Linguística escrita por Bluebell


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Olá, simpáticos leitores!

Qualquer um que já tenha sido obrigado a aprender um idioma na marra e in loco vai se identificar muito com essa fanfic. O texto a seguir contém moderada quantidade de estrangeirismos, mas todas as palavras gregas estão romanizadas, ou seja, nada de alfabeto grego por aqui.
No mundo cor-de-rosa do enredo, os cavaleiros representados são adolescentes e não existem crianças vestindo armaduras.

Boa leitura!



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– Aiolos, preciso de um favor seu, se não se importar.

O cavaleiro de Sagitário apenas assentiu, disfarçando a apreensão com um sorriso. Todas as vezes em que o Grande Mestre aparecia com a testa franzida e uma demanda, era quase certo que perderia muito tempo executando algo que o próprio Patriarca deveria estar resolvendo.

O regente fez um sinal e Aiolos desajoelhou, acercando-se do trono.

– A verdade é que o menino Shura precisa de um favor seu. - Shion corrigiu-se, falando em tom baixo. - Shura, sabe? O Cavaleiro de Capricórnio.

Aiolos meneou a cabeça mais um par de vezes, agora intrigado. É claro que sabia bem quem era o indivíduo - coincidentemente, seu vizinho. Mas, por mais óbvio que soasse, não se podia condenar o mestre por sua pergunta, afinal, o rapaz não tinha amigos. Na verdade, nem ao menos interagia com outras pessoas. E não era como se Aiolos não tivesse tentado falar com ele em uma ou duas ocasiões (ou várias) sem sucesso; o mesmo fracasso sucedera com seus colegas. Portanto, não pareceria estranho se muita gente sequer soubesse seu nome.

Ou se muita gente não fizesse questão de tal. Com efeito, Capricórnio não respondia a qualquer um com mais de meia-frase resmungada e um olhar vago - repelia a todos através daquela sua simpatia que começava a ganhar fama. Duas semanas no Santuário, e já o apontavam como o cavaleiro de ouro da nova geração mais esquisito e mal humorado.

O que talvez não fosse de todo verdade. Aiolos apostava que ele só era tímido, muito embora já houvesse sido vítima de seus entortares de boca e olhares atravessados. Otimista incorrigível, concordou em ajudá-lo.

Trato feito, o mestre desatou a contar a história absurda de como Shura havia sido sagrado cavaleiro de ouro e convocado a morar no Santuário sem ser alfabetizado em grego.

– O mestre dele também não sabia ler e escrever na nossa língua, e você sabe como são esses espanhóis... - Shion espanou o ar com um ligeiro tom de desagrado.

O problema é que Aiolos não sabia. Mas se apiedou tanto do garoto isolado - que era quieto porque não dominava o grego moderno, vejam só! -, que acabou aceitando o pedido do mestre para ensiná-lo Ellinika, a língua oficial de Atena.

– Vai ser uma função difícil, já estou avisando.

– Vossa Santidade a deu à pessoa certa. Não se preocupe. - e Aiolos dizia aquilo com perigosa autoconfiança.

Shion concordava com ele, mas nada disse. Deixou que descobrisse por si o trabalho de Hércules que o aguardava.

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Shura era todo estrangeiro, a começar pela pele branca de quem tinha vivido boa parte da vida nas montanhas, e que principiava a corar debaixo do sol da praia onde se refugiaram para a primeira lição. Aqueles olhos rasgados também não se relacionavam a nenhuma etnia nativa da região, muito menos seu nariz e lábios finos. Não se podia dizer que era exótico, tal Mu ou Shion, no entanto, se notava bastante seu biotipo diferente.

E quando ele falava, então, não restavam dúvidas. O seu grego era arcaico e péssimo, e o sotaque forte, um agravante. Falava com as vogais abertas, como se fosse começar a gritar a qualquer momento, e havia aquele "N" arrastado e o "R" pronunciado de uma forma impossível, quase vibratória.

Os erros que disparava distraíam Aiolos tanto quanto sua compleição atípica.

– Então o Patriarca acha que meu grego não é bom o suficiente... - Capricórnio suspirou longamente, algo humilhado, e Sagitário perguntou-se como alguém podia se afetar tanto com tão pouco.

– Você vai melhorar! É só uma questão de prática.

– Se fosse só uma questão de prática, Shion não teria pedido a você que me ensinasse.

Shura estalou a língua, algo entre nervoso e irritado. Ele tinha essa curiosa mania: a de abrir suas justificativas com aquele ruído. Mal percebia o quão rabugento aparentava; um tipo de rabugice engraçada.

– Eu não entendo. Meu mestre me disse que o mundo inteiro falava espanhol e que eu jamais precisaria me preocupar em aprender outras línguas.

Aiolos perdeu as palavras por um momento. Em que lugar do planeta um cavaleiro de Atena considerava desnecessário saber grego?

Aparentemente, na Espanha.

– E de que maneira ele lia e escrevia os relatórios?

– Tinha uma menino grego na vila...agora entendo porque o mestre o tratava tão bem. - o moreno falava como alguém passado para trás, o que era bastante cômico e até adorável.

"Ele não se parece com o tipo de pessoa má", impressionava-se Aiolos, que era o tipo de pessoa incauta a ponto de confiar em primeiras impressões. Resultaria catastrófico, se não fosse o fato de que sempre acertava em sua intuição.

Naquele instante, apostava que seria bem recompensado pelas aulas.

– Não sofra mais, apenas concentre-se em aprender. - o arqueiro abriu um sorriso encorajador. - Há duas regras a serem levadas em consideração antes de começarmos. Primeiro: esqueça o grego clássico. Mesmo aqui, onde Judas perdeu as botas, evoluímos e adotamos o grego moderno.

Shura lançou-lhe um olhar ferido. Isso significava anular praticamente todo o seu parco conhecimento sobre a língua.

– Em segundo lugar: quando não souber o que dizer, tente se expressar com gestos. Sempre funciona. Na Grécia, a gente se comunica em grande parte com as mãos.

E quanto a isso, Shura poderia ficar tranquilo. Nenhum povo no globo terrestre gesticulava mais do que os espanhóis. Bem, talvez os italianos.

– Agora, vamos iniciar pelo básico... - Aiolos pôs-se a riscar o abecedário na areia da praia com um graveto .

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É claro que Shura enlouqueceu. Primeiro, porque o alfabeto era algo surreal - com formas bizarramente distintas em maiúsculo e minúsculo, cheio de retas, curvas, pernas e círculos enfeitados - e as letras nunca correspondiam aos sons que sua lógica relacionava.

A letra mais odiosa era uma que se parecia com um raio, e que, evidentemente, ele não conseguia pronunciar. Em caixa alta, se parecia com um "Z"...e ocorria que Shura era da região de Castela, onde nenhum zumbido fazia parte do dialeto local. No seu pueblo, o "Z" era pronunciado com um movimento nem tão discreto da língua contra os incisivos, um sibilo suave. Toda a vez em que a tal letra dseda aparecia nos textos que liam em voz alta, os olhos de Aiolos desciam até sua língua metida entre os dentes e era impiedosamente corrigido.

A fonética, aliás, foi outro capítulo difícil. Nada era o que parecia. "P" era "R", "X" era "J", e "B" era "V" (outro som que Capricórnio teve que aprender). O delta não era um "D" - reproduzia-se como uma consoante arrastada, quase um resvalar da língua nos lábios e bem diferente do som firme a que Shura estava acostumado. O gamma estava mais para uma mistura de "Y" e "G", a menos que se encontrasse uma dupla delas; só assim era autorizado colocar ênfase na metade consoante.

E também havia as combinações que não faziam o menor sentido. A maioria dos ditongos, por exemplo, soavam como "I", mesmo tendo outras vogais envolvidas. Como uma pessoa alfabetizada em espanhol, um idioma em que quase tudo que se escrevia era exatamente como se falava, Shura achava um desperdício usar duas letras num único fonema.

Também não conseguia assimilar como um ponto-e-vírgula poderia expressar interrogação, e por que nunca precedia a frase.

Mas o pior de tudo, sem dúvida, era ter que moderar a pronúncia do "R", desfazendo-se da agressividade do acento castelhano. Quase se sentia mais fraco sem seu "R de metralhadora", como havia apelidado Aiolos.

– O que foi? - Sagitário suspendeu a correção de uma frase terrivelmente caligrafada na areia ao reparar o olhar confuso do outro sobre si.

– Por que você não para de levantar as suas... - Shura indicou a parte do corpo que não sabia dizer.

Frýdia. Minhas sobrancelhas. Isso quer dizer "não" por aqui.

Capricórnio tentou mascarar sua exasperação, entretanto, arrancou um pequeno riso do mais velho.

– Pouco a pouco, Shura, tenha paciência...

A leveza e a tranquilidade de Aiolos eram contagiantes. Nestas horas em que ele o impedia de simplesmente desistir - e que não eram infrequentes -, quase se sentia obrigado a agradecer a Shion por tê-lo colocado em seu caminho.

A única coisa fácil de aprender grego era lidar com o seu professor.

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Depois do que deveria ser o sexto erro repetido - e pacientemente consertado por Aiolos - Shura permitiu-se um segundo de derrota. Contra sua vontade, o silêncio à insistência de Sagitário para que tentasse outra vez terminar a sentença soou bastante mal educado. E sabia que não deveria ser tão ríspido, pelo menos não com alguém como ele.

– Deve ser um sacrifício enorme ter que me aturar todos os dias torturando a sua língua materna. Sinto muito por tê-lo colocado nessa situação. - lamentou o espanhol.

O veterano rapidamente desfez qualquer má impressão:

– Não é sacrifício algum ensinar-lhe grego, Shura.

– Então é - como se diz? - um dever chato.

– Também não é um dever.

– Mas o mestre lhe pediu...

– Está mais para um favor. Se a tarefa fosse desagradável ou desgastante, eu já teria conversado com Shion, e você ganharia um profissional para lhe dar aulas.

Foi a mais pura verdade que Shura leu no rosto anguloso dele. A bondade sincera e gratuita, despida de discursos, desarmou-o. Por um segundo, sentiu vergonha, inferioridade, gratidão - tudo isso misturado num rubor que subiu às bochechas, juntamente com a única palavra que ali cabia:

– Obrigado.

Seu embaraço não passou despercebido, entretanto, Aiolos lhe fez vista grossa. Jamais faria troça de um momento tão frágil. Àquela altura, Capricórnio já contava com a nobreza extraordinária dele.

– Por nada! Agora, voltemos à lição; repita comigo...

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Havia momentos em que Aiolos se controlava para não rir, alguns tantos em que se sensibilizava por ele e outros em que se questionava o que, de fato, sentia. Porém, à medida que Shura progredia em seu aprendizado e melhorava a articulação de suas frases, com um léxico cada vez mais amplo e inteligível, prevalecia a sensação de êxito.

Como um efeito colateral, a proximidade entre os dois crescia. E não era somente porque havia a premissa de que precisavam praticar conversando; na verdade, até que conversavam pouco - o aluno ainda preferia as leituras em voz alta.

Todos os dias, encontravam-se na praia no mesmo horário, e Capricórnio já esboçava um sorriso ao avistar seu professor sempre com livro diferente debaixo do braço. A maioria era de textos simples ou poesia contemporânea, e inevitavelmente discutiam sobre o significado deles - tanto literal quanto metafórico. Por vezes, Shura opinava sobre o conteúdo, e então se rendiam a largos debates. Nestas oportunidades, descobriam suas afinidades e discordâncias, mas também se surpreendiam com o respeito espontâneo que nascia das diferenças.

Estas entrelinhas traduziam cortesia e admiração. Aiolos fez questão de introduzir os dois vocábulos no dicionário do espanhol. Acreditava serem a definição perfeita para a relação que construíam, até que, lentamente, o que compartilhavam passou a exigir um outro conceito.

Numa tarde de recital em que Shura já estava bronzeado, e sua mania de estalar a língua, mais controlada, o arqueiro reencaixou o que sentia pelo menino espanhol no seu glossário. Foi quando o dedo de Capricórnio parou sobre uma palavra e tamborilou sobre ela. Isso acontecia quando um termo lhe fugia. Aiolos inclinou-se por sobre o livro e leu: erotévomai.

Então, Shura desistiu:

– Essa palavra é difícil...

– É um verbo: apaixonar-se.

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De repente, perdeu a concentração e as palavras todas se emaranharam num cântico distante, monótono. A única coisa que lhe importava agora era os lábios finos movendo-se com fluidez às vezes quebrada por um discreto gaguejar ou uma pausa de incerteza. Ocasionalmente, aqueles lábios eram molhados pela mesma língua que insistia em locucionar de maneira errada o dseda. Aiolos não mais o retificava - na realidade, até lhe agradava ver e ouvir a pronúncia incorreta. Shura tendia a usar muito menos a língua entre dentes e lábios do que os gregos, então, nas raras oportunidades em que o fazia, o professor permitia-se apenas apreciar seus movimentos.

Como agora.

Um dseda mal articulado, e Sagitário já estava mergulhando na dança de sua boca, naquela composição única de Ls exagerados, Rs estrondosos, vogais marcadas e em toda a musicalidade atraente que Shura havia adicionado à língua grega. Nunca havia imaginado que seu próprio idioma pudesse ser tão estranho a si mesmo e tão...interessante.

O peito de Shura se inflava antes dos parágrafos e cada ponto final era um suspiro. Mãos mexiam em seu cabelo, enquanto olhos corriam pela página do livro, até que finalmente se voltaram para Aiolos.

– Estou indo bem? Faz tempo que você não me interrompe...

Piscou repetidas vezes, como que despertando. Tentou desfazer a expressão abobalhada que - tinha certeza - estampava seu rosto.

Muito bem. Eu gosto destes versos. Por favor, continue!

Não entendeu a careta que o outro fez.

Shura lia, um tanto constrangido, um poema erótico de Cavafy¹.

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Aiolos subia pela rua desatento, carregando as compras feitas na única livraria de Rodório. Quase assobiava, tomado por um bem-estar inexplicável. E não era apenas bom-humor - isso ele já tinha de sobra em condições normais. Não; havia uma força maior e mais complexa distorcendo positivamente a maneira como via o mundo, tal qual um caleidoscópio.

Pensava que nada poderia atrapalhar sua disposição. Então, ele os viu.

A garota era tão pequena, que Shura precisava inclinar-se para responder à qualquer coisa que ela dizia. Aiolos notou o brilho no olhar da adolescente, a respiração suspensa, os ouvidos atentos às nuances do sotaque latino dele. Sabia como era estar na pele dela. Sentia-se até ingênuo por estar chocado com a cena, afinal, não era como se o espanhol estivesse aprendendo Ellinika exclusivamente para relatórios e formalidades, ou mesmo para tornar-se seu amigo. Deveria estar orgulhoso em vê-lo interagindo com gente comum em bom grego. Cobrou-se aquela satisfação, todavia, só conseguiu entristecer-se.

Finalmente percebia que havia algo de doce e egoísta em ser a única pessoa com quem Shura conversava. A falta de fluência na língua acorrentava o espanhol a si e o ilhava na Acrópole. No entanto, essa dependência beirava o fim. E por quê? Porque Aiolos lhe entregara as chaves. As mesmas aulas que o trouxeram até sua companhia agora abriam portas para que se aproximasse do resto da vila.

O que poderia ser maior - a decepção consigo mesmo, por sentimentos tão individualistas, ou com a situação?

Apertou seus livros novos embaixo do braço e decidiu enfrentar os fatos. Eis que atravessou a rua, cumprimentou o casal com cordialidade e seguiu em frente como se nada o abalasse.

Naquele dia, Shura chegou à praia com mais de meia-hora de atraso, mas Aiolos não o recriminou. Muito pelo contrário - fez um grande reforço de gramática e treinou com ele pronúncia à exaustão. Quando Capricórnio já estava esgotado, Sagitário ainda lhe deu uma última tarefa: escolheu um livro de poesia romântica e pediu-lhe que o lesse em voz alta para si.

.

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– Você disse que eu podia gesticular à vontade! - ele disse em tom de cobrança e tão carregado de sotaque quanto na primeira aula.

Sagitário abaixou o arco, olhando por sobre o ombro a figura intempestiva que se aproximava na área de treinos.

– Eu usei minha mão aberta para indicar ao conselheiro onde eu e o Patriarca estávamos e...

Os olhos de Aiolos quase saltaram das órbitas.

– Isso é a pior das ofensas para um grego!²

– Eu não sabia! - esbravejou. - Por que você nunca me disse?

– Você queria que eu te ensinasse profanação?

Seu riso contido levou Shura às raias do ódio. No fundo, Capricórnio tinha consciência de que não podia culpá-lo, mas a necessidade de extravasar sua frustração gritava mais alto. Estava cansado de ser um forasteiro e das situações desconfortáveis derivadas.

– Não! Mas teria sido muito útil uma lição sobre sinais ofensivos na Grécia.

Aí o arqueiro não foi capaz de conter-se e caiu na gargalhada. Mesmo tentando evitar, imaginava a cena - a expectativa da primeira reunião oficial de Shura com a cúpula do Patriarca. Daí, o gesto inocente, a indignação do conselheiro e o estarrecimento do mestre, enquanto Capricórno, nervoso, procurava entender seu crime. Provavelmente, Shion teria chamado o cavaleiro em privado e explicado tudo num tom grave de "espero que isso não se repita".

– Você ainda ri?

– Desculpa...

Shura realmente sentiu falta da aula sobre profanação naquele momento. Queria muito poder ofendê-lo, dizer-lhe os palavrões mais escabrosos de todo o dicionário, mas seu desconhecimento simplesmente o levou a sair batendo os pés.

E não apareceu na aula do dia seguinte. Nem na próxima. Nem na outra.

Aiolos não insistiria. Sabia que havia algo errado com ele, assim como acontecia consigo.

Era hora de permitirem que o silêncio falasse por eles.

.

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– Eu preciso da sua ajuda.

Quando Sagitário abaixou seu livro, o coração disparando em resposta ao cosmo e o acento inconfundíveis, viu o rosto bonito dele franzido numa expressão contrariada. Havia os detalhes da poeira na testa e uma face rubra e inchada, porém, preferiu não questionar nada a respeito - imaginava que já era um grande suplício a Shura pedir-lhe socorro.

– Se estiver ao meu alcance... - o arqueiro deixou a leitura sobre o colo e analisou com discrição suas feridas. Era dia de folga e, presumidamente, não deveriam estar treinando, muito embora não lhe parecesse improvável que o rígido Cavaleiro de Capricórnio refutasse os momentos de descanso. Aquele ali era obcecado com trabalho e aprimoramento. Se não obtinha tanto sucesso em aprender idiomas, com certeza o mesmo não poderia ser dito sobre sua competência como defensor de Atena.

Shura levou uma mão enfaixada em ataduras imundas até a nuca e tomou coragem:

– Preciso aprender palavras de baixo calão.

Aiolos não conseguiu esconder seu espanto.

– Palavrões? Você quer xingar em grego?

– Exatamente.

– Posso saber por quê?

O espanhol bufou. - Máscara da Morte.

Aquilo não era surpresa. Era de se imaginar que algum dia o italiano briguento conseguisse tirá-lo do sério com sua perseguição quase infantil. Sagitário pensava que o Cavaleiro de Câncer tinha maneiras muito obtusas de querer atrair a atenção e a afeição dos outros, tendo em vista como tratava mal, por exemplo, Afrodite - a única pessoa que tolerava sua companhia.

– Acho que é um motivo válido. - coçou o queixo teatralmente, causando um pequeno sorriso em Shura. - Quem bateu primeiro?

– Eu, mas só porque ele me provocou muito.

– E o que ele fez para te deixar com tanta raiva? Falou mal da sua mãe? - Sagitário torceu o canto dos lábios no que deveria ter sido uma demonstração de ironia. - ...Quem sabe da sua namorada?

O moreno estreitou os olhos. A insinuação era bastante clara.

– Não tenho uma namorada, e nunca terei.

Então um olhar mais longo, reticente. Aiolos esqueceu-se mesmo de respirar e assanhou a franja, escondendo uma timidez súbita atrás do livro.

– OK, OK. Praia amanhã?

– Combinado. No mesmo horário de sempre. - Shura já se afastava, subindo as escadarias que separavam suas casas com uma postura triunfante. - Até amanhã, então!

– Até! - a voz foi abafada pelo pesado volume.

– Aiolos? - o arqueiro abaixou o livro uma segunda vez. - Obrigado.

.

.

Ele sentia falta daquilo, não podia fingir o contrário. Ansiava pelas tardes lendo na praia, sentados sobre uma rocha, enquanto as ondas arrebentavam a centímetros deles, ou rabiscando parágrafos na areia. Não se importava em ser corrigido e criticado. Precisava de sua única plateia - doce e exigente -, sem ela o aprendizado perdia um pouco de seu desafio.

E não era só isso. As frases soavam mais desconexas e as palavras tinham menos sentido sem Aiolos. Falar grego tinha uma conotação especial por causa dele - era através desta língua que haviam se conhecido melhor e o canal com o qual se comunicavam. Aquele idioma fazia parte de Sagitário e vice-versa, afinal; e tudo que lhe era ensinado tinha as nuances dele: os sons de sua voz grossa, seus gostos para literatura, sua caligrafia e seu modo de enxergar o mundo.

E, por ele, Shura conseguira vencer a barreira da língua. E, por ele, encantara-se pelo grego moderno - porque ambos se confundiam.

– Você está falando muito melhor. - elogiou Aiolos, dando um tapinha em seu ombro. Ao lado deles, descansava uma pilha de livros, entre eles, algumas comédias recheadas de linguagem vulgar. - Só não anule completamente seu sotaque. Fica muito...impessoal. Como se não fosse você falando.

Capricórnio sentia a pele ferver onde ele tocava. Trocaram outro daqueles olhares breves e furtivos, que se tornavam cada vez mais rotineiros.

– Você gosta do meu sotaque?

A mão apertou um pouco seu ombro antes de soltá-lo.

– Bem, digamos que ele tem personalidade.

Shura aprendia rápido, a ponto de não mais necessitar de aulas em ritmo tão intensivo. Um sinal claro disso é que as lições perdiam um pouco de seu foco inicial. Em vez de adquirir novos conhecimentos, apenas os praticava com Aiolos, e reconhecia que mesmo o aperfeiçoamento não era o objetivo de tais encontros.

Mãos sobre as suas quando escrevia, a respiração dele próxima quando liam, provocações em meio às práticas de pronunciação...sabia o que estava acontecendo ali.

No entanto, em breve, não teriam mais o pretexto da aula de grego. Shion, quando julgasse suas habilidades de comunicação suficientes - e já o eram há algum tempo -, dispensaria o professor de sua tarefa. Talvez fosse por isso que Aiolos insistisse tanto para que mantivesse seu acento castelhano, na contramão das primeiras aulas.

Como se acometido por uma ideia genial, Shura ergueu os olhos do dicionário:

– Depois que eu estiver fluente em grego, posso te ensinar espanhol. O que acha?

Arrancou do veterano um sorriso largo, contente.

– Eu adoraria!

.

.

– Não é assim, o dseda...

A língua de Shura, insolentemente (e intencionalmente) entre os dentes, foi a gota d'água. Aquela tarde estava se mostrando difícil para Sagitário, tendo que escutar mais poemas da Cavafy sobre o mar e seus belos amantes.

Como Capricórnio não interrompeu a leitura, a mão de Aiolos foi parar sobre a dele no livro. Fitaram-se em repentino silêncio, sucumbindo ao excesso de poesia, de insinuações, de encantamento.

Certas coisas não precisavam de tradução. Certas coisas perdiam a magia com palavras.

Enfim, Aiolos uniu seus lábios aos de Shura num beijo zeloso. O simples encontro - morno, mas cheio de iniciativa - tornou-se gradativamente mais íntimo, mais profundo, mais sincero, à medida que experimentavam consentimento e reciprocidade. Nas mãos entrelaçadas, desfaziam dúvidas e pudores, rendidos àquela ânsia de expressarem seus sentimentos mais intensos e guardados.

Às vezes, uma mensagem era melhor compreendida com a linguagem universal a todos os seres humanos - a não-verbal.

– Atena, por que demoramos tanto? - suspirou Sagitário, pálpebras ainda fechadas e testa colada na dele.

Shura estalou a língua.

– Que professor implacável! Será que você precisa criticar até isso? Cale-se, por favor!

Aiolos entreabriu os olhos, matreiro, derramando sugestões:

– Cale-me.

E deixaram o idioma de lado.


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Notas finais do capítulo

¹ Konstantinos Kaváfis, ou Cavafy, é um representante célebre da poesia moderna grega. Uma parte expressiva de sua obra possui temática homoerótica.
² Mostrar a mão espalmada para alguém, na Grécia, é o gesto mais ofensivo que se pode fazer. É possível intensificar ainda mais a agressão gestual sobrepondo-se duas mãos espalmadas.

Espero que tenham gostado, esse é o primeiro final feliz que escrevo em anos!
Comentários e pedradas são bem-vindos.
Até a próxima!