45% escrita por SobPoesia


Capítulo 6
Encontro Romântico




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O elevador não era o lugar mais cheiroso do hospital, principalmente com todos aqueles corpos passando por ali diariamente. 45% murmurava alguma canção feliz, sorridente. Queria me contagiar por sua emoção, por sua animação, mas estava muito preocupada com o quanto precisava me sentar.

Descemos o andar e saímos pela porta de metal. A sala era tão grande quanto conseguia me lembrar. Um andar inteiro frio e dedicado aos mortos.

Do lado esquerdo, haviam todas as gavetas, com 200 lugares esperando nossos amigos e conhecidos. Do lado direito, junto a porta, um sofá vermelho surrado, para frente cinco mesas de autópsia e uma escrivaninha com um computador e arquivos. No fundo, um gigante armário cheio de ferramentas para abrir corpos, uma grande pia e a incrível balança de pesar orgãos.

Bruni olhou para a extensão prata e azul daquele local iluminado em neon com os olhos brilhando em êxtase. Sorriu e disse:

–O que há com esse lugar e sofás vermelhos?

Caminhamos até a primeira mesa. Soltei os tubos do cilindro para me mover livremente, mas sabia que não aguentaria por muito mais tempo. Retirei os pratos, os copos, talheres e guardanapos e os arrumei sob a superfície prateada que cheirava a álcool, tudo em um arranjo digno de restaurante caro.

45% colocou duas cadeiras envolta da mesa e se sentou. Coloquei todas as vasilhas com comida em nosso lado, acendi a vela roubada e servi suco de uva.

–Para um jantar roubado e comprado à cinco minutos do encontro, na esquina, isso aqui está bem impressionante. – ela pegou seu copo e ergueu.

–Trouxe até vinho improvisado. – bati meu copo no dela.

–À doenças terminais.

–E semanas de vida. – bebemos, juntas.

Conversamos sobre coisas cotidianas, desde a escola até como a comida realmente estava boa. E assim, nosso encontro estava perfeito. Ela ria e tocava minhas mãos, enquanto meus pulmões não reclamaram, nem por um segundo.

A comida eventualmente acabou e eu guardei tudo que não era lixo dentro da minha mochila, e o resto no triturador da sala, que fez um barulho insuportável durante muito tempo, nos tirando várias risadas. Cansada, resolvi me sentar no sofá, que me chamava para um cochilo. Apoiei minha cabeça na parede e me deitei, ainda que meio sentada, em uma posição que eu conseguia sentir meus pulmões em minhas costas. Bruni retirou suas sandálias e com cuidado se deitou em meu colo, entre minhas pernas, em uma posição muito confortável.

–Eu acho que deveria te agradecer por ter sido um perfeito cavalheiro durante toda essa noite, não te vi olhando para o meu decote nem por uma mísera vez. – ela suspirou, mexendo na porta do seu vestido.

–Queria fazer com que você tivesse o encontro da sua vida, dos seus sonhos, com um cara que te respeita e te quer bem. Tudo o que você merece... E eu olhei sim, muitas vezes, você só não notou. – retirei minha touca e soltei meu cabelo, passando meus dedos pelos meus longos e absurdamente lisos fios, tentando os deixar arrumados.

–Conseguiu, acho que até extrapolou um pouco. – Bruni pegou minhas mãos e se abraçou – Obrigada por ser meu príncipe encantado de cabelos longos.

–Sempre que você fala sobre o homem dos seus sonhos eu acho que está indiretamente se referindo ao Evans. – particularmente, já tinha aceitado a minha derrota e queria ver os dois felizes, nem que isso significasse que ficassem juntos.

–Não é dele que eu falo. – ela bufou, como se falasse entre um sorriso.

–Porque não?

–Porque não é ele quem eu quero. - sua voz parecia ensaiada, como quem já esteve falando a mesma coisa, várias vezes ao espelho.

–E quem você quer? – esbravejei, que se decidisse logo para eu ir atrás e tentasse fazer com que os dois ficassem juntos, aquilo estava me matando.

Houve uma pausa no tempo. Fiquei quieta, depois de dizer aquilo, mexia em seu cabelo com delicadeza e cuidado, enquanto ela mexia em minhas unhas, como se o mundo estivesse em silêncio esperando a sua resposta.

45% se levantou lentamente e com cuidado. Me puxou e joguei meu corpo contra a parede, ainda cansada e debilitada da minha doença, não tinha todas as forças para manter meu próprio peso e precisava de um apoio. Então ela caminhou até mim, até o meu corpo, até o meio das minhas pernas, até o meu abraço. Quando já estava junto a mim parou. Como era ligeiramente menor que eu, teve de ficar na ponta dos pés para nos equiparar. Passou suas mãos e unhas pelos meus ombros até atrás do meu pescoço, segurando minha nuca, o que me arrancou um arrepio intenso em excitação. Coloquei minhas tímidas mãos envoltas em sua cintura.

Bruni se aproximou, mais e mais e mais, mesmo que já não houvesse mais como nos apertar juntas. Nossos narizes se tocaram. Automaticamente sorri, estava esperando por aquilo durante tanto tempo. Seu hálito tinha cheiro de lasanha e suco de uva, dominou meu ar e tudo o que eu sentia. Não conseguia acreditar no que estava preste a acontecer. Ela umedeceu seus lábios com a língua, me fazendo tremer. Podia sentir seu gosto, sem tocá-la.

A sala toda estava em silêncio, era possível ouvir Hazel injetando o ar em meus pulmões, enquanto ofegava, não em meu tom usual de falta de ar, mas em uma sincronia com o desejo de tê-la. Sua boca chegou lentamente e sutilmente ao meu ouvido e sussurrou:

–Eu quero você.

Queria ter a capacidade de congelar o tempo, porque naquele momento, era a pessoa mais feliz do mundo, tinha derretido, perdendo o controle de todos os meus membros, meu corpo estava mais leve e meus pelos eriçados. Subi minha mão devagar até sua nuca e ela sorriu, ofegante. Podia ver seus olhos piscarem no fundo dos seus óculos. Estava quente, quente demais.

45% se inclinou, era agora, não era?

Não.

Ela desceu da ponta dos seus pés e deu um passo para trás, me fazendo inspirar fundo, com força. Não podia acreditar que ela havia desistido de algo que estava tão próximo de acontecer, de algo que tinha esperado por muito tempo.

Queria sentir raiva, mas ela abaixou seu rosto e tornou toda aquela malícia em ternura. Era apaixonante.

–Lembra quando disse que porque estamos morrendo todas as escolhas que fazemos são extremas? Aquela coisa de 8 ou 80 porque somos terminais e não precisamos lidar com as consequências? – sua fina voz me fez arrepiar, eu ainda não tinha saído daquele modo que ela havia me colocado em.

–Claro que sim. – suspirei.

–Tomei uma decisão extrema.

Meu pensamento logo foi para: “a de me rejeitar...”.

–Tudo bem. - assenti.

–Tenho câncer de córnea, desde que nasci. Por muito tempo controlei a doença, porém, ela de repente avançou rapidamente e agora eu tenho uma metástase cerebral. Tenho seis meses de vida. Me chamam de 45% porque eu tenho só 45% de visão em um dos olhos, o esquerdo. E agora eu vou te mostrar algo que tenho pavor de mostrar para qualquer outra pessoa. Sinto que minha mãe não viu isso tanto quanto você vai ver. Está preparada?

–Estou. – juntei as sobrancelhas, aquela era uma decisão peculiar.

Realmente achei que estava preparada, mas assim que soube o que estava para acontecer, tive certeza de que nunca estive pronta.


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