A Chuva dos Sete escrita por Lia


Capítulo 19
XIX - Quando os monstros mostrarem as garras, corra




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Levantou os olhos no mesmo instante, desejando encontrar o tritão parado em sua frente, pronto para erguê-la de todo aquele pesadelo contínuo que insistia em mantê-la entre a loucura de sua mente e a imensidão do mundo real. Mas não pôde. Nada disso aconteceu. Isaac não estava em sua frente, pronto para ajudar ela, muito pelo contrário, ele continuava jogado no quarto daquela paciente que Laurel via a dias atrás, esquisita e parecendo um zumbi. Tentando erguer seu corpo, sem sucesso. A figura alaranjada de capuz a encarou por segundos, com aqueles olhos completamente cinzentos e a pele brilhando como estrelas em uma noite; ele começou a caminhar na direção dela, que, ao mesmo tempo em que o homem avançava, a cidadã recuava para onde não havia espaço, pois já estava com o corpo todo apoiado na parede.

— Laurel? — Disse o encapuzado, cambaleando para frente na medida em que seus olhos e pele voltavam ao normal, ele passou o dorso da mão por de baixo do nariz e limpou o líquido verde esquisito.

— Mas que porr...? — Ela tentou dizer, apoiando-se no mármore na tentativa de se levantar, foi apenas virar o rosto na procura de Isaac que uma alfinetada de dor perseguiu todas as suas veias e artérias, como um pequeno vírus penetrando em seu corpo, ela não podia fazer nada sobre. — Nick?!

— Firme e forte... — Balançando a cabeça negativamente ele sorriu, puxando o manto para baixo e deixando com que suas asas negras crescerem para o lado, grandes o suficiente para abraçar todo aquele andar — E tonto.

Cambaleou de um lado para o outro antes de chegar nela, tentando manter-se em pé. Era difícil fazer tanto esforço depois de ter usufruído daquilo que não deveria. Ergueu o palmo para frente, as veias de sua mão estavam ressaltadas e a dobra de seus dedos vermelhas, como se ele estivesse carregando caminhões apenas naquela parte do corpo.

— Como... O que... Você... Você... — Laurel gaguejava mais do que achava que iria, seus olhos lacrimejavam, mas não eram por tristeza ou insegurança, era por dor. Tudo nela parecia ser uma montanha russa que apenas descia, não tinha as emoções boas de quando estava subindo. O ferimento em sua nuca parecia ficar cada vez mais profundo, sentia que mil abelhas perfurassem aquela região a cada segundo que passava. — O que é você?

— Longa história para pouco tempo — Nick segurou a mão dela com força, virando de costas e fazendo um sinal com a cabeça para que ela subisse nele — Precisamos sair daqui!

— O que? Não, não precisamos! — Bateu o pé no chão, virando-o para ela de novo e o encarando com tanto seriedade que duvidou poder fazer tudo aquilo sem ao menos dar um sorriso — Precisamos do Isaac. Ele sumiu quando você... Bem... Sei lá o que você fez, mas ele sumiu!

— Estão falando desse peixinho de aquário aqui? — Uma voz feminina invadiu o espaço dos dois, trazendo consigo o tritão, envolto por seus braços e de olhos fechados.

Ela tinha uma característica similar a Nick, provavelmente por serem irmãos. Tinham as mesmas asas enormes e pretas, os olhos da mesma cor e uma altura razoavelmente igual; a pele dela era morena, como um bolo de laranja que ficava tempo demais no forno, o nariz empinado e o cabelo descia em cachos até os ombros, bagunçados e de um tom castanho claro. Usava o mesmo manto laranja e os olhos se tornaram verdes no passo em que a fala saía de sua boca ferida. Vestes pretas cobriam todo seu corpo, menos os braços, que demonstravam tatuagens desconhecidas na visão da loira. Seu cinto era coberto por frascos com líquidos de cores diferentes.

— Sam — Advertiu o mais velho, evitando rir do comentário dela. Dirigiu-se a Laurel novamente, içando sua mão para ela, sem paciência — Satisfeita?

— Sou uma menina de muitos pedidos, isso foi apenas um deles — Ela não sorriu. Caminhou aos poucos até o amigo e segurou seu rosto pelas bochechas, rezando em mil religiões antigas para que ele estivesse vivo — Ei... Você está bem, não está? Me diz que sim, por favor. Acorda!

— O peixinho está bem, relaxa — Assegurou a novata, erguendo o moreno um pouco mais para cima, longe dela — Ele está fingindo de morto. É estranho.

— Não é estranho, é original — Disse o tritão, desvencilhando-se dos palmos cobertos dela e saltando para frente, envolvendo Laurel em um abraço aconchegante, aquilo o deixava feliz demais — Pensei que estava morta!

— Que merda de plano foi essa, Isaac Silveryx?! — Gritou com ele, empurrando-o pelos ombros até se chocar com a parede, arrancando uma careta de dor em sua parte — Esse era seu plano perfeito?! Pensei que nós íamos morrer, idiota!

— Ai, ai! Vai com calma! — Tentou segurar os punhos dela, enquanto ouvia novos xingamentos nunca dirigidos a ele — Isso não fazia parte do meu plano! Era para o Luccas e Chace estarem aqui! A patrulha salvadora, cara!

Os irmãos alados bocejaram. Cada um agarrou um adolescente por vez, içando um voo perfeito e equilibrado pelo quarto da Ala mais perto, deixando a janela em estilhaços ao passar por ela sem nem se preocuparem em abrir. Laurel e Isaac ficaram quietos, calados, apavorados. Era uma altura tremenda, quase podiam sentir seus ouvidos estalando e os olhos lacrimejando com o vento forte e gelado que atingia seu rosto. Em uma olhada de relance, todos desejaram sumir; Guardiões armados e prontos para a batalha invadiam a A.H.B., na provável procura pelos gêmeos, que destruíra tudo que passava até aquele momento. As ruas perfeita estavam reduzidas a rachaduras gigantescas, barracas de comidas eram apenas estilhaços, pessoas desesperadas rodeavam a Ala, na procura dos delinquentes que fizeram todo esse estrago. A loira quis berrar e soltar-se dos braços do anjo, mas, se o fizesse, despencaria para a morte. Queria tanto livrar-se e acordar de todo aquele pesadelo contínuo que estava vivendo, fugir e desistir dos desafios que surgiam para ela todos os dias.

Foram mais poucos minutos presa no ar para chegarem ao castelo. Após sobrevoarem todos os Guardiões Reais que cercavam o perímetro, as asas dos irmãos foram envoltas por cabos de aço, juntando-as tão perto que pareciam ser uma só, aos poucos, eles foram perdendo a velocidade e, dos maiores medos que aqueles quatro adolescentes tinham de sua possível morte, cair em um jardim bonito, no castelo Boodlaire, não era um deles. Com centímetros perto do chão, a armadilha que mantinha os dois presos se esticou, puxando ambas das asas para a esquerda e direita de um jeito tão brusco, como se fosse arrancá-las por simples maldade e vontade. Nick sentia algumas penas serem arrancadas de sua pele, no passo em que sua coluna se envergava para frente para trás. Ele ainda segurava Laurel pela mão, tentando manter ela junto a ele. Gritos agonizantes de sua irmã o deixavam louco, via penas negras com pingos de sangue cair ao lado de seu rosto, a essa altura, não sabia se eram dele ou dela.

— Pelas presas de Souzie! — Berrou alguém atrás deles. Os cabos foram desativados e o grupo caiu na grama em segundos. A vampira correu até os novatos e tentou manter a calma, com tanto sangue ao redor, teve que se afastar — Vocês não são pássaros...

— Princesa Clarie... — Isaac gemeu, estalando seu pescoço, dedos e coluna — Que... Belo jeito de caçar...

— Caçar? — Acompanhou o amigo, tirando os fios amarelos que caíam em seu rosto — Estou perdida.

— É uma armadilha para pássaros — Os olhos dela começaram a ficar cada vez rubros, as presas se alongaram para frente e veias subiram pelo pescoço até chegar perto dos olhos. A princesa deu uma risada nervosa, tentando se controlar — É melhor do que me alimentar das crianças do vilarejo.

Um garoto chegou correndo, o rosto sujo e suado, braços para fora por sua camiseta rasgada permitia isso. Um machado balançava perto dos ombros, mal vira a cena e já avançava mais rápido na direção da ruiva, que controlava-se para não avançar nos feridos. Daryl apanhou Clarie pelos ombros e deu um beijo simples em seus lábios gelados, segurando-a pelas mãos e se afastando mais rápido o possível do aglomerado.

— Ei, princesa, não surta aqui — Disse o caçador, colocando uma mão na nuca dela e outra na cintura. Dava passos um maior do que o outro, até fixar os olhos nos do tritão, deixando os nervos do garoto marítimo a flor da pele, apenas pelo jeito medonho que a aura dele transmitia — Ei, garoto do mar, leva os dois para dentro do castelo e não deixe ninguém te ver. Não quero levar a culpa pelas cagadas que fazem.

— C-claro... E-eu vou. — Engoliu seco, apoiando Nick nos ombros e indicando um lugar qualquer para Laurel o seguir, enquanto ela apoiava Samantha em seu corpo pequeno e magro, mas forte o suficiente para ela — V-vem comigo, pelo amor de Netuno.

Ela não sabia que ria da reação dele ou apenas o puxava para um abraço, com pena de todo aquele medo que percorria dentro dele. A dupla entrou nos fundos do castelo, se deparando com três guardas, todos armados com lanças e espadas longas presas na bainha de sua armadura. Ambos estavam virados para o lado contrário dos dois, mas, foi apenas o cheiro dos alados invadir o cômodo, que os sentido deles ficaram apurados de um segundo ao outro. Laurel mordeu o lábio inferior e, com uma gingada de cintura, procurou se esconder atrás de uma pilastra gigantesca de mármore, com esculturas do rosto de toda a família real. Sam parecia ganhar alguns quilos a cada respiro profundo que ela dava, como se seu pulmão estivesse lotado de chumbo e pedras pesadas. Uma pontada de dor quase fez com que as pernas da garota que a carregava vacilasse, com isso, seus sapatos fizeram um ruído pequeno, mas o suficiente para chamar a atenção de um Guardião. Ele caminhava de um modo pesado, fazendo com que o aço de sua armadura rangesse e deixasse um eco profundo.

— Ei! — Sapatos de salto alto desciam as escadarias com calma, o tilintar breve acompanhava a princesa em seus passos — Minha mãe precisa de vocês.

— Vossa Alteza — Um deles disse, fazendo os outros se reverenciarem, todos em sincronia e só levantaram quando ela assentiu — A... Rainha Boodlaire?

— E quem mais seria minha mãe, senhor Guardião? Eu tenho mais de uma? — Segurou uma risada, percebendo o quão ele havia ficado orgulhoso apenas com o “senhor” dito por ela.

— Não! Claro que não, Alteza! — Subiu o capacete para o rosto de novo, fazendo sinais com o dedo para que a patrulha o seguisse novamente, sem falar mais nada, a tropa seguiu por um corredor amplo, largo e cheio de quadros incríveis.

— Já podem sair de onde se encontram, garotos — Anneliese brandiu o peito com a insígnia oficial do Vilarejo Sunshine, o vestido branco ia até o piso e as rendas feitas por suas criadas ressaltavam sua pele esbranquiçada. Os olhos de cereja perseguiam eles ao sair de seu “esconderijo”, a loira quase desabou com aquele peso, teve que ser resgatada pela princesa, deixando-a sustentar Samantha sozinha, sem nem precisar de esforço.

— O sangue... — Gemeu Isaac, tombando com Nick para o lado. O garoto já era pesado, agora tudo pareceu triplicar, ele estava incrivelmente pesado — Você vai surtar também, Vossa Alteza!

— Não sou tão imprudente como minha irmã, jovem — Tão rápida como um raio, ela apoiou o outro alado também em seus ombros, ficando com os dois ali — Irei levá-los para a nossa Ala particular, vocês irão resgatar seus amigos que aqui estão presos em nossas masmorras. Minha águia os levará lá, ela irá protegê-los.

— Espera... E como sabe disso? — Laurel arrependeu-se no mesmo instante de ser tão indelicada com descendente de todo aquele incrível lugar.

— Escuto Clarie falando com seu namorado de vez em quando... Não que eu queira ou tenha ciúmes, eles só falam alto demais. Vão rápido!

— Espera! — Agora fora o tritão quem a interrompeu na corrida, apontando para os gêmeos — Por que eles ficaram mais pesados na medida em que andávamos?

— Vocês o machucaram, cada passo dos dois era mais um esforço em seus ferimentos — Anneliese disse, sustando-os e mantendo a postura ereta — Eles são anjos. Anjos, quando estão feridos, são agarrados pelas mãos de seus criadores e puxados cada vez mais para baixo. Como se todo seu sangue fosse substituído por um líquido tão pesado quanto eles próprios. Dizem que é para seus inimigos deixarem eles em paz, são criaturas divinas, não merecem ser machucadas.

Não esperou que os dois respondessem e iniciou uma corrida para salvar os irmãos Tellmarin.  Foi apenas esperar um segundo para um pássaro surgir voando de rasante por cima da cabeça do casal, deixando com que seus pés o seguissem sem nem ter a ordem para andar, Laurel se perguntava se aquilo era algum tipo de magia vampírica ou a princesa Anneliese os haviam amaldiçoado por serem tão repugnantes como cidadãos. Ficou assustada em pensar o que seria deles se dessem um passo em falso, mas não poderia negar a ajuda, precisaria salvar Valentine. Só não sabia como.

Foram questões de minutos para serem guiados até as Masmorras. Ficavam no fundo do fundo do castelo, atrás de paredes que se mexiam sozinhas e tijolos que caíam sem nem terem encostado. Eles passavam pelos Guardiões como se fossem insetos, sem serem enxergados e sem nem conseguirem pensar em algo que não fosse esbarrar em algum deles. Estavam invisíveis. Não sabiam o que aquela águia havia feito ou como estava sobrevoando tudo aquilo sem condená-los a uma passagem só de ida para as Masmorras, mas queria que ela não parasse de bater aquelas asas divinas.

O animal soltou um grunhido alto, fazendo Laurel e Isaac caírem de joelhos nas pedras cinzentas e limpas daquele lugar totalmente iluminado, que deveria causar arrepios a muita gente, sendo que era um espaço gigantesco, sem janelas, porém com uma claridade divina descendo de feixes desciam do teto fechado. As leis da física não aprovavam nada daquilo. As celas tinham grades brancas e enfeitadas com algo verde, talvez desenhos, eram tão pequenos que ficava difícil de saber o que significava. Não havia nenhuma criatura ali, apenas aldeões, a maioria eram homens. Eles caminharam por algum tempo, atraindo olhares desconfiados e gritos de um dos “criminosos”, o menino passou um dos braços ao redor da cintura de sua amiga, puxando-a mais para perto dele, caso precisasse protegê-la de alguma coisa, alguém ou até mesmo algo. Apurou seus sentidos para tentar reconhecer o rosto dos amigos em meio a toda aqueles desconhecidos.

— Isaac?! — Espantou-se Serena do fundo das Masmorras, colocando as mãos ao redor da grade e acenando para eles. Ao lado dela, Lara agarrava-se em sua cintura, o nariz avermelhado e os olhos marejando derrubar as lágrimas que ela recusava a expulsar.

— Serena! — Ele soltou a loira, correndo até a cela e segurando a mão da irmã, em seguida, seu rosto — Pelo amor de Netuno, eu pensei que... Pensei que...

— Lau? — Outra voz, desta vez, doce e gentil, chamou a atenção de Laurel e a tirou de seus devaneios do dia-a-dia. Valentine sorriu ao vê-la, grata pela menina estar bem, aténs de conseguir abraçá-la, ergueu os palmos para ela recuar — Vocês tem que sair daqui! Agora! Eles já devem estar...

A enfermeira foi interrompida por um rugido descomunal de dentro do castelo, seguido de gritos apavorados e de barulhos dos móveis se quebrando. O grupo não conseguiu nem pensar, ao passo de que a princesa Clarie apareceu na entrada do lugar, as unhas erguidas, os olhos tão vermelhos quanto hoje de manhã e o pescoço arranhado. Ela rugiu de novo, parecendo um leão, erguendo as presas e a linha de sangue desceu pelo canto de sua boca. A vampira estava pronta para um banquete e o cardápio incluía sangue de adolescente.


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