Saia do Casulo! escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 2
Por Trás do Véu de Sangue


Notas iniciais do capítulo

Todos os nomes de ruas, bairros, rodovias e cidadezinhas da Inglaterra usados nesta fic, assim como suas respectivas localizações, são reais e não imaginários.
Esta fic é sobre duas criaturas solitárias - uma, humana, e a outra, inumana - que se esbarram pela vida, sem terem praticamente nada em comum além da própria solidão. No mais, o que tiver de ser, será.



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"Tal uma estrela, a vida paira entre dois mundos

Entrelaçando noite e manhã sobre a linha do horizonte.

O quão pouco sabemos sobre o que somos!

E menos ainda sobre o que podemos ser!"

Lord Byron - Don Juan

Hospital de St. Mary, Paddington, Londres.

- Como está ela, Dr. Saunders? - perguntou Abraham Souzanitzky, sério, de braços cruzados. Seus olhos cor de caramelo, por detrás das lentes dos seus óculos, encaravam o  médico de meia-idade e cabelos cor de aço, trajado de jaleco branco, que estivera cuidando da jovem misteriosa desde as primeiras horas da madrugada.

- Professor Souzanitzky, essa sua amiga, acerca de quem, aliás, o senhor é tão reticente, sofre de um tipo de anemia profunda, mas tem a resistência de um atleta olímpico no auge da forma - esclareceu o Dr. Saunders, um sorriso torcendo os lábios finos. - Ela recebeu três bolsas de sangue tipo O e duas de plasma, e, apesar de ainda estar um pouco fragilizada, passa bem. Para dizer a verdade, a mocinha está dando trabalho à Drª Webb e aos enfermeiros de plantão, pois insiste em querer ir embora do hospital, mesmo sem alta. Eu nunca vi nada igual... Se bem que há casos de meninas talassêmicas que são campeãs de natação, a despeito da doença, e de rapazes anêmicos que são, igualmente, bons atletas.

- Então ela está consciente?

- Se está consciente? - Dr. Saunders deu uma gargalhadinha, tirou os enormes óculos de armação de chifre, observando-os e depois os colocou no nariz. - A primeira coisa que ela fez ao recuperar a consciência foi agarrar o meu pescoço com uma das mãos e começar a me sufocar. - Ele massageou o pescoço dolorido. - Santo Deus, que força tem a pequenina!

- Peço mil perdões pelo incidente, doutor. Minha amiga é estrangeira, ela veio a este país por causa dos Jogos Olímpicos e asilou-se, e hoje passou um mau pedaço com um serial killer, em pleno coração de Londres. É óbvio que inda se sente traumatizada com esse episódio.

O Dr. Saunders fez um gesto apaziguador com a mão. - A reação dela é perfeitamente compreensível, dadas as circunstâncias. E também a julgar pelos resíduos abundantes de sangue do agressor na roupa e no rosto da moça, o desgraçado deve ter levado a pior.

- Sim, ela tem a força e a resistência do lobo solitário - disse Abraham com ar distante. Ainda guardava viva, nítida, a recordação da luta feroz da garota contra as horrendas criaturas semelhantes a morcegos gigantes humanoides. - Doutor, eu posso vê-la? Posso falar com ela?

- Mas é claro, professor. Por favor, venha comigo.

******

Ela sentava-se num leito de quarto particular, trajando apenas um pijama de hospital, com os joelhos encostados ao peito e com os braços em volta deles. O rosto de menina exibia uma expressão estranhamente calma, porém os seus bonitos olhos castanhos cor de mogno perdiam-se para lá das paredes pintadas de branco do aposento. Já tinha passado pouco mais de uma hora desde a sua última transfusão de sangue, que havia durado quatro horas. Sentia-se tão fraca, conseguira abater dois peões naquela madrugada, mas a falta de sangue fresco a fizera desfalecer logo em seguida. Já não bastava correr para um banco de sangue, ou fazer transfusões, ou mesmo, recorrer ao açougue; ela precisava beber sangue fresco e quente, morder alguém, caso quisesse enfrentar e vencer um chiropteran do séquito de chevaliers a  serviço da outra rainha, e não um reles peão. E não apenas sugar o sangue de animais tal como fazia em caso de necessidade. Não, era imperativo morder e sugar o sangue de um homem, um ser humano.

Sentiu-se corar de vergonha só de pensar em fazer semelhante coisa. Embora fosse uma chiropteran - uma predadora nata - com desejo de sangue, ainda assim fora criada como humana e recebera uma educação dita civilizada, ao passo que a outra...

Nesse instante a porta do quarto se abriu e um homem magro usando um terno de tweed cinzento, chapéu de feltro preto na mão, apareceu no umbral. Seus fartos cabelos cabelos castanho-claros encaracolados emolduravam o rosto longo e pálido, de traços semíticos e grandes olhos castanhos, cor de caramelo, por trás dos óculos de metal. Aquele civil!

Tratava-se de Abraham Souzanitzky. Entrou e fechou a porta atrás de si. Por alguns segundos incalculáveis ele ficou ali parado, contemplando a bela jovem de feições orientais sentada na cama e que aparentava ter uns dezesseis anos, não mais. E os olhos dela colidiram com os dele - castanho contra castanho - , e se afastaram rapidamente. O rosto alvo de maçãs salientes, em forma de coração, com queixo pontudo e nariz curto e reto, levemente arrebitado, estava completamente limpo, sem quaisquer vestígios de sangue; e a boca pequena de lábios cheios e macios tinha uma tonalidade róseo-pálida (Abraham lembrou-se de que o chamejante pigmento labial de antes desaparecera ao mesmo tempo que o brilho avermelhado dos olhos).

Pensou, estupefato: "Shemá Israel! Como pode uma menina tão linda e delicada ser aquela matadora fria, rápida, desumana e perigosamente cruel que me salvou?"

Ele não sabia como dirigir a palavra a ela. Não tinha lá grande experiência no trato com as mulheres - tanto assim que permanecia solteiro e morava com a mãe - e menos ainda com uma mulher como aquela, que percorria as ruas nas horas mortas da madrugada, matando monstros com uma espada japonesa embebida com o próprio sangue. Enfim, pigarreou e, curvando os lábios bem feitos no que pretendia que fosse seu melhor sorriso, cumprimentou-a respeitosamente:

- Muito bom dia, senhorita. Folgo em saber que se recuperou extraordinariamente bem. Estive conversando com o Dr. Saunders, que é um velho amigo meu, e ele concordou em dar-lhe alta hoje mesmo, nas próximas horas, se eu me responsabilizar pelos cuidados de que precisará.

Ela fitou-o com seus orbes amendoados, cor de chocolate, sem expressão alguma.

Ele puxou uma cadeira e sentou-se perto da cama. Então abaixou a voz em um tom conspiratório. - Naturalmente que tive de mentir e dizer que éramos amigos. A senhorita não faz ideia da lorota que inventei para justificar as condições em que se achava quando a trouxe para o hospital. - Abraham piscou um olho para a moça, que o ignorou.

Mas ele prosseguiu, como se estivesse conversando com ela. - Bem, creio que ainda não fomos apresentados, senhorita. Meu nome é Abraham Souzanitzky. O nome soa esquisito porque meus ancestrais foram judeus "marranos" portugueses forçados ao exílio nos países eslavos para escapar à Inquisição. Daí o "Souza" de Souzanitzky. Sou professor catedrático de Geociências no King's College, Universidade de Londres. Nas horas vagas escrevo e publico contos fantásticos e de science-fiction que muito pouca gente lê. - Fez uma pausa e acrescentou com a voz afável: - Perdoe a minha ousadia, mas ainda não sei o seu nome, senhorita... Senhorita...?

Nenhuma resposta. Abraham se levantou contrariado e começou a andar pelo quarto. Quando ele menos esperava, ela respondeu laconicamente:

- Otonashi. Otonashi Saya.

"Tem uma voz de garotinha", pensou Abraham, sentindo-se tomado de súbita simpatia pela menina de cabelos negros e curtos. Todavia, ele vira o lado escuro de sua natureza, e sabia que um véu indelével a separava dele e dos demais membros da espécie humana.

- Saya Otonashi - disse ele, num murmúrio, saboreando o nome dela pela primeira vez. Sendo geógrafo, logicamente que conhecia a tradição chinesa, japonesa e de outros povos do Extremo Oriente, de colocar o sobrenome antes do nome. - Sabe, senhorita, até que este nome lhe cai bem. Otonashi, em japonês, significa "quieto", "silencioso". Saya, por seu turno, é a bainha sem fundo usada secretamente para camuflar qualquer arma branca portada pelos ninjas. Mais que uma simples bainha de espada, ela é um artifício para disfarçar o ninja fugitivo ou infiltrado entre as fileiras inimigas. - Enquanto falava no tom professoral que lhe era próprio, via as cruentas cenas de morticínio de horas atrás, protagonizadas pela garota ora à sua frente; uma caçadora silenciosa cuja aparência de adolescente atlética e bonita escondia uma arma letal. - Sim, Miss Otonashi, quem a batizou certamente escolheu um nome adequado.

Saya Otonashi continuava impassível, o olhar distante e triste. Abraham bateu de leve na testa com a palma da mão e recolocou seu melhor sorriso torto. - Ah, me perdoe, Miss Otonashi. Eu nem cheguei a lhe agradecer por salvar a minha vida. Sou-lhe muitíssimo grato...

- Não precisa - ela replicou em tom suave, mas firme. - É o meu trabalho.

Os pés finos e delicados de Saya pisaram o chão e ela se levantou devagar. - Onde estão minhas roupas? - indagou. - E minha katana?

- Suas roupas estavam sujas de sangue, e, como o hospital não fornece serviço de lavagem de roupas pessoais aos pacientes, levei tudo para a lavanderia mais próxima. Não se preocupe, ser-lhe-ão devolvidas quando receber alta. Quanto ao seu... instrumento de trabalho, está guardado no porta-malas do meu carro. Afinal, não nos permitiriam entrar no hospital portando aquilo. Mudando de assunto, quer que lhe traga comida? Ou não tem preconceito contra a famigerada "comida de hospital"? - Ele deu uma pequena risadinha, como se contasse uma piada sem graça, tentando espantar o nervosismo ou desanuviar o ambiente.

- O senhor não precisa se importar comigo - foi a resposta lacônica que obteve.

- Bem, nesse caso há alguém que deva ser avisado do ocorrido? Amigos, família?

- Não tenho amigos - respondeu Saya sem encará-lo. Afastou da fronte a franja que lhe caía sobre os olhos e acrescentou, com a voz um pouco mais expressiva: - Meu pai está morto, minha mãe também. - E após uma curta pausa, como se ponderasse algo, disse, com os dentes cerrados: - Minha irmã... Ela sumiu há muitos anos.

- Não tem ninguém? Mais uma razão para me preocupar com você, senhorita. - Abraham, vencendo a grande timidez que se apoderara dela, tomou entre as suas as mãos de Saya, que eram pequenas e frias. - Se não tiver onde ficar, eu posso hospedá-la na minha casa. Afinal, agora sou responsável pela senhorita. Sendo assim, por favor, não saia sozinha, Miss Otonashi. Eu volto para lhe buscar dentro de cinco horas. - Ele beijou ternamente as mãos dela.

Os orbes castanho-avermelhados de Saya se arregalaram e suas pupilas se dilataram. Um rubor vivo percorreu-lhe as faces. Por um breve instante incomensurável, um tempo fora do tempo, os olhares dos dois seres tão desiguais pareceram fundir-se num só, e as mãos de ambos, congraçar-se como um par de ramos entrelaçados de uma mesma Árvore da Vida.

- Pardon - disse Abraham, desculpando-se por sua audácia. Saya olhou para o geógrafo com a expressão de alguém que acaba de despertar de um sonho. Suas mãos soltaram-se.

- Eu sei que é um pouco tarde, porém mesmo assim vou pedir para uma enfermeira lhe trazer um café da manhã reforçado - Abraham falou apressadamente, relanceando a vista para o relógio em seu pulso. Apanhou o chapéu sobre a cadeira e se dispôs a sair do quarto. - Desejo-lhe um bom dia, Miss Otonashi.

A voz de Saya o deteve. - Professor... Mr. Souzanitzky.

Novamente os dois pares de olhos fitaram-se - castanho contra castanho - e Abraham sentiu o ritmo das pulsações acelerar quando aqueles escuros orbes cor de chocolate fixaram-se nele, com seu olhar terno e frio ao mesmo tempo.

- Eu também não lhe agradeci ainda - ela disse sem se alterar. - Obrigada por tudo.

Abraham fez um rápido aceno de cabeça e limitou-se a responder:

- Eu tão somente faço o que minha consciência manda.

De repente, ele recordou-se de algo e colocou a mão no bolso do paletó. Pegou uma fotografia amarelada pelo tempo e entregou-a a Saya, cujos olhos arregalaram-se ligeiramente.

- Esta foto lhe pertence - disse ele. - Estava no bolso da sua capa roxa.

A foto mostrava o que parecia ser um jovem casal - uma mocinha e um rapaz mais velho e alto, ambos muito elegantes em trajes europeus do fim do século XIX ou começo do XX. Não passara desapercebido a Abraham o fato de que a moçoila da foto apresentava extraordinária semelhança fisionômica com Saya, a tal ponto que, se esta usasse os cabelos longos e se vestisse como uma dama da Belle Époque, seria virtualmente indistinguível daquela.

- É uma foto bastante antiga - comentou o cientista. - Por sinal, a senhorita se parece muito com a jovem dama do lado do mancebo. Ela era sua avó? Sua bisavó?

Saya não respondeu, limitando-se a pegar a foto e depositá-la sobre o criado-mudo. Em seus oculares castanhos, meio oblíquos e misteriosos, havia uma expressão de imensa tristeza. Como se aquela fotografia velha e já amarelada suscitasse dor e tristes recordações à bela jovem.

- Se fui inconveniente, me desculpe - escusou-se Abraham. - Lamento muito.

Saya suspirou. - Professor, o senhor deve se afastar de mim. Para seu próprio bem.

Abraham engoliu em seco. Contudo, o que ele tinha de tímido tinha de teimoso.

- Por que, Miss Otonashi? Há uma galáxia de perguntas que eu gostaria de lhe fazer, sabe, e gostaria de aprender mais acerca daquelas criaturas que pareciam morcegos humanoides...

- Os chiropterans - completou Saya friamente.

- É assim que são chamados, chiropterans? Derivado do nome "quirópteros"? Pois bem, quero aprender tudo que houver para aprender sobre esses chiropterans. Eu pude notar que eles tinham medo de você, senhorita. Tem a ver com o seu sangue, não tem, Miss Otonashi? Me diga, por favor, que tipo de relação existe entre chiropterans e Saya Otonashi?

O olhar dela era cortante quando o mirou. - Acredite-me, professor, quanto menos o senhor souber sobre mim e sobre os chiropterans, tanto mais seguro estará.

Abraham franziu a testa. "Ela está tentando me proteger?" Resolveu mudar a estratégia e não insistir na discussão. Com um sorriso cândido que pareceu desconcertá-la, disse:

- Senhorita, eu adoraria continuar nossa conversa, mas o tempo urge. Volto em algumas horas com todos os seus pertences, por isso não tente evadir-se do hospital. Fique tranquila que seu segredo está a salvo comigo. Dou-lhe minha palavra de judeu.

- Não irei a parte alguma sem minhas roupas e minha espada - falou Saya comprimindo os lábios.

- Então, mais uma vez, bom dia!

Saya suspirou novamente. - Um bom dia para o senhor também!

******

Durante todo o dia, Abraham Souzanitzky não conseguiu deixar de pensar na bela e misteriosa Saya Otonashi, bem como nas criaturas vampiras que ela chamava de chiropterans. Estivera sentado em seu gabinete de estudos no King's College, debruçando-se sobre tratados de paleontologia, zoologia, anatomia comparada, histologia, embriologia e genética, além de alguns livros de criptozoologia, tais como o execrável e herético - pelos critérios da ciência ortodoxa - The Book of the Damned, do polêmico Charles Fort, e o insuspeito The Golden Bough, do respeitável folclorista e acadêmico Sir James Frazer; e os trabalhos pioneiros de Freidrich Krauss sobre o vampirismo. Pois o Professor Souzanitzky gostava de se considerar, mais que um mero cientista cartesiano (como muitos de seus colegas), um espírito buscador da verdade, a cavaleiro entre a ciência física e a metafísica. E seus pensamentos gravitavam em torno de uma pergunta que lhe martelava impiedosamente a alma assim como a mente: o que Saya REALMENTE é?

Implícita, outra pergunta excitava a imaginação de Souzanitzky: que obscuro liame de sangue une a caçadora Saya aos chiropterans caçados e mortos por ela?

Ele voltara de carro à Hanover Square, ao local onde tudo começara, já em plena luz do dia, porém nada encontrara - nenhum vestígio sequer dos cadáveres petrificados dos vampiros quiropteroides mortos pela garota. Alguém se antecipara e, acobertado pela escuridão da madrugada, tratara de remover minunciosamente qualquer evidência material da existência de chiropterans. Uma pena, realmente. West e Hodgkins, do Departamento de Ciências Biológicas, adorariam examinar aquele sangue cristalizado no microscópio eletrônico.

Enquanto fazia uma pausa em sua pesquisa, para colocar talit e tefilin - respectivamente, o xale de orações e os filatérios usados pelos varões judeus na prece matutina dos dias úteis - , Abraham chegou a lamentar não ter tido a oportunidade de recolher amostras dos restos mortais cristalizados dos chiropterans destruídos por Saya. Tivera de abrir mão de fazê-lo, a fim de socorrer a rapariga soturna que então era uma completa desconhecida a seus olhos. E disso não se arrependia nem por um segundo. Fora uma questão de salvar uma vida humana, ou, como se diz no judaísmo, pikuach nefesh. De mais a mais, Abraham só estava vivo graças a ela, Saya.

Humana... Abraham sorriu mentalmente ao perceber com que ausência de pudor atribuíra à garota a condição de ser humano. Pois Saya Otonashi estava longe de ser apenas uma fêmea da espécie Homo sapiens, e ele tinha total consciência disso. Recordava-se de ter visto Saya cortar deliberadamente a palma da mão, para deixar o sangue escorrer na lâmina da espada, antes de entrar em combate. Em sua opinião, aquilo não podia tratar-se de um simples ritual guerreiro; devia haver algo no sangue dela capaz de matar os vampiros chamados chiropterans, provocando um processo super-hiperacelerado, fatal, de polimerização de sua hemoglobina, de cristalização das células de seus tecidos vivos. Ora, se chiropterans eram hematófagos, se o sangue humano fazia parte do seu menu, e se o sangue de Saya era para eles o mais mortal veneno... Acrescente-se a isso os olhos vermelhos brilhantes, força, resistência e agilidade sobre-humanas... Feridas que se curam num abrir e fechar de olhos... Então o quê?

Abraham retirou meticulosamente os tefilin e o talit, dobrou-os e guardou-os em uma bolsa de veludo que, por sua vez, foi para o fundo de uma grande gaveta de sua escrivaninha. Tirou a kipá (solidéu) de sua cabeça, e deixou-se cair na cadeira estofada. Sendo ele um brasileiro convertido e não um judeu nato, não considerava a prática da Torá como uma instituição tribal, ou nacional, mas como um instrumento de autoaperfeiçoamento, parte de um processo maior de evolução espiritual na árdua tarefa do autoconhecimento, de conexão com a "faísca divina" que vive em todo homem, e, por intermédio desta, com o TODO, o Infinito ou Ser impessoal que é a causa fundamental de tudo o que existe e de tudo o que acontece.

Nessa manhã, porém, Abraham Souzanitzky, cientista e místico, não lograra conectar-se.

Ele pensava nas teorias conspiratórias de seu amigo e irmão de fé, David Rose Mendes, que fariam a festa dos mais adoidados membros da Sociedade Fortiana. Mr. Mendes, de integral ascendência judaico-portuguesa, sefaradita, e, tal qual Souzanitzky, um pesquisador do insólito e estudioso místico cabalístico, afirmara que, segundo fontes fidedignas, durante a guerra, os japoneses e os nazis, pesquisando o DNA humano e animal, teriam feito experiências genéticas radicais para produzir vampiros artificiais!

- Ahnenerbe - resmungou Abraham. A Ahnenerbe fora uma organização estatal nazista, esotérica e pseudocientífica, que, entre outros crimes, realizara obscuras experiências "médicas" em prisioneiros de guerra, nos campos de concentração de Dachau e Natzweiler-Struthof.

Sempre segundo David R. Mendes, ou suas fontes, com o fim da guerra os soviéticos ter-se-iam apoderado do resultado dos experimentos nazistas, e quiçá aperfeiçoado, a fim de usá-los em sua confrontação ideológica com o Ocidente, a chamada "Guerra Fria". Abraham alisou pensativamente o rosto barbeado. Seriam os chiropterans o produto final de tais experiências "científicas" amorais dos nazistas alemães, ou mesmo, dos comunistas russos?

E quanto a Saya? Seria ela um tipo de meta-humano híbrido, manipulado geneticamente com o propósito específico de exterminar vampiros de laboratório? Nesse caso, quem estaria por trás de tudo? Quem teria dado sumiço nos cadáveres desmembrados dos dois chiropterans mortos por Saya? Estariam os militares norte-americanos envolvidos em tamanha conspiração? Uma floresta de pontos de interrogação crescia mais e mais, como cogumelos brotando de um solo rico em húmus. Mistério encoberto por um vasto véu em forma de névoa de sangue.

Não cessarei de investigar até alcançar a verdade.

Saya e chiropterans - dois lados de um enigma mortal. Em sua imaginação um tanto extravagante, Abraham Souzanitzky já se via como o "escolhido" para desvendar esse ominoso enigma. Suas ambições, entretanto, iam além de qualquer razão acadêmica, puramente científica. Ele almejava secretamente - por mais utópico ou irreal que parecesse - conquistar o coração da formidável jovem solitária que nem inteiramente humana era; queria ser capaz de rasgar o véu de sangue que segregava os dois, romper a carapaça de isolamento por ela construída ao redor de seu imo virginal, conquistar-lhe a confiança, a amizade, e, quiçá, um dia, o carinho e o amor. Utopia? Talvez não passassem de devaneios inconsequentes alimentados por um homem que, no fundo, e a seu modo, era tão solitário quanto a jovem mulher guerreira, com sua espada samurai. Por outro lado... Sua lembrança recuou ao instante dramático em que teve Saya em seus braços pela primeira vez, não a matadora de olhos carmesim, mas apenas uma mocinha desmaiada, indefesa como uma criança. E sob a garoa que caía do céu nublado, no escuro da madrugada, Abraham falara bem baixinho, quase sussurrando, como se a jovem inconsciente ainda pudesse ouvi-lo: "Não sei quem ou o que é você, moça, mas eu juro que vou protegê-la a todo custo. Palavra de judeu!" Talvez fosse imaginação sua, mas parecera-lhe ver a sombra de um sorriso fugaz a torcer ligeiramente aqueles lábios pequenos, já empalidecidos. Horas mais tarde, já no quarto do hospital, por três vezes seus olhos se encontraram, e, em cada uma delas, houvera um instante de reconhecimento. Ambos viram o mesmo olhar, a mesma invencível solidão. Simultaneamente, compartilharam a sensação de já terem sido companheiros num outro tempo e lugar, quem sabe, numa encarnação passada. E o fato de Saya ser sobre-humana - ou inumana - tão somente fortalecia a atração, o fascínio que Abraham - um misantropo - sentia por ela.

Eu me vi refletido em suas pupilas e você nas minhas.

Seria aquela a mulher há tanto procurada e jamais encontrada? Alma gêmea?

Não obstante, ele sabia perfeitamente quão longa e perigosa haveria de ser a jornada que separava seus sonhos secretos do mundo real. Desanimado, empurrou a pilha de livros que havia sobre a mesa. Resolveu fazer três respirações rítmicas, para equilibrar-se e meditar. De repente, Abraham percebeu que o primeiro passo rumo à longa travessia já fora dado. De um ou de outro modo, Otonashi-san agora fazia parte de seu destino. Se para bem ou para mal, só o tempo diria.

- Saya - ele murmurou, embevecido. E sorriu discretamente.


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Notas finais do capítulo

Talit: é o grande xale de orações (cobre a parte superior do corpo), geralmente branco e feito de lã ou linho, usado pelos homens judeus durante as preces da manhã. Em cada um de seus 4 cantos há uma "franja" de cordões de lã (ou linho) especialmente trançados, chamados de tsitsit, para lembrar ao usuário de todos os 613 mandamentos (mitzvot) do Eterno ao povo judeu, conforme a Lei de Moisés (Números XV, 37-41).
Tefilin: são caixinhas de couro pintadas de preto que contêm os versículos bíblicos (escritos a mão em pergaminho) Êxodo XIII, 1-10 e 11-16, Deuteronômio VI, 4-9, e XI, 13-21; elas são montadas sobre tiras de couro, também tingidas de preto, uma das quais é enrolada com 7 voltas no braço esquerdo (se for canhoto, no direito), ao passo que a outra é colocada sobre a cabeça, repousando no alto da testa. São usados pelos judeus do sexo masculino, maiores de 13 anos, durante o serviço religioso semanal da manhã, exceto aos sábados (shabbat) e dias festivos estipulados na Torá.
Kipá: barrete redondo, ou solidéu, usado por judeus nas sinagogas, quando se reza ou se recita uma benção.



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