fazer. Trotei devagar pela sala, sentei na minha cadeira de balanço. Enquanto me balançava devagarinho pra frente e pra trás, fiquei me lembrando de quando era uma potrinha, quando me divertia num balanço e ficava me impulsionando pra ver o quão alto dava pra chegar. Outra coisa sobre ser velha: você acaba dormindo sem querer. Caí no sono.

Acordei assustada com um bater de casco na porta de casa. Bateu três vezes. Eu gritei dizendo que já ia atender. Bateu mais três vezes e dessa vez eu ouvi também um som baixinho e musical, como sinos. Fui até a porta com as costas doendo. Abri. E na minha frente estava um pônei que eu achei que nunca mais ia ver. Estava tudo ali, o pelo cinzento, a capa azulada com estrelas amarelas, o chapéu pontudo com os guizos, a barba branca e muito longa, os olhos azuis profundos, que sempre tinham uma expressão severa.

“Ei Smith, há quanto tempo...”, ele disse com uma voz suave. Como se fosse um camarada visitando uma velha amiga. Quase xinguei ele.

“O que quer, seu velho?!”, eu repliquei, deixando ele sem palavras, surpreso. “Cê sumiu! Cê achou melhor ir embora! Agora volta pra ficar me perturbando? Sai daqui.” E fechei a porta na cara dele. É claro, isso não faria a menor diferença pra ele, Star batia em portas apenas por educação, não precisava usar elas de verdade. Ele já estava dentro da sala. O rosto dele mostrava que não tinha ficado muito feliz comigo; eu também não estava nada feliz com ele. E pior, eu não estava com muita paciência pra discutir com ele.

“Smith, por favor, seja razoável. Eu só quero conversar”, ele falou triste.

“Eu num tenho o que diacho conversar contigo, seu velho safado!”, gritei pra ele. Tossi em seguida por forçar a voz. Ele continuou me olhando de um jeito triste. Se eu fosse uns anos mais nova, acertava a cara dele. Aí ele ia ter motivos de verdade pra ficar triste. Ficamos nos olhando por um tempo. Ele tinha uma respiração forte e ritmada. Botou uma expressão determinada na cara.

“Eu não vou sair daqui enquanto você não conversar comigo.”

Esse velho safado veio até a minha casa e me deu um ultimato. Isso não tem nem nome! Espera, tem sim: ousadia sem tamanho.

Trotei pela sala, nem olhei na cara dele. Sentei de novo na cadeira de balanço. Eu bufava de raiva. Minha cara estava mais amarrada que nó de escoteiro. Mais uma coisa ruim em ser velha: o passado às vezes bate na porta pra te atormentar. Eu não via esse velho há anos. Ele me magoou tanto! E ali estava de novo, voltou com o rabo entre as pernas e um olhar de preocupação quase carinhosa. Se a Applejack estivesse em casa, já tinha dado uma coça nele por mim. Respirei fundo.

“O que quer, velho?”, perguntei de novo.

“Saber como você está, o que fez durante esses anos, como se sente, essas coisas...”, ele mentiu. Piscava muito quando contava uma mentira. Ele já sabia de todas essas coisas. Ele era o Star Swirl, o barbado, o grande feiticeiro e velho idiota sabe-tudo. Eu sabia aonde ele queria chegar, afinal. Resolvi me fazer de burra. Por quê? Eu precisava falar umas coisas pra ele.

“Vi meus filhos crescerem. Vi meus netos nascerem. Passei um tempo pensando onde cê devia tá. E em como cê me deixou. E nas promessas que fez pra mim. Sabia que se aproveitar de viúvas é um negócio muito feio? Eu também trabalhei um bocado sozinha nesses anos. Tive tempos ótimos no rancho, e passei por tempos horríveis também. Vi meus cabelos ficarem brancos e quebrarem, parei de usar as tranças que eu tanto gostava. Agora tenho dores nos joelhos, nas costas, às vezes na cabeça. E um monte de tempo livre pra ficar sentindo minhas dores sozinha quando meus netos não tão de olho. Já se sentiu assim? Já se sentiu velho? Acho que sim, quantos anos cê tem mesmo? Uns dez mil?! É assim que eu me sinto a maior parte do tempo, velha. E ficar velha me deixou meio rabugenta. E além de tudo isso eu ainda tenho que te aturar na sala da minha casa porque não tenho mais forças pra te botar pra fora no coice!”, eu disse tudo de uma vez. Eu não costumava falar assim com nenhum pônei, mas ele merecia.

Star ficou olhando pra mim. Eu não saberia o que se passava pela cabeça dele, mas esperava que ele se sentisse culpado. Conheci ele logo depois que meu marido morreu. Naquela época ele já parecia velho, mas não velho de um jeito ruim, era até bem charmoso. A única coisa nas feições dele que pareciam milenares eram os olhos, sempre muito profundos e severos; mas quando ele olhava pra mim, o rosto dele suavizava, parecia até outro pônei. Meu luto passava e eu me encantava por aquele unicórnio de capa e chapéu engraçado. Começamos a sair. Ficamos quase um ano juntos. Foram meses maravilhosos, tudo dava certo, tudo era perfeito, não tinha nada que a gente não pudesse resolver juntos. Então, ele começou a me falar sobre coisas que eu não entendi muito bem. Me falou que já tinha vivido muito mais que a maioria dos pôneis, que era mais velho do que eu podia imaginar; isso me assustou um bocado no início. Ele disse que podia ir aonde quisesse, fazer o que quisesse, viver o quanto quisesse, mas ele dizia essas coisas com uma naturalidade absurda, e contava histórias engraçadas de aventuras mirabolantes sobre dar cajadadas em cabeças de pôneis bobalhões, eu nunca sabia o quão sério ele estava sendo quando falava comigo sobre essas coisas. No fundo eu ficava pensando que ele era só um velho feiticeiro bobo contando lorotas pra parecer galante. Eu era jovem. E burra.

O fato era que ele realmente podia ir onde quisesse, quando quisesse, fazer o que quisesse; quer dizer, ele disse que tinha limites, e que se esses limites fossem quebrados, dariam muitos problemas. Naquela época eu era mãe solteira, com dois filhos pra criar, e um rancho pra tocar em frente. Foi quando ele me fez uma proposta que era irrecusável, pelo menos pra pôneis idiotas como ele. ‘Venha comigo e viva para sempre ao meu lado.’ Ele disse. Tive muito medo, mas ele sempre estaria ali pra me proteger, afinal. Em seguida ele disse ‘Mas você precisa abdicar. Magia não é uma coisa simples, cada feitiço exige um sacrifício, em maior ou menor grau.’ E foi quando o nosso trem saiu dos trilhos. Tudo na gente desabou, tudo o que a gente podia ter juntos, ruiu. Começamos a brigar. E teve um dia que eu acordei, e ele não estava mais do meu lado. O dia passou, então a noite, e mais um dia. Ele não voltou pra casa. Eu fiquei me sentindo uma viúva de novo. Star finalmente voltou, e agora estava na sala da minha casa, olhando pra mim enquanto eu balançava devagar na minha cadeira. Ele não tinha mudado em nada, os anos não passavam pra ele.

“Da última vez, sua desculpa foram seus filhos e o rancho. Qual será agora?”, ele perguntou com a voz vacilante. Eu não respondi. Fiquei pensando se abdicar valia a pena. Mais uma coisa ruim em ser velha: de vez em quando cê acaba pensando que a morte pode estar chegando perto. E não posso mentir, isso me fez considerar o que ele dizia.

“Quais são as regras mesmo?”, perguntei. A cadeira fazia um leve chiar quando balançava. Star respirou fundo antes de responder.

“Abdique da família e dos amigos, então poderei conjurar uma magia que lhe fará imortal. Os anos passarão e você vai continuar, posso fazê-la até mais jovem, se desejar. Poderá ir para lugares que nunca imaginou que existem, poderá fazer coisas inacreditáveis, poderá ser quem quiser, quando e onde quiser. Não será mais limitada pelo tempo ou pelo espaço. Viveremos juntos, para sempre. Você sempre minha. Eu sempre seu”, ele disse. Tinha algum tipo de encanto na voz que me fez tremer quando disse que seria sempre meu; foi tão apaixonado. Se foi magia ou não, eu não sei dizer.

“Eu acho que não poderia fugir com cê por aí... pega mal pr’uma senhora de família como eu, sabe?”, falei desinteressada. Muito mais pra irritar ele do que pra negar a proposta.

“Smith, não se faça de idiota!”, ele disse levantando a voz. Logo se arrependeu e falou mais baixo e tristemente, “Eu amo você.”

“Cê me deixou, lembra?”, repliquei.

“O que você queria que eu fizesse? Vivesse com você todos esses anos até chegar o dia em que você ia dormir numa noite e não acordar no dia seguinte? Era isso que você queria?”, ele perguntou com a voz sofrida. Aquilo me pegou de surpresa, eu não queria ceder, mas sabia exatamente do que ele estava falando, e isso me doeu um bocado. Mas eu não desisti.

“Eu queria que cê tivesse vivido comigo todos os anos maravilhosos que eu pensei que a gente ia ter juntos! Queria passar pelos tempos bons e ruins do seu lado. Queria que cê tivesse me ajudado a criar meus filhotes, se cê num tivesse me deixado, talvez eles ainda...” Não consegui mais falar. Foi como se uma mágoa muito grande tivesse ficado entalada na minha goela e me impedisse de dizer qualquer coisa. Eu tentei, mas não pude colocar uma culpa do destino em cima dele. Star ficou me olhando amargurado. Ele se aproximou de mim. Com um casco, fez um afago no meu rosto que foi da testa até a minha bochecha direita. Eu estremeci com o toque, era cheio de carinho, era sincero. Me senti um pouco reconfortada. Olhei pro rosto dele em busca de algo, não sei ao certo o quê.

“O passado se foi. Viva o seu presente, Smith”, ele disse calmamente. E apesar de não ter soado ofensivo, eu ainda senti uma pontada doída no coração. Existem feridas que o tempo não cura.

Suspirei.

“Eu posso fazer tudo isso passar. Se você me der uma chance, vou fazer de você a égua mais feliz que existe”, Star prometeu. E eu acreditei em cada palavra dele. Como não acreditar? Eu gostava dele, apesar de tudo. Não sabia o que dizer pra ele, continuei calada. Virei minha cabeça para a direção oposta a dele e fiquei encarando o vazio. Minha cabeça estava tão bagunçada.

“Viver pra sempre? Ser feliz pra sempre? Pra sempre é muito tempo...”, sussurrei insegura. Star se afastou de mim de repente, foi na direção da porta. Meu coração ficou apertado no peito quando percebi que ele estava indo embora de novo. Quase gritei pra ele parar. Me segurei com muito esforço, mas não pude deixar de apontar um casco na direção dele, como se quisesse puxar ele de volta pra perto de mim. Quando alcançou a porta, parou. Ficou ali, como se estivesse congelado por um tempo. Balançou a cabeça, se virou de novo na minha direção. Olhou pra sala. Trotou de volta, foi até um dos cantos do recinto. Eu não tinha reparado, mas lá na parede estava apoiado o cajado dele. Uma haste de madeira com uma grande pedra reluzente e azul na ponta. Nunca soube como ele carregava aquilo, às vezes simplesmente aparecia quando ele precisava. Star tocou no cajado e o instrumento sumiu no ar, como se nunca tivesse estado ali. Ele olhou mais uma vez pra mim, suspirou longamente, se virou de novo na direção da porta. Trotou mais uma vez até ela. Dessa vez encostou um casco na maçaneta.

“Você não entende o que eu estou oferecendo”, ele disse de repente, e soou mais como uma pergunta. Eu balancei a cabeça, negando. “Eu não posso sair daqui sem uma resposta concreta. Vou ter de mostrar a você”, ele completou, se virando mais uma vez pra mim. Fez um sinal com o casco pra que eu o seguisse, e saiu pela porta da frente. Fiquei onde estava, me perguntando se ia ou não. Levantei o traseiro da cadeira e fui atrás dele. Star estava a alguns metros da casa me esperando. Fez de novo o sinal pra que eu fosse até lá. Trotei na direção dele, o cajado que tinha sumido, agora estava do lado dele, a joia na ponta brilhava. Quando o meu primeiro casco encostou na grama, o chão todo em volta dele tremulou como se fosse água, o céu mudou de cor, passou de azul pra rosa, e então pra laranja, as nuvens se afastavam e davam lugar pras estrelas, e em seguida as estrelas sumiam e davam lugar de novo pras nuvens; eu não sabia mais se era dia ou noite, tudo já não era mais nem claro nem escuro. A grama debaixo de mim virou água, depois se transformou de novo, dessa vez em areia, e continuou mudando, mármore, madeira, metal, terra batida. Por um instante, tudo parou. Eu só via Star ao longe. “Pode vir, não tenha medo!” ele gritou pra mim. Dei mais um passo. E tudo ao meu redor agora era uma cidade muito movimentada. Outro passo. Um vale estreito entre montanhas. Mais um passo. Um bosque com grandes castanheiras. Entre as minhas passadas, tudo mudava e virava algo diferente. Lugares maravilhosos, de encher os olhos de brilho. Alguns cantos não tinham alma viva, outros eram cheios de pôneis que eu nunca tinha visto. A única coisa que permanecia no lugar era Star, que ficava me olhando com um leve sorriso satisfeito no rosto. Eu devia estar fazendo cara de idiota com tudo aquilo pra ele sorrir daquela forma. O tempo também estava estranho, às vezes eu via as coisas muito rapidamente, às vezes elas pareciam demorar uma eternidade. “Passados, futuros, presentes. Esse universo, aquele universo. Poderíamos conhecer cada um deles.” Eu ouvi a voz de Star sussurrar no meu ouvido. Um frio subiu pela minha espinha. Ele ainda estava no mesmo lugar. Fique sem saber como reagir, aquele show todo me impressionou e me assustou em igual tamanho. E a voz... aquele filho da mãe, ouvir ele falar de novo daquela forma perto do meu ouvido deixou minhas pernas fracas, quer dizer, mais fracas, porque quando se é velha, suas pernas ficam sempre assim. Senti meu rosto corar. Quando percebi que o sorriso dele tinha aumentado, corei ainda mais. Velho safado, não importava o quanto eu andasse, parecia que nunca ia chegar onde ele estava. Quando eu alcançasse ele, ia tirar aquele sorriso idiota daquela cara enrugada e... trombei no peito de Star. Meu rosto encostado nos pelos dele. Respirei devagar, senti o cheiro dele, tão familiar mesmo depois de tanto tempo.

“Cuidado”, ele sussurrou gentilmente. Passou um casco pela minha cabeça, fazendo um cafuné que bagunçava a minha crina e ameaçava desprender os meus cabelos.

“Para com isso”, protestei sem jeito.

“Por quê?”

“Porque sim, oras! Tô dizendo pra parar”, insisti. Não queria que ele mexesse muito na minha crina, meu cabelo já era ralo em algumas partes, e quebradiço em outras, ficava muito feio quando não estava preso.

“Bobagem”, ele respondeu com um sorriso no rosto. Soltou minha crina, quando ela caiu, tive uma surpresa. Os cabelos que caiam próximos do meu rosto não eram mais brancos nem quebradiços. Com o canto do olho eu percebi fios loiros. E não apenas fios loiros, como também estavam trançados da forma que eu usava quando era mais nova. Olhei pro Star, meu queixo caído. Senti um puxão no meu rabo. Quando olhei pra trás, minha cauda também estava loira e trançada; mas o que mais me impressionou foi olhar pro meu corpo, minhas ancas estavam no lugar certinho, o flanco durinho e redondo. Eu estava mais magra! Eu estava tão surpresa que demorei pra perceber que as minhas costas já não doíam mais, nem meus joelhos. Quando olhei pra frente de novo, Star não estava mais lá, no lugar dele tinha agora um grande espelho circular que flutuava. Star estava agora do meu lado. Fiquei nos olhando no espelho de boca aberta. Em segundos eu tinha rejuvenescido uns bons cinquenta anos! Quase não me reconhecia. Via uma eu de tanto tempo atrás que parecia mais estar vendo um retrato, ao invés do meu reflexo. Meu rosto estava mais vivo, aqueles malditos pés de galinha tinham sumido da minha cara. Eu sorri. Sorri como não fazia há tempos, todos os meus dentes estavam lá; perfeitinhos. Eu não era mais uma velha. Meu sorriso se transformou num riso de felicidade. Até o som da minha voz parecia mais jovem. Star ficava só me encarando pelo reflexo do espelho. Nada nele tinha mudado. Então, uma lufada de vento fez minhas tranças balançarem fortemente. O espelho sumiu. Nós estávamos numa praia. O sol estava se pondo lentamente no horizonte, o céu limpo tinha uma coloração alaranjada, o mar era cristalino e as ondas iam e vinham, cheias de espuma, calmamente pra margem. A areia fofa embaixo dos meus cascos se estendia por quilômetros pro norte e pro sul. Do lado oposto do mar, passando a areia e subindo um barranco, tinha uma mata fechada que acompanhava o litoral. Não reconhecia o lugar, mas era bonito. Uma vontade estranha de me mover tomou conta de mim. Não consegui me segurar, galopei deixando Star pra trás. Não era tão rápida assim há muito tempo, eu já tinha esquecido como era bom galopar e sentir o vento forte no rosto. Já tinha esquecido como era não ser um saco de rugas e dores ambulante. Me senti livre, sentia que podia galopar pra sempre e nunca me cansar, a areia levantava com as minhas passadas. Ser jovem de novo era uma das melhores coisas que já tinham me acontecido. Galopei, pulei, girei, ziguezagueei, saltitei; meu corpo não me limitava mais da forma que fazia por anos. Vez ou outra, Star aparecia do meu lado, mas logo eu deixava ele pra trás de novo. “Posso oferecer tudo isso, e muito mais, Smith”, ouvi a voz dele sussurrar perto da minha orelha de novo. Me fez tremer. “Você só precisa escolher...”, ele disse.

Parei de galopar. Escolher, pensei, escolher entre Star e tudo o que ele pode oferecer, ou minha família.

Star surgiu do meu lado, trotou calmamente, passando por mim, parou na minha frente e ficou esperando uma resposta. Os olhos azuis ansiosos. E como eram bonitos aqueles olhos.

“Star, cê sabe que não posso...”, as palavras ficaram presas na minha garganta. Eu queria tanto poder escolher ele. A juventude que ele tinha me devolvido gritava na minha cabeça pra que eu esquecesse tudo e partisse com ele por aí.

“Seus netos? Smith... eles já estão grandes”, ele afirmou.

“Apple Bloom ainda é uma potrinha sem Marca”, retruquei indignada.

“Mas Applejack e Big McIntosh vão cuidar dela muito bem. Você sabe disso”, ele insistiu, se aproximou um pouco de mim, o rosto dele parecia preocupado e triste. Encostou o focinho no meu, senti meu rosto corar. “Eu me arrependo tanto de ter ido embora. Fui um idiota, eu sei. Mas amo você, Smith. Quero ficar com você para sempre.”

Pra sempre. Ele usava essas palavras como se fossem coisas muito simples, como se o sempre fosse algo natural. Star via o mundo de uma forma diferente, só dele. E queria partilhar isso comigo.

“Fique comigo, Smith, seremos felizes p...” Usei um casco para calar a boca dele antes que pudesse repetir mais uma vez aquelas palavras, já estava cansada delas. Ele me lançou um olhar magoado. E beijei Star em seguida. Um beijo que eu jamais esqueceria. E que torcia pra que ele também não esquecesse.

“Para de ficar pensando no futuro. Viva o seu presente”, eu disse. Levantei uma sobrancelha enquanto encarava ele. Star era um garanhão esperto, entendeu a mensagem. Mais uma coisa boa em ser jovem de novo: eu era capaz de seduzir. O mais interessante: aquele velho safado era bem mais vigoroso do que aparentava. E sabia impressionar. Deitamos na areia; rolamos em cima de almofadas de cetim num quarto de castelo; nos beijamos no topo de uma montanha; nos amamos numa nuvem; sentimos prazer num campo florido. Ele sabia mesmo impressionar.

Por fim, ficamos deitados lado-a-lado entre flores fluorescentes que eu nunca tinha visto, pareciam tulipas, mas as pétalas tinham um leve brilho que variava entre muitos tons de verde. Estrelas cadentes riscavam o céu noturno a todo momento. Eu ficava quieta, tentando absorver tudo aquilo, pra nunca esquecer. O cheiro doce das plantas noturnas se misturava com o do nosso suor. Uma brisa leve passava pela minha crina.

“Então é isso?”, Star rompeu o silêncio. Ele estava apreensivo.

“Talvez... por que não fica comigo no rancho?”

“Não aguentaria vê-la... partir”, ele explicou.

“Então eu acho que é isso. Eu não posso abandonar minha família, mesmo que vivesse pra sempre, sem eles eu acabaria sendo triste pra sempre. Star... entenda uma coisa, cada segundo mortal com eles vale muito mais que toda uma eternidade contigo. Eu te amo, mas meus netos são o que eu tenho de mais importante na vida. Ainda quero ver Apple Bloom ganhar a Marca dela, e quero ver o Big Mac se casar algum dia. O mesmo vale pra Applejack. Quero ver meus bisnetos!”

“Já pensou que talvez você não chegue a ver nenhuma dessas coisas?” Foi estranho, ele realmente estava querendo discutir sobre a minha morte.

“Pelo menos eu vou tentar ver essas coisas. Me desculpe”, disse num suspiro.

“Não peça desculpa. Eu sei que estou pedindo muito”, ele falou, parecia conformado, mas deprimido. Ficamos em silêncio por mais algum tempo, faria aquele momento durar o quanto pudesse. Passamos tanto tempo deitados ali na relva. Finalmente, ele disse que estava na hora de parar com tudo aquilo. Concordei.

“Eu não vou esquecer você”, ele disse pra mim. E me beijou mais uma vez. Foi quando tudo ficou estranho, todo aquele mundo foi se desfazendo ao meu redor enquanto nos beijávamos. Num segundo, eu olhava os olhos azuis mais bonitos que já tinha visto na vida, no segundo seguinte, os olhos alaranjados de Apple Bloom estavam me encarando de volta. Tomei um susto e quase caí pra trás com a cadeira de balanço.

“Vovó! Tá tudo bem? A senhora dormiu aí o dia todo?!”, ela disse pasma. Olhei pela janela, já era final da tarde. “Não vai ter jantar quando Bic Mac e AJ chegarem!”

“Oh, diacho! Me ajuda a colocar as panelas no fogão, Apple Bloom!”, eu disse, minha voz estava diferente. Quando saí da cadeira, percebi: eu tinha de novo as dores nas costas e nos joelhos, meus cabelos eram brancos, senti a falta de uns dentes na boca, enfim, era velha de novo. Eu ia ficar as próximas semanas me perguntando se aquilo tudo tinha sido só um sonho. Mas, fosse ou não um sonho, eu tinha feito uma escolha, e renunciado uma juventude eterna. E durante o jantar daquela noite, vendo meus netos comerem e conversarem sobre as grandes e pequenas aventuras que tinham vivido durante o dia, eu só pude me convencer de que fiz a escolha certa. Eu não trocaria eles por nada, nem mesmo por tudo aquilo que o velho feiticeiro podia oferecer.

Uma coisa boa em ser velha: cê sabe dar valor às coisas que têm valor de verdade...

FIM


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