Heróis e Vilões - Um mundo de poderes escrita por Felipe Philliams


Capítulo 21
Meu pai me acorda


Notas iniciais do capítulo

Voltei. Feliz anovo pra vcs, seus lindos. Se tiverem se sentindo tristes, lembrem-se amo cada um ♥
>sim, falei "anovo" pra economizar espaço
>demorei pq tava acontecendo mta coisa aq
>tava estudando (eu gosto de fazer isso)
>sem mais delongas, vamos ao capítulo



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O programa sobre jogos havia durado quinze minutos. Já estava acostumado, mas não deixou de ficar revoltado. O apresentador falou apenas sobre dois jogos; um deles ele até gostava, mas o outro ele nem conhecia e eles deram tantos detalhes. Tão rápido quanto o começo, Marcos olhou, estupefato, quando o horário cortou a fala dele. Riu na hora, mas agora que os créditos iniciais do filme que viria à seguir rolavam, ficou triste. Havia esperado até a meia-noite, para quinze minutos.

Mas agora que acabou, sua irmã levantou-se do outro sofá e foi em direção ao banheiro. Marcos permaneceu parado, encima, olhando para a televisão. O filme era sobre Mafia e gangues nos Estados Unidos. "Alienação estadunidense", pensou. Desligou a televisão, entrou no quarto e ligou a lâmpada.

Atento a qualquer movimento, entrou lentamente, olhando para todos os lados. Não havia nada lá, a não ser por algumas formigas amontoadas em volta de uma bacia, no canto. Ele havia montado aquela estrutura em uma tentativa desesperada de se livrar dos insetos, que subiam na sua cama à noite e o deixavam coberto de bolhas ao amanhecer. Era uma bacia verde com um pouco de água no fundo e um copo no meio, cheio de açúcar. As formigas escalariam a bacia e, chegando no fundo, encontrariam a água. A mulher riu dele quando viu, mas, pelo menos, não o mandou tirar de lá.

Marcos olhou a toalha dependurada na janela. Esticou o braço e a pegou. Caminhou até o outro banheiro, passando pelo quarto das mulheres, pela mesa de jantar e pela cozinha, entrou no quarto à sua direita e mexeu na cortina. O banheiro estava sujo de uma espessa terra e lama. Pegadas traçavam seu caminho do espelho à esquerda até o chuveiro na direita. Na pia havia pasta de dente e calcinhas jogadas, aparentemente molhadas, junto a uma bacia azul, onde o pano do bebê estava de molho.

Marcos deu de ombros diante daquela cena. "Não sou em quem vai limpar mesmo..." Despiu-se, jogando as roupas encima da tampa do vaso, e pôs a toalha encima. Girou no mecanismo do cano e deixou que a água caísse sobre sua cabeça, fria, mas relaxante. Olhou para baixo e observou enquanto o chão branco ficava ainda mais sujo, conforme os pingos de água chocavam-se contra ele.

Aquele dia havia sido pequeno. Quando chegou do colégio, às doze e quarenta, caiu na cama. Depois de alguns minutos banhou-se, almoçou e voltou para a cama. Pegou o celular e ficou jogando seu RPG favorito de todos os tempos. Não demorou até que o cansaço o deixasse com as pálpebras pesadas. Acordou às seis horas da tarde. Estava tudo escuro. Ligou as lâmpadas, uma a uma; pegou a vassoura, varreu; lavou algumas louças que haviam na pia, passou o pano encima de onde havia terra e arrumou a casa. Sua madrasta chegou mais tarde e o encontrou jogando. A gritaria daí em diante foi indescritível. Ela ameaçou contar ao pai se ele não parasse e o mandou fazer várias outras coisas.

Enquanto deslizava o sabonete pelo corpo, olhou-se no espelho. Seus pelos na região pubiana haviam crescido de novo. Decidiu que iria cortá-los quando estivesse na Parte Três, em Liberdade Incerta, de volta ao seu verdadeiro lar. Pediria licença a seu pai nesse sábado. Marcos tinha certeza que ele ia permitir, ele sempre permitia sua partida a cada dois sábados. Veria sua avó, sua mãe e pediria a elas para prepararem batata frita e comeria com pão. Ficaria a noite inteira sozinho, nu, olhando pro nada e deitado na cama.

A mera expectativa daquele pensamento se concretizar deixou-o excitado, em cima e em embaixo. Olhou para o espelho e viu seu volume crescer, enquanto limpava-se.

Terminado o banho, Marcos vestiu apenas sua roupa íntima e voltou ao quarto, apagando as luzes devidamente. Arrumou sua cama, alinhou o lençol ao colchão. Ajustou o ventilador para a velocidade dois, apagou a lâmpada e deitou-se, pegando tanto o celular quanto seu fone.

Iniciou mais uma vez seu jogo. Decidiu não mexer na internet naquela hora, pois de manhã muito provavelmente, ficaria com franquia limitada, mais do que já era. Então permaneceu off-line.

Alguns minutos se passaram até que Marcos sentiu seu volume crescer novamente. Tirou do jogo e começou a olhar sua coleção de vídeos. Despiu-se mais uma vez na cama. Depois de dois vídeos estava tão animado que já não conseguia mais resistir: levou a mão para baixo e começou a mexê-la, repetitiva e incansavelmente.

A sensação era boa, mas não era o que ele queria. Mexeu mais e mais, assistindo ao vídeo com o fone. Segurava o celular com uma mão e estimulava-se com a outra. Mudou de vídeo umas quatro vezes, até achar o perfeito. Então pôs mais força e velocidade na mão, até que atingiu seu máximo. O sêmen espirrou, alto o suficiente para sujar as coxas e um pouco da barriga.

Ele ergueu-se cuidadosamente, afim de não sujar-se mais ainda, e caminhou mais uma vez até o banheiro. Lá, ele limpou-se e sentiu-se limpo mais uma vez. Enrolou a toalha na cintura e caminhou de volta ao quarto. Passava pela cozinha, ao lado do armário de louças, quando a viu.

Lá estava ela... Parada, refletindo em suas asas a luz vacilante que vinha do seu quarto. Ela brilhava, parecia ter tomado banho. As antenas mexiam-se continuamente para a direita e para a esquerda, farejando, detectando, tentando decidir quem era inimigo. O corpo de Marcos travou. Tentou se mexer, mas seu medo o deixou onde estava. Os olhos arregalados junto aos ouvidos atentos, tentando captar qualquer movimento que fosse.

Marcos ficou um bom tempo ali, parado, sem saber o que fazer. Queria continuar, deixá-la em paz... Mas ele não conseguia. Estava planejando voltar ao banheiro quando a porta do quarto das mulheres abriu-se na sua frente. Sua madrasta saiu de lá; a barata correu e Marcos virou-se para o armário.

— Marcos, é tu que tá aí?

"Não, é o Papa?"

— Sou eu, por quê?
— O que que tu ta fazendo aí? - aproximou-se dele, olhando. Marcos viu de relance o cabelo loiro salpicado de preto espetado para cima. Ela parecia ter pulado de bungee jumping.
— Nada.
— Então por que que tu tá aí? - ela parecia estar com raiva, apressada para voltar para cama.
— Tô procurando meu remédio.
— Teu remédio? Que remédio?
— Aquele pra gripe.
— Tu ta gripado?
— Tô.
— Tu só vive gripado, Marcos - resmungou.
— É a poeira.
— Ah, é? Amanhã tu vai vasculhar esse telhado pra tirar a poeira de uma vez.

Marcos tremeu de raiva. Ela havia se virado e estava agora olhando para a sala. A luz do quarto de Marcos estava acesa e a luz proveniente do poste no lado de fora da casa mostrava sua vida por entre as brechas das janelas. Ela virou-se de novo, olhou para Marcos uma última vez, murmurou-lhe pra ir dormir e entrou no quarto.

Assim que ela saiu, Marcos olhou em volta de novo. A barata não estava mais lá e isso podia significar algo bom ou ruim. Ele, agora que tinha de volta o controle sobre os próprios membros, caminhou de volta ao seu quarto. Pegou o celular e pôs no chão, ao lado da cama. Ele iria ser o despertador no dia seguinte. Desligou a lâmpada e caiu na cama, olhando para a o vazio.

De manhã, acordou com as lembranças de seu sonho. Ele estava em Liberdade Incerta, no seu bairro, na sua casa. Sua cama ficava bem ao lado da cama de sua avó, o que deixava um espaço no meio. Ele estava estirado sobre as duas camas quando o espaço no meio expandiu-se, até revelar uma brecha no fundo. Dentro da brecha haviam milhares de baratas, de todos os tamanhos imagináveis. Marcos lembrou-se de ter o tamanho de uma criança no sonho, enquanto lutava para sair dali, escapar daquele pesadelo. As pernas asquerosas e peludas daqueles insetos balançavam, mexendo-se freneticamente, tentando alcançar Marcos. A criança que ele era no sonho começou a chorar, enquanto a escuridão subia para engoli-lo.

Aquele sonho era estranho. A primeira vez que ele sonhara com baratas tentando pegá-lo. Marcos sempre sonhou com um mundo de poderes, com pessoas controlando objetos pesados e pedaços de materiais de construção flutuando por toda a parte. Não com insetos o perseguindo.

Olhou no celular que horas eram: oito horas em ponto. A porta do seu quarto dava para a sala, mas, mesmo fechada, Marcos ouviu quando pesados passos de sandálias molhadas aproximaram-se dele; a porta foi violentamente aberta. Seu pai mostrou sua cabeça, redonda, a barba recentemente raspada. Os olhos furiosos fitando Marcos em conjunto com o cabelo preto molhado.

— Anda, levanta. Vai limpar o terraço - falou, direto, sem expressão na voz ou nada. Simplesmente falou e Marcos sabia que se não o obedecesse, algo de ruim ia acontecer.

Levantou-se, agora estressado e imponente. Todo o otimismo do dia anterior evaporara. Ele sabia que, talvez limpando rápido o terraço, poderia ter uma pequena chance, por menor que fosse, de ainda ir para Liberdade Incerta. Alcançou a toalha quando se levantou e banhou-se, a água fria o fazendo espirrar. E, geralmente, quando espirrava uma vez mais dois espirros vinham. Dessa vez vieram exageradamente rápidos, arrancando a força dos braços e pernas de Marcos. Deixou o banheiro, a sujeira sob os pés delimitando um espaço marrom no meio do piso branco. Depois a sua madrasta, dona Helô, viria e o mandaria limpar todo o banheiro...

Quando olhou para o terraço, ficou assustado. O lugar era grande por si só, na parte frontal da casa, como convém. Era uma área de cimento em que podia-se ficar sem sujar os pés com a grama e a terra que havia no "jardim". Geralmente estava só sujo de terra, mas as constantes visitas dos pássaros, misturado a duas semanas sem um cuidado certo, haviam deixado uma fina camada de excrementos - que pareciam manchas de pingos aleatórios - multicolores e folhas com terra. Não estava fedendo e por isso ele se sentiu agradecido. Com uma sujeira tão forte como aquela ele teria de carregar uns seis ou sete baldes de água e espalhá-los estrategicamente se não quisesse levar mais dois. Teria de limpar uma parte de cada vez e ainda puxar com o rodo a água para fora.

Foi à cozinha e pegou o sabão em pó, mas quando ia voltando viu na mesa um bolo de chocolate. Sua irmã o havia feito na noite anterior. Havia ficado pronto às nove horas, deixando um cheiro na cozinha. Na hora Marcos ficara com água na boca... E era como estava agora. Dessa vez alguém jogara sobre ele uma calda de chocolate, grossa e brilhante, deixando-o com uma aparência mais suculenta do que já tinha.

Deixou o sabão em pó sobre o armário, que ficava de frente para a mesa, e pegou uma faca que havia ao lado. Cortou uma grossa fatia e a devorou, saboreando a obra de arte que ficara. Sua irmã normalmente fazia bolos que ficavam duros e sem gosto, nada parecido com aquela delícia que passava pela garganta de Marcos.

Tendo terminado, cobriu o bolo do jeito como estava antes e pôs a faca ao lado, tendo o cuidado de lambê-la para que não parecesse usada. Pegou o sabão em pó e foi para o terraço.

Quando jogou o primeiro balde e começou a esfregar com a vassoura, o cheiro nauseante de fezes e sujeira com sabão exalou. Marcos cobriu o nariz com a camisa enquanto forçava-se a continuar esfregando. A vassoura era boa, e removeu quase todas as manchas de primeira. As mais frescas sempre saíam com facilidade, mas eram as que mais fediam. Entretanto aquelas secas eram seu pesadelo, levando múltiplas esfregadas com força extra para sair. E haviam muitas secas, o que logo deixou os braços doloridos. A dificuldade maior vinha quando tudo estava molhado, porque aí alguns amontoados de excrementos absorviam a água, ficando "camuflados" sobre o chão de cimento. A vassoura esfregava vigorosamente e Marcos olhava com cautela para ver se nenhuma mancha tinha ficado.

O segundo balde limpou grande parte da terra, mas deixou as fezes. "Dois... Cinco pra ir." Enquanto torcia o nariz e jogava mais sabão em pó, Marcos perdeu a noção do tempo. Quando jogou o último balde, percebeu que devia passar das dez horas e isso o atrasaria na viagem para Liberdade Incerta. Quando esfregou o último vestígio - ou melhor, "FESTÍGIO" - de excrementos, pegou o rodo e começou a puxar a água. A grama logo encharcou, e nem metade da água havia sido tirada.

Foi nessa hora que seu pai apareceu detrás dele.

— Marcos, tu é burro? - resmungou, alto e bravo, deixando Marcos com ainda menos esperança da viagem.
— Por quê? - a voz, normalmente grossa, saiu amedrontada e estupida, após um tempo sem falar nada, tentando decidir o que falar.
— Tu não tá vendo que se tu empurrar essa porra dessa água pra aí esta merda vai virar uma lama? - ele gesticulou para a entrada.

Marcos olhou para a grama e percebeu a dura verdade detrás da voz do seu pai. O lugar onde o caminho de grama começava, levando para a rua, agora estava marrom, escorrendo para a direita, na direção das janelas da casa. Marcos parou o que estava fazendo e deu meia volta até onde o curso da água seguia e puxou-o com o rodo. Ouviu o berro do pai antes que se aproximasse, a fúria sem seus olhos.

— Me dá essa porra aqui, Marcos, que eu vou tirar teu couro! - seus membros congelaram e um espinho passou pela nuca - COMO é que tu vai empurrar essa água com esse rodo?! - berrou, talvez atraindo a atenção de algumas pessoas que passavam na rua. Tomou o rodo da mão de Marcos, erguendo-o no ar.

Enquanto esperava o golpe, Marcos viu de relance os braços do pai. Eram grossos e gordos, fortes de tanto trabalho forçado quando era mais novo. Tinham uma coloração queimada pelo sol. Os braços de Marcos eram quatro vezes menores e menos fortes, os ossos destacando contra a pele. Ele não se importava com músculos, sua força estava na inteligência. Sempre tirava notas boas na escola e, mesmo que não estudasse em casa, era um dos mais inteligentes alunos da escola.

O pai nunca se importara com isso, entretanto. Considerava-lhe burro, lerdo e fraco, sempre mostrando o quão infantil ele era. Fazia o possível para humilhá-lo na frente dos outros e, sempre que podia, o mandava limpar o jardim cheio de flores murchas e velhas, há muito tempo sem vida. Marcos repudiava as ações de seu pai, querendo, com todas as forças, que tivesse outro. Sua outra família o avisara que tais situações poderiam acontecer, mas o ingênuo Marcos ignorou-a. Mudara-se para a Parte Dois havia dois anos e, desde então, estivera preso lá pelo pai que o proibia de voltar a morar em Liberdade Incerta. Sua madrasta dissera-lhe que Cléber amava o filho, mas Marcos não tinha tanta certeza, visto que agora ele preparava-se para desferir o golpe...

Mas não chegou. O rodo havia sido jogado de volta no terraço, e, agora, estava encharcado. Não havia mais ninguém atrás de Marcos. Seu pai havia chegado e ido sem dar pistas. Uma sensação de confusão deixou Marcos parado, olhando estupidamente para o chão e a lama que havia acumulado, até que os olhos congelaram no rodo. Ele andou até o rodo, tentando não perder a chinela no meio da lama, e, quando se abaixou para pegar, perdeu o equilíbrio na perna direita e caiu de joelhos.

As mãos estavam afundadas na lama e os joelhos molhados. O calção que ele vestia estava coberto de pingos marrons. Ele sentiu quando lentamente as coxas ficaram húmidas até se misturarem com a água suja de fezes e sabão. O cheiro veio mais tarde, deixando-o tonto. Nessa hora, ele quis chorar, desesperar-se e pedir socorro. Não aguentava mais a vida que tinha, nem os berros do pai. A voz grossa e autoritária dele era agora parte de um trauma que Marcos levaria para o resto da vida. Todos os tipos de "serviços" que Cléber o mandava fazer, sempre exigindo de Marcos uma força física que não possuía. O terraço, a fossa que sempre ficava entupida, o jardim infestado de insetos, a casa do cachorro... Tudo era sempre limpo por Marcos.

As lágrimas vieram indesejadas, mas felizmente poucas. Ele tinha a sensação de que a qualquer momento Cléber estaria encima dele, berrando e brandindo um cinto de couro cheio de remendas. Seu corpo deu uma leve tremida diante da descarga emocional que sofria. O choro era visto por Marcos como uma demonstração de fraqueza. Apesar de todas as dificuldades que ele sempre passou, nunca derramou uma lágrima, pois sabia que quando o fizesse, era porque não seria capaz.

Passou um tempo ali, sendo sustentado pelos joelhos e pelas mãos, sujas e fedidas, enquanto tentava parar de chorar. Quando se acalmou, respirou fundo decidindo que esqueceria que havia chorado. Jogou o peso do corpo para as mãos e ergueu a parte traseira, deixando-o em pé. Agora sua perna toda, do joelho ao pé, estava suja. As mãos também, com a coloração marrom mais aprofundada. Retirou o excesso e foi até o terraço encharcado. Dentro do balde, ainda havia uma pequena quantidade de água, que seria suficiente. Marcos conseguiu limpar as mãos e a perna, mas o cheiro persistia. Decidiu que estava na hora de acabar com isso.

Havia um pano de chão seco em um varal, no lado oposto ao das janelas. Esticou o braço e pegou-o e, quando regressou ao terraço, olhou uma de suas irmãs na porta da casa. Ela vestia um short e uma camisa com listras em preto e branco. O cabelo preto, cacheado, estava escovado para os lados. Ela era alta e magra, com o rosto limpo, branco e os olhos sonolentos. Quando falou a voz saiu cansada.

— Papai é muito chato. Não sei porquê que ele fica gritando que nem um desesperado aí... Poxa, eu tava sonhando que eu tava rica e que comprava uma Ferrari...
— Poliana acordou também?
— Tá jogando um tal de Zelda.
— Ah.
— Foi tu que comeu o bolo? - perguntou subitamente Ester, parecendo mais curiosa que ressentida.
— Peguei um pedaço. Tava com fome.
— Um pedaço? Tu quase comeu o bicho todo! Tu sabe que não é só tu que mora aqui não, né?

"Eu arrumo a fossa, limpo o terraço, o jardim e a casa e vocês só ficam mexendo na internet. Eu acho que moro sozinho aqui sim", pensou Marcos, agora com raiva.

— Eu não comi o bolo todo.
— É, mas tem que deixar, rapaz! - berrou - Ahh... Tá limpando o terraço e ta se achando no direito de comer o que quiser sem nem perguntar? Não é assim não!
— Na próxima eu como tudo que é pra tu ver a diferença.
— Come - desafiou ela, ainda berrando. - Come que tu vai ver. - deu-lhe as costas e saiu.

Marcos suspirou. Ela frequentemente se achava a pessoa de mais influência na casa. Era muito comum vê-la gritando com qualquer um da casa, na intensão de passar um sermão ou algo parecido. Marcos a achava irritante. Sempre achando ter o poder, sempre achando ser a líder. Conseguia irritar mais que aconselhar.

O pano de chão caiu de suas mãos, encharcando no mesmo instante. Juntou-o e espremeu-o dentro do balde. A água estava marrom, fedida e barrosa. O interior branco do balde ficou salpicado de pingos de lama. Jogou o pano no chão, espremeu-o. Repetiu o ato uma terceira vez, de novo, de novo e de novo. Havia perdido a conta alguns minutos depois, quando olhou o canto e viu mais água. Marcos bufou, em uma confusão de irritação e tristeza. Arrastou o pano no chão, sobre uma superfície molhada, espremeu o pano dentro do balde.

O sol de Lancing Lord estava escaldante quando o meio dia chegou. Marcos suava e bufava, respirando forte, tentando ignorar o cheiro de fezes em suas mãos. A camisa azul que vestia tinha a costa molhada de suor. O calção, que antes estava sujo de lama, ficara com uma cor marrom-escura, estava grudado em sua coxa. As mãos enrugadas e o cansaço puxando-o para baixo. O chão de cimento lentamente começava a secar, limpo, sem o cheiro agonizante de fezes. O caminho de grama estava seco. Estava tudo limpo... Tudo, menos Marcos.

Entrou em casa, se deparando com a sala. Stella e Ester, sentadas no sofá, assistiam ao jornal, enquanto comiam. Olhando para os pratos dela, Marcos entendeu que o almoço era peito de galinha, arroz, macarrão, salada e purê de batata. Um almoço bom.

— Ainda tem purê, Stella? - indagou Marcos, já sabendo qual seria a resposta:
— Não sei.

Ela sempre respondia isso. Não havia outra resposta que o irritasse tanto quanto essa. Engoliu a raiva e foi banhar.

[...]

À tarde, Marcos deitava-se sobre a cama, que ficava de frente para a sala. A televisão estava desligada, suas irmãs haviam saído com a mãe delas e o pai de Marcos estava trabalhando. O silêncio na casa era quase palpável. A calmaria, predominante. Marcos estava olhando para si mesmo, nu. A porta de seu quarto estava devidamente fechada. Não queria correr o risco de alguém vê-lo do jeito que estava. Sua barriga era roliça, mas os ossos do quadril ainda se destacavam. Os braços eram finos, magros, pálidos, mas tinham uma certa força.

Odiava seu corpo. Era tão fino e frágil. Considerava-se feito, parecendo um grande idiota desajeitado. Os braços não eram longos, nem muito curtos, e isso era seu único consolo. Os cabelos que fediam, a voz que era feia e grossa em exagero, o modo como as roupas de seu corpo passavam uma falsa impressão de gordura... Tudo nele o incomodava. A parte mais terrível de tudo era que ele teria de viver com isso pelo resto da vida, afinal, não podia mudar de corpo.

Marcos estava com tédio. Quando pensava muito sobre si mesmo geralmente significava tédio. Tinha vontade de fazer inúmeras coisas, qualquer que o livrasse do pensamento de que não iria para Liberdade Incerta naquele dia. Levantou-se da cama e olhou o celular. Cinquenta por cento de bateria. Claro, ele pusera para carregar havia pouco tempo. Lançou um olhar aos livros que empilhavam-se sobre uma estante coberta de poeira. Virou-se, de frente para a televisão, e quase a ligou. Era sábado, de nada havia legal naquela hora. Passou pela sala e chegou na cozinha. Havia achocolatado em pó próximo a um pacote de leite aberto. Marcos pensou em misturá-los, mas chegou à conclusão de que não queria ter de lavar louças agora.

Deu a volta e entrou no quarto de novo. Olhou novamente para os livros na estante. Sentiu uma vontade incomum de ler um, mas não se mexeu. Voltou à sua cama, os olhos abertos, fitando o telhado acima de si. Fechou os olhos, pensando em várias coisas. Um incômodo surgiu no braço direito, assim que começou a pensar no terraço que tivera de lavar naquela manhã. Ele simplesmente passou a mão. Era uma simples coceira. Passou assim que terminou de coçar. Começou a olhar os livros. Alguns estavam tão cheios de poeira que ele nem ousou tocar. Sua rinite o deixaria espirrando como um condenado pelos próximos seis dias se respirasse aquela poeira.

Seus olhos pararam em um livro que despertou memórias de sua infância, quando brincava com seus carrinhos colecionáveis. Marcos tivera treze deles, dos quais cinco já não existiam mais. Todos presenteados pela avó, quando ainda viviam juntos em Liberdade Incerta. A capa do livro mostrava a uma maquete de uma cidade, com várias pessoas segurando celulares caminhando. Dos celulares saiam uma linha azul e brilhante, e ia até o céu.

O incômodo no braço de Marcos surgiu de novo. Quando passou a mão, sentiu que a área onde ele coçara estava húmida. E olhou para o braço.

Primeiro ele viu o sangue e depois viu a carne.

Parecia uma mordida de uma boca enorme. Era gigante, coberta por um líquido que parecia um creme branco misturado com sangue. O osso desaparecera, aparentemente corroído. Em um lado ele tinha uma parte do osso, a ponta em estilhaços, como se alguém tivesse quebrado à força. Do outro estava a mesma coisa, mas dessa vez estava perfeitamente cortado.

Enquanto olhava para o braço, Marcos ficou desesperado. Correu para a cozinha, passando pelo balcão. No ímpeto da ação, não se preocupou com o chão, se ia ficar coberto de sangue ou não, só queria que seu braço voltasse ao normal. Diante da pia, mexeu na torneira e esperou a água começar a cair. Seus pensamentos imediatamente se voltaram para a infinidade de bactérias presentes naquela água. Mas seu estado era tão apavorante que não deu a mínima. Quando a água caiu sobre o braço, a dor surgiu. Fez tremer o ombro, passou pela espinha e chegou na cabeça na mesma proporção que chegou nas pernas. Seu corpo agora estava dando espasmos. Os olhos viraram, o almoço agitou no estomago e os ouvidos captavam uma frequência aguda demais.

Durante um milésimo, Marcos se viu cercado por paredes cinzas, cobertas com fuligem e o céu se pondo, as cores hipnotizantes do pôr-do-sol escondidas detrás de nuvens. O corpo dele não se mexia e nenhuma ação de reflexo foi executada quando um fogo líquido caiu sobre seus membros superiores.

Cambaleando, a torneira ligada, o sangue pelo chão e o pus exalando o odor, Marcos deu a volta. Sua visão foi tomada por uma mancha preta, enquanto o braço latejava intensamente, beirando a loucura. Ele tentou ir para uma cama, qualquer que fosse, mas subitamente ele não aguentou mais. As pernas não responderam, a dor em seu braço e embrulho na barriga sumiram e, então, ele desabou sobre o chão.

Depois disso, tudo ficou escuro. Um espiral subitamente apareceu, sugando todas as trevas que haviam ao redor. Quando tudo foi revelado, Marcos viu-se no centro de uma cidade, com os prédios enormes em pé, cercando todos. Pessoas andavam por ali e por aqui, preocupadas com afazeres pessoais. Um tremor de terra começou, enquanto todos ficavam desesperados, alguém chamou por Marcos uma vez, duas...

— Ei, acorda, cara. Não dorme agora - a voz grossa e raivosa de Ester pairava no ar. Ele abriu os olhos e fitou o teto do quarto, onde inúmeras aranhas haviam tecido suas casas por entre as telhas. Estava de noite.

Marcos ergueu-se, confuso. Olhou para o braço, que estava completamente limpo, tão normal quanto sempre esteve. Sua cabeça girava. O tom na voz de Ester indicava que alguma coisa muito ruim acontecera de tarde, mas não tinha ideia do quê. A única coisa ainda viva em sua memória era uma ferida no braço e uma pia ligada.

— Marcos! - ele ouviu a voz de sua madrasta. Pelo tom de voz ele supôs ela estava prestes a berrar e gritar de raiva. Ela apareceu na porta do quarto. Uma veia grossa e pulsante passava pela cabeça dela, que estava em um tom avermelhado forte. Ela berrou:

— Foi tu que deixou a pia ligada, num foi, Marcos?!
— Não.
— Não, não. Claro que não foi tu que deixou esse CARALHO ligado. Porra, a água gastando aqui desde a tarde, a conta vai vir cara pra poxa!
— Não tô sabendo de nada.
— Então quem foi que deixou a pia ligada? Foi teu pai? Eu vou perguntar pra ele se foi ele. Porque não é possível! Aqui num tem fantasma pra tá deixando as coisa tudo ligada. Só pode ter sido teu pai, se não foi tu!
— Claro que não foi ele! Ele que paga as contas por que ele deixaria tudo mais caro?
— Ah, é? Então eu vou falar que alguém deixou ligada. Porque se não foi ele e nem tu, quem deixou?
— Eu não sei, não pergunta pra mim eu tava dormindo!
— Eu vou ligar pra ele, peraí - ela saiu, furiosa.

Marcos ficou assustado. Tentou parecer confiante, mas por dentro ele queria sair dali e não voltar mais. Fugir daquela casa. Estava tudo acontecendo tão rápido e isso o deixava confuso. Sua mente estava a mil. Ele se lembrava de uma pia ligada, mas era em seu sonho. Não podia ter acontecido de verdade. Não fora ele. Se negava a tomar responsabilidade de algo que não havia nenhum envolvimento dele.

Levantou-se da cama, pesadamente. A cabeça girava e a visão foi tomada por algo escuro. Perdeu o equilíbrio e caiu na cama, enquanto tentava não apagar. Então a mancha sumiu e ele se encontrou na cama. Tinha que ir ver o que aconteceu, não podia ficar parado. Levantou-se de novo e caminhou até a cozinha. A pia estava vazia, mas molhada no centro. A torneira estava desligada,mas pela humidade ele percebeu que a água havia jorrado durante um bom tempo.

Nem Ester nem Stella estavam na cozinha. Não havia panelas no fogão, nenhum litro estava enchendo no filtro. Marcos, que já estava assustado, ficou apavorado diante da expectativa de algum berro do seu pai. Ficou parado, em pé, olhando para a torneira, parecendo uma estátua. Durante cinco minutos seu mundo se resumiu a isso.

Então ouviu passos distantes, vindo da porta frontal. Não eram passos comuns de chinelo raspando em cimento. Marcos conhecia muito bem o som desses passos. O som do chinelo molhado sendo esmagado a cada passo era a principal indicação de que ele estava se aproximando. Provavelmente estaria usando uma toalha branca com o torso à mostra. Viria com as sobrancelhas curvadas para baixo, indicando sua raiva. Gritaria com ele e o dar-lhe-ia ameaças a cada frase.

O portão frontal foi aberto e os passos ficaram ainda mais altos e apressados. Lentamente sua sombra apareceu e em seguida deu lugar à ele. Do jeito que Marcos havia imaginado, com a diferença de que sua barba estava aparada. Isso o fez ficar ainda mais assustado, pois ele costumava ser mais agressivo quando estava sem pelos. Andou até o balcão de madeira (este ficava um pouco antes da pia, que ficava ao lado de um fogão) e lá parou. Pôs as mãos na cintura.

— Que história é essa de pia?
— Eu não sei, pai, acordei e ela começou a... Começaram a falar aí.
— COMEÇARAM? Quem começou?
— Dona Helô aí.
— Quem foi que deixou a, a... A pia ligada?
— Eu não sei.

Ele cruzou os braços, aumentou o tom de voz.

— Tu saiu de tarde pro ginecologista?

"Ah, então foi pra lá que elas foram...".

— Não.
— Então como é que tu não sabe?
— Eu t-tava dormindo, não vi ninguém...
— Meu fi tava DORMINDO? Por quê?
— Eu tava com sono.
— E aí enquanto TU, tamanho homem dessa idade tava DORMINDO, quietinho na caminha, alguém entrou na casa totalmente fechada e trancada, deixou a porra da torneira ligada e foi embora sem deixar nenhum vestígio. É nisso que tu quer que eu acredite?

Quando Marcos não respondeu o pai dele se aproximou do fogão e de lá olhou para a pia, parecia estar avaliando a veracidade do que o filho havia dito checando os possíveis vestígios que o culpado havia deixado. Aparentemente a pia estava limpa e isso fez o pai de Marcos dar a volta e olhá-lo nos olhos.

— Eu não sabia que eu tinha filho preguiçoso aqui - falou, alto. Em seguida diminuiu o tom, e isso fez soar como uma ameaça. - Se tu não procurar jeito de homem, tu vai continuar sendo o mesmo lixo. Amanhã meu fi passa na casa do Sr. Edney que eu tenho um serviço pra ti dar.

Marcos pensou no quanto tinha uma péssima vida quando o pai pôs-se a a abrir portão. Fechada a porta, ele dirigiu-se ao quarto, sentindo uma vontade imensa de berrar e espernear, quebrar tudo e extravazar toda a raiva que estava sentindo agora. Assim que sentou-se na cama, ouviu sua madrasta gritando:

— Pode levantar daí que tem que fazer as coisa aqui!
— Suas filhas não podem fazer isso não?
— Olha, não interessa quem pode fazer ou não, eu chamei foi VOCÊ!
— Tá, o que ainda tem pra fazer aqui? - Marcos era bom em conter a raiva, mas não o sarcasmo.
— Tem o terraço pra varrer e a louça pra enxugar.

Marcos, do seu quarto olhou para a madrasta. Seu cabelo amarelo estava mal cuidado, porém mantinha-se amarrado em um rabo de cavalo. A pele de uma coloração mais queimada em nada ajudava a esconder os traços de velhice que, no auge de seus quarenta anos, já apareciam. Ela andava sempre com a coluna reta, olhando em cada canto da casa para achar uma imperfeição. Sua voz era, de certo modo, grossa, ríspida, nem um pouco calorosa.

E somente a visão dela deixava Marcos com mais raiva ainda. Enquanto ele a via andar para lá e pra cá, recolhendo colheres pequenas e pires em todos os lugares possíveis, Marcos pensava em todas as vezes que ele queria paz. Ela sempre aparecia lá para atrapalhar ele. Toda a vez que ele estava fazendo algo importante ela aparecia e o chamava de preguiçoso, fazendo questão de espalhar isso vizinhança afora. Ela o mandava fazer serviços caseiros, gritava com ele, o retirava de seus estados de conforto e tentava fazer a cabeça do pai de Marcos, que sempre acreditava em cada palavra dela.

Ele olhou para uma faca suja de legumes encima do armário, ao lado de um pano de prato. Ele sabia o quão afiada essa faca era, tento que ele já havia se cortado somente por dar um leve toque na lâmina. Se um leve toque fazia isso, que diria um golpe? Ele se aproximou do armário. Olhou para a faca, lançou um relance à sua madrasta, quando ela se abaixou para pegar uma colher que caíra. O pescoço dela ficou vulnerável. Marcos estava de frente para a faca e a encarando profundamente.

Quando ela percebeu o olhar, virou-se. Marcos desviou os olhos, com mais raiva ainda. Novamente fitou a faca. Pensou em tudo de ruim que ela tinha feito pra ele.

Respirou fundo. Fechou os olhos.

— Eu enxugo - pegou o pano


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Notas finais do capítulo

>pra quem ta confuso, Marcos é uma personagem que eu deveria ter introduzido desde o cap. 14
>esse cap se passou um pouco antes de Fernanda acordar na casa dela
>próximo cap vou por datas e localização pra ajudar na identificação dos lugares
>vou introduzir vários outros personagens importantes até o capitulo vinte e cinco
>se você gostou deixe sua opinião
>se não, diga onde posso melhorar e tals
>é isso e até a próxima sz beijo no core



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