45% escrita por SobPoesia


Capítulo 30
Cafeteria




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Então, era quinta-feira, o tão esperado dia do escape.

Bruni e Evans me olhavam silenciosamente durante as aulas da manhã, esperando meu plano mirabolante para driblar enfermeiras, médicos e as nossas doenças.

Uma quase cega, uma garota sem pulmões e um cara que a qualquer momento podia cair morto. Sem plano, sem carro, muito dinheiro e a praia.

Já tinha que ter pensado nisso antes e, em parte, já tinha. Tinha as nossas passagens de ônibus que saiam exatamente as seis horas da rodoviária mais perto do hospital, um hotel acabado de uma estrela para passar a noite e um plano de viagem com ônibus, lugares para comer e um tour pela cidade marcados, pagos e em mãos. A única coisa que não sabia era como chegar lá.

Claro, já tínhamos escapado outras vezes.

O loiro e eu pulamos o muro em ocasiões nas quais os meus pulmões estavam melhores e simplesmente saímos pela porta da frente, uma vez. Mas agora haviam mochilas a serem carregadas e uma ansiedade a ser contida. Não éramos dois adolescentes indo ao bar da esquina ou fugindo para o parque da vista da prisão, iriamos atravessar duas cidades antes de chegar a praia e tudo isso tinha de ser feito antes do domingo, o dia da suposta morte.

Roía as minhas unhas em um nervoso inexplicável, os minutos se passavam e eu não sabia o que fazer. Porque eu tinha de bolar tudo sozinha?

O sinal soou e a aula entediante de história acabou. Peguei a minha mochila e caminhei em passos rápidos até a cafeteria, peguei a minha bandeja, a minha comida e me sentei em nossa mesa usual, de frente para a janela.

Virei-me para o lado e lá estava 45% com sua comida me observando boquiaberta.

—O que aconteceu, garota? Eu menstruei em minha calça ou algo do tipo? Porque o espanto? – juntei as sobrancelhas e esbravejei.

—Abby. Você não vinha aqui desde que ela morreu, essa é a primeira vez. – ela segurou a minha mão.

Então, tudo me atingiu.

Superação é algo assim, não é? Um dia você simplesmente acorda e... Porque a falta dela tinha de afetar toda a minha vida? Ela morreu. Pronto. Doía, mas eu não tinha de morrer também.

Olhei para o canto no qual ela morreu. Ainda podia ver seu corpo gélido ali, mesmo que não estivesse.

Estava em tanto desespero e agora... O ar fluía normalmente quando observava aquele canto, até uma pancada.

Porém, ninguém tinha de saber que aquilo era uma ferida. Eu nunca fui um filhote assustado.

Era estranho notar como ela tinha realmente ido, como aquilo tudo era de verdade, era real demais. As feridas, agora fechadas, doíam. Era uma cicatrização difícil, mas tinha de acontecer, aquilo tinha de ser normal, por deuses!

Suspirei.

—Por que isso tem que ser algo grande? – soltei minha mão da sua.

—Isso que ela está fazendo agora é colocar uma fachada brava porque está doendo. Bruni, aprenda a lidar com ela. Não vou estar aqui para te ensinar. Não cutuque os machucados, ela morde. – o loiro se sentou a nossa frente.

45% se voltou para a sua comida e eu, para a janela atrás de Evans. Lá estava o outro prédio que havia o hospital, aquele fácil demais de entrar e sair com as respostas das provas.

Soquei a mesa com força, fazendo um barulho alto e feio de pratos e talheres se batendo.

O loiro sorriu, eu sabia como nos tirar dali.

Assim que acabamos de comer, corremos para nosso quarto.

Bruni se sentou na cama, segurou suas pernas e sorriu:

—Você já sabe como nos tirar daqui?

—Vocês se lembram do prédio do estacionamento? – sentei-me sobre a escrivaninha.

—Ele tem uma saída dos fundos! É no final do corredor! – Evans completou meu pensamento.

—Então vamos logo!  - 45% se levantou.

—Não! Vão notar que não estamos nas aulas, temos de esperar elas acabarem. – ele segurou sua saia.

—Vamos as cinco. As aulas acabam as quatro e meia, se simplesmente pegarmos as nossas mochilas dos armários e seguirmos até o estacionamento,  ninguém vai notar. Ficamos perdidos no meio das ambulâncias, esperamos até todos os funcionários saírem para a troca de turno, corremos até a porta dos fundos e ninguém nos vê. Estaremos na rodoviária antes de notarmos que fugimos e antes da partida do ônibus. – fiquei animada, comecei a me inclinar para frente.

—Temos alguns minutos antes dos funcionários da noite entrarem lá, cerca de dez. – o loiro sorriu, animado junto comigo.

—É perfeito, é a hora da morte!

A hora da morte para nós era a hora de troca de funcionários, tecnicamente, tínhamos cerca de 20 minutos sem enfermeiros, porque os do turno da manhã entravam para trocar de roupa e iam embora, então os do turno da noite iam para os armários se trocar antes de poderem nos salvar. Isso também acontecia antes de acordarmos. Nenhum acidente grave havia sido reportado nesse tempo, muito porque tentávamos não fazer nada de idiota e dez minutos nunca mataram ninguém, mas era o intervalo de tempo perfeito.

—Vão notar que fugirmos apenas na hora de arrumar as máquinas. – o loiro se levantou.

—Já estaremos no hotel esse horário!

Troquei Hazel e a coloquei em um carrinho com mais um tanque, dois cheios, durariam duas semanas, não havia com o que se preocupar toda a viagem. Pegamos as nossas roupas e enfiamos nas mochilas da escola, troquei minhas sandálias por tênis e amarrei um casaco na cintura. Colocamos nossas mochilas dentro dos armários da escola e pegamos os nossos livros. Sentamos na fileira da frente e fingimos muito bem estudar.

Bruni batia seus pés no chão freneticamente, ansiosa. Não conseguia escrever duas sentenças inteiras e conexas no papel, apertando a caneta, a batendo no caderno, trocando as pernas de posição, arrumando o cabelo. Sua inquietude estava me deixando nervosa.

Evans estava parado com os olhos no relógio. Nunca o vi tão concentrado em algo em toda a sua vida. Era como se um filme erótico passasse por aqueles ponteiros e toda vez que um deles se mexia, ele tinha um orgasmo.

Já eu, não tinha nada muito para me concentrar com tantos espasmos acontecendo em cada um dos meus lados, então resolvi fazer algo com o meu tempo. Peguei a caneta e olhei para o papel.

Bruni passou seus dedos sobre os cabelos, os jogando para trás, vi seu pescoço cheio de pintinhas e senti seu cheiro, era como a primeira vez que havia a visto. Ela era tão linda...

Coloquei a caneta sobre o caderno e:

“Crescendo em uma dessas pequenas vizinhas, o cara da casa ao lado tinha um cachorro. Não tínhamos cercas, era apenas um pequeno caminho de pedras dentro do condomínio que separava as nossas casas, então, seu cachorro podia facilmente entrar e sair da sua sempre que quisesse.

Esse cachorro, o Mister Robins, era o único animal de estimação que tive contato durante toda a minha infância. Não é de se admirar que eu tenha uma família bem doente e a minha irmã era uma daquelas garotas alérgicas que não podem entrar em contato com nada.

O filhote de Beagle é tudo que me lembro da minha antiga casa antes de vir morar no hospital.”.

 


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