Ainda bastante atordoado pela carta que acabara de ler, Severus se retirou discreta e educadamente da mesa de café da manhã. Um bom gole de firewhisky era do que ele precisava, certamente. Sentado em uma poltrona, com o copo da bebida na mão direita e a carta na esquerda, releu-a incontáveis vezes. E em cada uma delas aquilo parecia ainda mais surreal.

Que Potter quisesse saber de seu estado de saúde era bem típico dele; o garoto jamais deixaria qualquer um que lhe tivesse ajudado sem reconhecimento e assistência. Mas disso a estabelecer algum tipo de relação próxima com Severus havia uma distância consideravelmente grande. E Harry parecia muito disposto a atravessá-la.

Quase uma hora depois, nenhuma resposta para a carta havia sido formulada e era mais que um bom momento para se levantar e começar a trabalhar. O borbulhar das poções no caldeirão acalmaria sua mente, ele tinha certeza.

Antes, porém, teria de passar na Ala Hospitalar; Mme. Pomfrey lhe daria a lista de poções a serem feitas. Com um curso de ação definido, o mestre de Poções finalmente se levantou, mas, antes mesmo de atravessar metade do aposento, ouviu duas batidas apressadas na porta. Era a curandeira, que, prática como sempre, insinuou-se para dentro da sala de estar de Severus assim que a porta foi aberta.

– Severus, meu caro, bom dia!

– Mme. Pomfrey, bom dia. - disse, enquanto oferecia passagem à mulher. - Visita fortuita esta; ia agora mesmo procurá-la.

– Oh, bem, decidi vir porque estou com alguma pressa, entende? As aulas logo começarão e essas poções precisam estar prontas até lá. Há muito que ser reposto no estoque da escola - e, com um sorriso divertido, acrescentou - ainda mais se tivermos mais algum aluno que se meta em tantos acidentes quanto Harry Potter!

Severus foi obrigado a concordar. Potter provavelmente batera todos os recordes de acidentes - provocados, sofridos e presenciados - existentes em Hogwarts. Era admirável que ele estivesse ileso tantos meses após a Guerra e, aparentemente, bem o suficiente para distribuir seu altruísmo e preocupação grifinórios para quem estivesse ao alcance.

– Eu não creio em um raio que caia duas vezes no mesmo lugar, madame. Entretanto, - e sorriu, apanhando a lista que ela lhe estendia, - é melhor prevenir. As poções estarão prontas até o fim da semana, não se preocupe.

– Muito bem, muito bem! Obrigada novamente. - respondeu a mulher, satisfeita.

– Não há de quê, Mme. Pomfray. Este é o meu trabalho; costumo executá-lo bem. - retrucou Severus, com uma reverência solícita. Mais que seu trabalho, preparar, estudar e lecionar sobre poções eram, na verdade, um de seus poucos prazeres; de modo algum seria algo a ser deixado de lado ou a ser feito de modo relaxado por ele.

– Oh, é claro! Bem, falando em trabalho, é hora de voltar ao meu. Até a vista, Severus! - Súbita como aparecera, a mulher saiu, e a resposta de Severus se perdeu no ar.

Pensando que Mme. Pomfrey talvez tivesse dado a ele o gancho de que precisava para responder à carta de Potter, o mestre de Poções voltou toda a sua concentração para o trabalho que tinha de realizar.

~x~

A carta a ser enviada a Potter estava ali, no limiar da mente de Severus, mas, no fim daquele dia, nada fora colocado no papel, nem no outro e tampouco no seguinte. Na verdade, no sábado à noite, quase uma semana depois da visita de Mme. Pomfrey, ele ainda não a havia escrito. Não era falta de vontade, não era medo; ele só não estava pronto.

A vida do “Menino de Ouro” era outra agora, certamente. O garoto devia ter alguma espécie de relacionamento amoroso com a caçula dos Weasley e Severus se sentia muito pouco à vontade com a possibilidade de ficar no meio do fogo cruzado do afeto alheio, ele era um intruso na vida das duas famílias, afinal de contas. Ademais, responder àquela carta significava estender ao filho e, por assim dizer, sucessor de seu maior e mais notório desafeto a oportunidade franca e aberta de uma amizade. E uma amizade com o filho de James Potter, ainda mais um tão igual a ele, era algo de que Severus sentia forte receio. Como, em um milhão de anos, aquilo poderia dar certo?

Não poderia. Essa era a conclusão de Severus. Aquilo - uma amizade com Potter - nunca seria o tipo de relacionamento que funcionaria. Entretanto, alguns meses antes, a alma insana capaz de dizer que ele sobreviveria a um ataque da cobra de Voldemort, à Guerra e ainda seria aclamado herói, receberia dele um solene, enfático e nada amistoso silêncio como resposta. Havia, é claro, a possibilidade de que carta do garoto significasse nada além de mera cortesia, mas a vida provara ao bravo sonserino que mesmo a maior das impossibilidades tinha alguma chance de acontecer.

Com esse pensamento, ele se sentou em sua escrivaninha, tomou papel e tinta, e se pôs a escrever.

“Sr. Potter,

Aprecio e me sinto grato por sua preocupação. Confirmando suas expectativas, estou sendo muitíssimo bem cuidado aqui, e estou quase plenamente recuperado; apenas algumas poções curativas ainda são administradas para que não exista risco de algum reflexo do veneno em minha saúde. Portanto, por ora, declino sua generosa oferta de ajuda.

Receber uma carta sua foi bastante surpreendente, de fato. Todavia, acredito que somos adultos o suficiente para lidarmos um com outro de forma civilizada e cortês.

Não me importo com o uso de meu primeiro nome, mas, por favor, não se incomode por eu não fazer o mesmo; é uma dose de civilidade um pouco alta demais para mim dado o nosso histórico, você há de concordar.

Atenciosamente,

Severus Prince Snape.”