O Copiador escrita por JG Lourenço


Capítulo 1
Parte 1 - A Mudança




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Trechos retirados do diário de Joseph Doss:

“Não vou enrolar muito sobre o que está acontecendo comigo, mas é melhor que fiquem todos sabendo, pois eles vão vir atrás de mim, a Instituição vai me caçar até verem o meu sangue espalhado em algum galpão escuro, até o último fiapo de vida sair do meu corpo. Eu matei, mas não era eu. Bem era eu, mas não era a minha aparência, algo deu errado na mudança. Mas eles vão saber que foi eu, eles sempre sabem. Tem algo errado comigo, algo mais do que errado. Já não basta ser uma aberração da natureza — sem ofensas aos outros da minha espécie, mas é minha opinião — ainda tem que ter algo de errado comigo. Eu não consigo lembrar-me de tudo, mas eu tenho certeza. Tem algo muito não natural em mim - se é que posso me chamar natural — e isso está matando por aí.”

“Aconteceu de novo, aconteceu de novo e eu não sei o que fazer. Estou com medo, com muito medo. Eles estão chegando mais perto ainda, eu sei. Hoje de manhã acordei em volta de membros, não corpos, membros. Eu estava sujo de sangue até o cabelo e o pior: cada membro tinha o símbolo da Instituição. Por favor, eu não quero ser caçado, não quero morrer, não desse jeito. Não pelas mãos dos caçadores da Instituição. Eu não quero ter minha pele arrancada do meu corpo, ter meus membros estudados e dissecados como se eu fosse um sapo em uma aula de biologia. Que Deus — ou o Diabo — me salve.”

Fim dos trechos retirados.

Dias antes disso.

Joseph correu em direção ao beco e enfiou-se em algum canto escuro, esperando que eles passassem sem notá-lo. Seu coração estava prestes a sair pela boca e ele respirou fundo, tentando acalmar-se, como se apenas os seus batimentos cardíacos chamassem a atenção. Ele ficou escondido atrás da caçamba de lixo, aonde a luz não chegava, o cheiro estava horrível, ele conseguia ouvir ratos perambulando por aquela parte, mas isso não o preocupou. Só se preocupava com o par de policiais que estavam o procurando.

Tinha sido uma falta tremenda de sorte. Joseph estava faminto, tão faminto que sua barriga doía de fome, estava começando a ficar fraco e desorientado e isso não é bom para quem vive na rua, então o desespero falou mais alto. Ele pegou uma arma emprestada do seu amigo e prometeu usá-la para levar comida para os dois, estava assaltando o mercado de esquina quando os dois policiais entraram, Joe ficou nervoso e disparou a arma sem querer, atingindo o dono da loja na barriga. Puro azar. Ele não conseguiu o dinheiro para comida e ainda tivera “seu” rosto memorizado por policiais, além disso, estava gastando o último lote de energia que ainda sobrar em seu corpo. Ele ficaria acabado depois dessa.

— Eu acho que ele foi por aquele lado! — Ele ouviu a voz do homem falar.

— Não, ele definitivamente foi por aqui. — Contra-argumentou a mulher, apontando para outro lado diferente. — Ele não seria burro o suficiente para ir por aquele caminho, está muito claro. Por aqui é mais escuro.

Joseph conseguiu vê-los passar pelo beco.

— É, acho que você tem razão...

Os dois foram embora e Joseph conseguiu finalmente soltar sua respiração. Ele tinha que achar outra pessoa para copiar, não podia ficar com o “seu rosto original” agora, precisava de outro. Ele havia copiado aquele cara fazia anos, ele era seu colega no orfanato e muito mais bonito, Joe pegou aquele rosto depois que o garoto passou dias desaparecido. Todos ficaram alegres quando a polícia o achou alguns dias depois, perdido na rua, morrendo de fome e ninguém ligou quando o deformado Joseph Doss desapareceu. Ele estava com esse rosto desde então, nunca havia precisado mudá-lo até agora e se sentia confortável desse jeito. Entretanto, antes de mudar ele tinha que fazer uma despedida, nunca se sabe quanto tempo vai demorar, não é?

Ele saiu do escuro e enfiou a arma dentro do bolso interno do casaco, esperando que ninguém a notasse, o fechou e começou a sair do beco. Primeiro ele iria se despedir do seu amigo e devolver a arma, depois iria dar um beijo de triste amor e por último, e mais importante, achar uma pessoa para copiar.

***

Ele chegou embaixo da ponte e foi procurar o lugar que sempre ficavam, um pouco perto do rio, numa antiga sala de controle que estava abandonada. Deu uma batida secreta e a porta se abriu, revelando um jovem ruivo, com roupas grandes para o seu tamanho, mas surpreendentemente limpo — eles tomavam banho no rio. Ray olhou para Joseph com ansiedade e olhou para o amigo dos pés a cabeça.

— O que houve, cara? — Ray perguntou e estendeu a porta para Joe passar. A antiga sala era pequena e suja, dois colchões ficavam ali e eles tinham um cadeado para fechar o lugar por dentro, era uma regra deles: sempre devia ter alguém dentro. Eles tinham sorte por ter esse lugar, se saíssem dali por um segundo alguém tomariam o local.

— Eu dancei, velho. Eu estava fazendo o assalto quando dois policiais entraram, eu entrei em pânico e a arma disparou, eu acertei o dono da loja. — Ele falou tudo com um só fôlego e tremendo de nervosismo. — Eu tenho que sumir, cara.

Ray ficou calado enquanto ouvia tudo e respirou fundo, logo depois ele assentiu com a cabeça e passou as mãos pela cabeleira ruiva. Joseph passou por ele e pegou sua mochila que não tinha nada além de um caderno e algumas canetas e uma garrafa de água.

— Tudo bem. É melhor você voltar quando a poeira baixar. Onde vai ficar?

— Eu ainda não sei, eu me viro. — Joe tirou a arma do casaco e estendeu para Ray. - Tome, vim te devolver isso.

Ray a pegou e logo depois estendeu a mão para o amigo, Joseph conseguiu enxergar as marcas das agulhas na veia do braço. Ray era um viciado em heroína, a família o havia expulsado de casa e foi desse jeito que ele viera parar naquele lugar. Era o amigo mais duradouro que Joe já tivera e era uma pessoa de confiança.

— Você já avisou a Natalie? — Ray perguntou. — Ainda não sei como conseguiu aquela garota, cara...

Joseph balançou a cabeça e deu um sorriso cansado.

— Eu também não sei. Ela é minha próxima parada.

Ray estendeu a mão para Joseph, que a apertou forte e respirou fundo.

— Se cuida, Ray.

— Você também, Joey. — Ray soltou a mão do amigo e suspirou. — Agora some daqui antes que eu chore, vai.

***

Ele virou a rua e parou na esquina, havia chegado. Joseph respirou fundo, subiu as escadas da frente e bateu na porta, sabendo que aquele momento não seria fácil para ele e muito menos para ela.

Joseph havia conhecido Natalie no metrô, ela havia chamado sua atenção por causa dos curtos cabelos negros, a boca carnuda e um sorriso cativante. Ele meio que estava encarando ela quando seus olhares se cruzaram, os dois sorriram e aí começou. Isso já tinha ocorrido há dois meses e ele já estava perdidamente apaixonado por ela, o que tornaria o que estava prestes a fazer pior ainda. Como conseguiria viver sem o sorriso dela para lhe guiar? Eles eram de mundos diferentes, ele morava na rua, ela era filha de uma professora de piano, um contraste, uma diferença, mas o mesmo intenso amor.

— Oi, Joe! - Ela sorriu e o abraçou forte quando o viu. — O que está fazendo aqui essa hora, amor?

Ele respirou fundo e controlou suas emoções, as lágrimas queriam subir para os olhos, a voz estava ficando embaçada.

— Eu vim me despedir... — Uma lágrima desceu pelo rosto dele e Joe começou a tremer levemente. — Aconteceu algo e eu não posso mais ficar com você. Desculpe-me, me desculpe, Natalie.

É claro que ela não sabia o que ele fazia para sobreviver na rua, ele havia falado que crescera em um orfanato e que agora morava por aí, mas se ela soubesse o que ele fazia... Estava perdido. Pelo menos desse jeito ela não o odiaria.

— Como assim, Joey? — O rosto dela começou a ficar vermelho. — O que aconteceu? Deixe eu te ajudar!

Ele levantou os olhos, as lágrimas descendo pelo rosto.

— Você não pode me ajudar. — Ele falou e roubou um beijo dela. — Eu te amo, me perdoe. Me perdoe.

E então ele saiu correndo dali.

***

Joseph estava encostado na parede fora do bar, ele não tinha dinheiro suficiente para comprar uma bebida, então era melhor ficar ali mesmo. Tinha que escolher a pessoa que copiaria, mas não podia ser qualquer pessoa, claro que não, se pudesse seria bem mais fácil. Tinha que ser um Zé-ninguém, um cara que ninguém sentisse falta, que não tivesse família ou coisas desse tipo, precisava de um perdedor. Por isso estava esperando ali, ele já havia escolhido. Era uma das primeiras coisas que fazia quando chegava a uma nova cidade, escolher alguém que serviria de escape quando alguma coisa desse errado. Joseph nunca precisara disso — ele era cuidadoso, nunca precisar copiar mais alguém além do seu colega de orfanato —, porém era sempre bom ter um plano reserva. Aprendera isso com Mark, o único metamorfo que havia conhecido em sua vida. Mark o ensinara várias coisas da sua espécie, inclusive como achar outros, se precisasse. Joseph tinha o número emergencial que Mark lhe dera gravado em sua mente, caso algo desse errado com sua “transformação” ou para qualquer outra coisa. Ele também o havia falado da Instituição — humanos que matam seres sobrenaturais — e do Conselho — os representantes mais poderosos de cada raça sobrenatural. Esse não era um mundo pelo qual Joseph Doss estava ansioso para participar.

Mark havia sido morto três meses depois que o conhecera, pela Instituição. Joseph conseguira escapar por pouco.

Anthony Sullivan saiu pela porta do bar praticamente tropeçando entre seus pés, usando uma jaqueta preta que fedia a cigarros de longe e calças jeans rasgadas nos joelhos, ele tinha o cabelo comprido até o pescoço e segurava uma garrafa de uísque barato. A porta bateu atrás dele e Joseph o ouviu resmungar alguma coisa com um palavrão.

— Eu nunca mais volto nessa pocilga! — Ele gritou à porta. — Seus merdas! — Anthony cuspiu na porta e começou a ir embora. — O que você está olhando, imbecil? Vai arranjar uma rola pra engolir. — E prosseguiu cambaleante.

Estou olhando para o meu novo corpo, pensou Joe e começou a seguir o rapaz. Tinha um motivo para ter escolhido Anthony: ninguém o suportava. Ele não era amado ou odiado o suficiente para alguém questionar seu desaparecimento, nem suportado para conseguir ter alguém por perto. Era uma vítima quase perfeita se não fosse pela bebedeira idiota, mas Joseph teria que se acostumar com isso, sempre se acostumava com as coisas. Anthony tinha um corpo forte e esbelto e era bonito — Joe nunca mais queria ser feio para alguém —, tinha que ser ele e Joseph não podia demorar.

Continuou seguindo Sullivan até o prédio em que ele morava, ele estava zonzo para abrir a porta, não conseguia achar a fechadura, mas finalmente a abriu. Anthony estava tão bêbado que não percebeu que deixou a porta aberta, Joseph sorriu com a oportunidade e passou pela porta. Não havia ninguém na portaria, o mundo conspirava ao seu favor, estava tudo dando certo. Ele tinha que esperar o momento certo para tirar o seu velho corpo e tocar Anthony para copiá-lo. O elevador chegou e o outro entrou desequilibrado, Joseph também entrou e a porta estava para se fechar quando outra pessoa chegou. Um homem de no máximo vinte e cinco anos, usando óculos de armação redonda, cabelos loiros, barba rala e olhos castanhos, usava uma bolsa carteira. Parecia um estudante.

— E aí pessoal? — Ele cumprimentou com simpatia. — Noite fria, não?

Joseph o ignorou.

— Fria o cacete. Eu to mais quente que o inferno. — Anthony respondeu rindo e tomando um gole do uísque barato, fazendo uma careta feia logo depois. — Essa porra queima pra caralho.

Anthony riu sozinho e cambaleou dentro do elevador, ficando perdido por um momento. Ele ia caindo em cima do rapaz loiro, mas o mesmo o segurou antes disso e o amparou, entretanto o peso de Anthony fez o rapaz andar para trás e bater no botão de emergência, o elevador parou e as luzes se apagaram por um breve instante.

É agora, tenho que ser rápido. Está na hora de uma nova vida!

Joe sentiu sua pele descamar e sair de seu corpo, revelando assim sua verdadeira identidade. Fechou seus olhos por um segundo e lembrou-se de como verdadeiramente era: o rosto desfigurado, o corpo deformado e corcunda, olhos muito claros, quase brancos — sempre pensaram que ele nascera cego —, os dentes pontiagudos, mãos pegajosas. Estava na hora de deixar aquilo para trás novamente, estava na hora de tornar-se outro alguém.

Joseph Doss respirou fundo, estendeu as mãos e foi copiar Anthony.


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Notas finais do capítulo

A história será dividida em três partes e já estão todas prontas. Serão postadas até o fim da semana.



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