O Mundo do Silêncio escrita por ThegleameyesGin, Nekoclair


Capítulo 1
Silence


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoas!! Depois de muitos séculos sumida, cá estou eu. Essa oneshot foi escrita para a Coletânea organizada pela Mayumi Sato-san no tumblr, e eu super recomendo que vocês chequem porque os outros trabalhos estão incríveis! O evento foi escrito em duplas sendo que uma das autoras escreveria a primeira página para que a segunda continuasse a história. Minha parceira é a sempre diva nekoclair!!! (babemaclairéminha-n)
Bem, vamos ao que interessa:
Boa leitura :)



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Dois meses depois.

Tudo ao seu redor eram trevas. Na longa extensão que levava ao horizonte, que naquele momento mais parecia o infinito, havia nada exceto o vazio. Isso o fazia se sentir sozinho e pequeno, menor ainda do que já era. “Onde estou?” Respirou fundo, enchendo os pulmões até seus limites. Ele precisava se acalmar. Todavia, apenas ter a consciência de tal fato não estava sendo suficiente para resolver o seu problema. Seus membros tremiam, assim como o resto do seu corpo. Sentia as unhas afundando nas palmas de suas mãos e ele rezava para não deixar marcas. Não podia preocupá-lo, ou causar mais problemas. Já estava dando tanto trabalho a ele... Ele? Quem? Buscou em sua memória a identidade do tal sujeito, mas não a encontrou. Ele pensava um pouco mais sobre o assunto quando foi interrompido.

Peter, o que está fazendo?

Imediatamente virou em direção à voz, apesar de não ser realmente necessário para que a reconhecesse. O tom familiar, o sotaque inconfundível... Só havia uma pessoa a quem ele poderia associar tais características.

Pai.

Sentiu de repente seu coração doendo, mas não entendeu o porquê. Era só seu pai, sorrindo para si como ele sempre fazia, suas expressões descontraídas e carinhosas; as mesmas que o recebiam todo dia ao que eu se juntava a ele para o café da manhã. Por que dói tanto? Levou sua mão ao peito e apertou o tecido da camiseta, só então percebendo que vestia seu uniforme.

Vamos logo, ou vamos nos atrasar.

Apesar das palavras, ele não se mexeu. Limitou-me a encarar a figura que compunha todo o cenário até sabe-se lá até onde ia toda aquela escuridão.

Por que você nunca me obedece? Você quer voltar a morar com sua mãe?

Não, não. Longe disso. Gostava de seu pai, gostava de viver com ele. Arthur parecia gostar verdadeiramente de si, diferente de sua mãe, que sequer tentou manter sua guarda quando… O que? Quando o que? Arthur se ajoelha à sua frente, tocando-lhe o rosto.

Desculpa, Peter. E-Eu não sou bom com… Bem, você sabe… Essa coisa de pai e filho é nova para mim. Mas tenho certeza que vamos nos acertar, um dia, e então seremos uma família unida e feliz, eu e você. Então, desculpe brigar com você. Fui injusto. Desculpa.

Ah. Lembrava daquilo. Foi sua primeira briga feia com Arthur. Não recordava o motivo da discussão, apenas que foi por algo estúpido. Já havia há muito esquecido o assunto, mas o mais velho não conseguia se perdoar por ter levantado a voz contra si. Ha. Aqueles foram dias dourados, comparado ao inferno que foi quando estava junto à sua mãe, aquela…

Sei que sua mãe não é a melhor pessoa do mundo, mas não deve descer ao nível dela. Vadia não é um termo que se use contra a mãe, mesmo que a qualifique bem – Arthur deu uma risada breve. – Seja um cavalheiro, Peter. Eles são populares com as garotas, sabia? Agora, vamos.

Peter abriu um sorriso, porém, seu coração doía ainda mais do que antes. Ao ver o pai se virar e caminhar para longe, tentou se erguer e correr atrás dele, mas não conseguiu. Seus pés estavam fincados ao chão e sua voz não se sobressaía por causa do maldito som de uma buzina de caminhão, que consumia todo o ambiente. Arthur não olhou para trás.

Ao erguer o corpo do colchão, viu-se amparado por Tino, que balbuciava coisas para si, mas que ele nunca ouviria. Peter suspirou e fechou os olhos, recostando-se ao corpo quente do homem que lhe envolveu em um abraço. Estava novamente dando trabalho a ele, por causa desses malditos sonhos. Se ao menos pudesse o agradecer com palavras. Se ao menos fosse capaz de falar novamente. Peter voltou a chorar, inundando a blusa do pijama do jovem universitário, que o apertou mais forte em resposta.

Tino ficou com ele até que se acalmasse, e colocou-o de volta na cama, acariciando o cabelo de Peter e falando com ele, apesar de saber que ele não ouviria; ficou até o menino parar de tremer, e fechar os olhos, e dormir. Então, como ele vinha fazendo pelos últimos dois meses, ele foi para o corredor, deitou no colchão, e tentou dormir.

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No dia seguinte Peter acorda primeiro e encontra Tino montando acampamento na frente da sua porta. A culpa que ele sente não lhe serve de muito, então ele decide ir para a cozinha fazer algo de útil. Liga a máquina de café, coloca os pães na torradeira, vai no armário de remédios e pega dois comprimidos para dor de cabeça. Um é pra ele, o outro para Tino.

A buzina ainda berra nos seus ouvidos.

Tino acorda apenas alguns minutos mais tarde, com o celular vibrando no chão ao seu lado; ele se levanta e arrasta o colchão de volta para o próprio quarto, passa no banheiro para lavar o rosto. Na cozinha, Peter brinca de tentar adivinhar para que parte da casa Tino se dirige só pela vibração debaixo dos seus pés – ele sabe que é impossível, mas tenta mesmo assim. Consegue sentir quando o mais velho se aproxima, o que já é um avanço. O finlandês entra na cozinha ainda meio cambaleante e demora alguns segundos para notar Peter, sentado na cadeira comendo cereais com leite.

- Ah. Bom dia, Peter. – Ele diz, seguindo para a cafeteira. Pelas suas costas, o menino revira os olhos. Agora, Peter pensa, vai comentar sobre como não esperava me ver acordado tão cedo. E realmente, quando se vira, Tino está terminando de dizer –... mais cedo hoje, não é? – Ele ergue aquele par de olhos sonolentos para encontrar o menino o encarando como se fosse idiota. – O que? Eu... Ah. Ah. Droga, eu, desculpe. Desculpe, Peter. Eu prometo que vou aprender a calar a boca... Começando agora. Onde foi que eu coloquei...

Peter ergue um caderninho, rindo silenciosamente, vendo Tino corar levemente e seguir até ele, pegando-o. A primeira folha já está escrita. “Bom dia. Desculpe por ontem. Devia voltar a dormir no seu quarto, não tá tão ruim o/”. O rapaz ergue os olhos e sorri para ele, sentando na cadeira oposta à de Peter; enquanto toma o café, ele escreve a resposta. “Não seja bobo. Eu não me importo de ficar no corredor. Além disso, não te escutaria chamando se estivesse no meu quarto”. Ao terminar de ler, o mais novo revira os olhos e rasga a folha, enfiando-a no bolso da calça. Ergue-se e faz o movimento de 'Vamos', um dos poucos que Tino sabia identificar. O mais velho concorda, e eles voltam para o corredor, cada um indo para o quarto para se trocar e buscar as coisas.

Quando Peter entra na sala, o finlandês já está lá, de gorro e cachecol; quando o vê, ele revira os olhos e aponta para a própria cabeça. O menino percebe que esqueceu o próprio gorro no quarto e dá meia volta, correndo de volta para o quarto e pegando o primeiro que vê na gaveta. Aí, ele se lembra que esqueceu outra coisa, e fica feliz por ter voltado.

Ao voltar na sala, ele percebe que a atenção de Tino está no fone que ele tem em mãos. Não parece gostar de vê-lo, nem entender, mas não reclama. Acena para a porta, e eles saem. Quase por milagre, conseguem pegar o elevador praticamente vazio.

Peter puxa os fones sobre as orelhas. O barulho da buzina finalmente para, e ele consegue respirar direito.

A estação do metrô fica a três quadras do prédio onde viviam; a escola de Peter ficava na direção oposta, mas Tino fazia questão de levá-lo lá todos os dias, e então fazer todo o caminho para a estação depois. Peter ainda tinha dificuldades em entender porque o finlandês estava tão disposto a ajudá-lo. Ele era estudante de medicina, e já estava no último ano de faculdade, o que significava que ele não devia ter tempo nem para respirar, muito menos para cuidar de um pré-adolescente surdo e mudo. Ainda assim, ele já tinha se inscrito numa matéria adicional para aprender língua de sinais na faculdade, e cuidava de Peter como se fosse seu próprio filho.

Ele e Arthur sempre foram muito amigos, e o menino já o visitara muitas vezes com o pai, mas nunca se importou muito com ele. O considerava bobo e bondoso demais, e seu pai concordava consigo “Você nunca vai encontrar alguém com um coração maior. É quase impossível não gostar dele” era o que dizia, mas Peter nunca gostou muito dele, não se sentia confortável com toda aquela bondade por perto. Que piada que “toda aquela bondade” fosse o único motivo para ele não ter que voltar a morar com a mãe depois do acidente.

Chegam no seu destino depois quinze minutos de caminhada silenciosa, e se despedem rapidamente. A escola para qual Peter vai agora é diferente das outras escolas, já que é especializada em alunos com deficiências de todos os tipos; na sua sala, por exemplo, são apenas dez alunos, todos surdos. O loiro tem aulas de língua de sinais com alunos bem mais novos, já que não sabe nada, e aprende um pouco com os colegas de sala quando pode. São um grupo unido, se conhecem desde sempre, e acolhem Peter com toda gentileza possível.

O único motivo que ele tem para odiar o lugar é a hora da saída. É claro que ele não ousaria reclamar com Tino sobre o assunto, não queria incomodar ainda mais do que já incomodava, mas não podia evitar a raiva que sentia. Havia uma outra escola, perto da deles, para alunos normais. Eles saíam mais ou menos no mesmo horário, e pareciam se divertir às custas dos alunos da escola de Peter. Na saída, todos pareciam quase que correr para fora da sala, tentando evitar ser alvos, e o menino sempre os acompanhou sem entender muito o porquê. Uma única vez, arriscou ficar até depois, e se arrependeu profundamente.

Os meninos cegos, no geral, eram os primeiros a serem atacados. Eles não enxergavam e por isso não conseguiam reagir. Pegavam as mochilas, ou a bengala, e jogavam longe; às vezes balançavam o menino ou o jogavam no chão com um empurrão, de propósito. Geralmente quando jogavam as coisas, era em algum dos outros alunos que estivesse por perto. Eles também se divertiam passando de bicicleta perto dos alunos surdos. Peter não conseguia escutar, mas os via rindo. Eles sumiam assim que algum professor era chamado, e mesmo quando a escola reclamava nada se resolvia, então todos desistiram, mas Peter? Ele era um Kirkland, e como seu pai sempre dizia, Kirkland nenhum se deixa ser humilhado. Muito menos depois de ter seu fone favorito roubado.

Então, nas últimas semanas, ele vinha tentando chamar a atenção de outros alunos, e já tinha um plano em mente. Com os boatos correndo por aí, eles tinham um grupo bem grande de alunos dispostos a ajudar de alguma forma. Fora desta forma que Peter conhecera Ravis, do último ano do fundamental, e Lily, duas séries acima da sua. Os dois eram seus principais parceiros, com Ravis organizando os alunos e Lily como uma super espiã – a menina tinha um irmão, que estudava na dita escola-dos-vilões, então ela se candidatou a ser a responsável por juntar informações.

O plano não era exatamente super-elaborado. Os alunos se organizaram em grupos grandes e mistos de diferentes séries e salas; no geral o que eles faziam era proteger os alunos menores, e os cegos, porque não tinham como reagir. Ravis, apesar de um pouco tímido demais, não se importou em coordenar os grupos, levando em conta onde os alunos moravam, se precisavam ir até a estação, quantas vezes já tinham sido atacados antes.

Em questão de semanas, Peter tem o prazer de sair da escola mais tarde, só para ver a reação dos atacantes. A última aula termina e quando ele sai, Ravis e Lily estão esperando por ele; vão juntos até o portão, onde quase todos da escola estão esperando. Os grupos se unem aos poucos, e só saem quando estão todos juntos. O grupo de Peter é um dos primeiros a sair, logo depois de Vash, o irmão de Lily, vir buscar a menina. Ela acena um 'Vejo vocês depois', e os colegas respondem igualmente.

Quando saem para a rua, já podem ver um grupo de alunos esperando por eles na esquina seguinte. Peter, que por ser menor está quase no meio do bolo, puxa o celular do bolso e liga a câmera; ele segura a mão de um aluno cego com a outra, apertando-a sempre que passam por um lugar no qual ele poderia tropeçar. Para o seu prazer, eles são deixados em paz.

Quase consegue ver a mente dos outros rapazes funcionando “Vamos esperar os alunos que saem sozinhos, eles são alvos mais fáceis”. Sem chamar atenção, Peter tira as fotos, uma do grupo todo, outras duas dos mais próximos de si. Assim que se afasta, envia as fotos para o grupo que criaram, para que os próximos grupos foquem nos outros.

Eles seguem juntos até a estação, e Peter volta para casa sozinho. Passa a tarde toda no Facebook, encontrando os alunos das fotos, ou pelos grupos da escola, ou pelas informações que consegue de Lily. Assim que Tino chega em casa (o que ele sabe que acontece quando a porta da frente bate) ele desliga o computador e vai para a cozinha – passando por Tino, jogado no sofá de cabeça para baixo, ainda de jaleco – preparar mais café. Segundo o finlandês, é uma época difícil no hospital, e as aulas de língua de sinais estão difíceis, e seu professor disse que ele não estava indo muito bem nisso de “aprender a falar com as mãos aquilo que a voz não pode comunicar”.

Peter meio que concorda, mas prefere ficar quieto sobre o assunto – o que não é tão difícil.

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Um mês depois, Peter é chamado na diretoria. Ele já sabia, pelos outros alunos, que isso aconteceria em algum momento, então não está tão preocupado assim. A diretora é uma senhora cheia de rugas que faz os sinais extremamente devagar. Ela pergunta se Peter faz parte de algum dos grupos que se juntavam depois da escola para irem juntos para casa. Ele concorda. Ela pergunta se ele sabia quem tinha sido o responsável por organizar os tais grupos. Ele discorda (tentando não sorrir). Ela pergunta se ele já tinha sido atacado por algum aluno de fora da escola antes. Ele concorda, mas dá de ombros, deixando claro que não se importou com o ocorrido. A diretora franze o cenho, mas continua a perguntar 'Sabe porque esses grupos se formaram?' Ao que Peter responde com 'Proteção'. 'Sabe sobre as ameaças?' E o menino não pode evitar o sorriso um pouco maldoso que se abre em seu rosto. 'Sim'. Ao perceber que não vai conseguir nada de Peter, muito menos, a senhora suspira (dá pra notar pelo movimento dos ombros) e lança sua última cartada 'Sei que sabe quem as mandou, Peter, então conte. Sabe que o que fizeram é errado, mesmo que os meninos tenham merecido.' Ele responde:

'Se me fizerem falar, talvez eu conte.' Quando chegam na frente do colégio, Ravis comenta que também tinha sido chamado naquele dia. Lily não tinha sido chamada, porque não fazia parte de nenhum dos grupos, e porque os professores pareciam incapazes de desconfiar dela; parece preocupada, mas Peter a acalma, lembrando 'Nós somos todos mudos, e os que não são, não viram nada, não se preocupe'. Ela ri e concorda com a cabeça.

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Cinco meses depois.

A campainha da casa agora pisca na parede do corredor, então Peter sabe quando chamam de qualquer lugar da casa. Ele está na sala vendo TV, brincando de adivinhar o que os atores estão falando; está ficando bem melhor em ler lábios, o que é bom já que Tino ainda não perdeu a mania de falar com ele de manhã cedo (e às vezes de noite, depois dos pesadelos, enquanto esfrega as costas de Peter). A campainha toca, e ele se levanta para atender; esquece de olhar pelo olho mágico, e se lembra de como o pai ficava bravo por ele fazer isso. Quando abre a porta, se arrepende profundamente de não ter olhado. O que encontra é um homem gigantesco – tipo com uns dois metros – e com uma cara assustadora esperando. Eles se encaram por alguns segundos, e só então Peter percebe que o gigante assustador está praticamente carregando Tino, que está extremamente branco e nem reage quando o homem o arrasta para dentro. Peter cambaleia para fora do caminho e fecha a porta, se perguntando como ligaria para a polícia, se não conseguiria nem ouvir quando atendessem, muito menos pedir ajuda.

Enquanto planeja diferentes maneiras de fugir (nenhuma delas envolvendo a porta ainda destrancada atrás de si) o desconhecido coloca Tino no sofá e vira-se para observá-lo. Para sua surpresa, ele fala consigo. Por sinais.

'Sou amigo de Gentil' ele diz, e Peter demora um minuto para se lembrar que esse era o símbolo que ele usara para apelidar Tino; fica surpreso em saber que outra pessoa sabe disso. 'Me chamo B-e-r-w-a-l-d' Seu nome era Berwald, então. 'Estou ajudando ele com a língua de sinais. Você deve ser Peter' ele também conhecia o sinal de Peter, então ao menos não era um desconhecido completo, não de Tino.

Ainda um pouco hesitante, Peter pergunta 'O que aconteceu?'

'Tino trabalha demais' nisso eles concordavam. O finlandês vinha passando muito pouco tempo em casa, principalmente desde o começo do segundo semestre. E naquela manhã ele parecia meio pálido, também. 'Desmaiou no trabalho' Berwald terminou de explicar. Instintivamente, o menino lança um olhar para o sofá, onde Tino dormia. Voltando a encarar o outro rapaz, Peter se lembra das boas maneiras. 'Como deveria te chamar?' Pergunta, e Berwald mostra o sinal (um toque no espaço entre as sobrancelhas, provavelmente porque ele as franze demais).

'Café?' Oferece, sem saber o que fazer.

'Não precisa' Berwald responde.

'Vai embora?'

'Tenho que ir.'

O menino lança um olhar hesitante para Tino, sem saber o que fazer, e Berwald percebe que não é uma boa ideia deixar um menino em casa com alguém doente (dá pra ver que ele percebe porque ele franze as sobrancelhas mais um pouco). 'Deveria ficar' ele conclui, e Peter concorda com a cabeça.

Berwald passa a noite com eles, no quarto de Peter. O menino dorme com Tino, para tomar conta do rapaz (e porque, mesmo que não admita, não sabe o que fazer se acordar sozinho depois de um pesadelo). Quando Peter acorda no dia seguinte, é para o cheiro de café – café de verdade, veja bem, não da máquina – e ovos fritos. Berwald está na cozinha, e pede desculpas por estar usando as coisas de Tino sem pedir.

'Tudo bem' Peter responde, sem nem prestar muita atenção 'Os ovos estão deliciosos' acrescenta depois da primeira mordida. Eles conseguem convencer Tino a comer um pouco, mas depois de um exame rápido Berwald decide que o finlandês deveria ficar em casa pelo dia; então, ele leva Peter à escola – e o menino se diverte um pouco, vendo as pessoas na rua se afastarem e darem espaço para que os dois passem.

No caminho até a escola ele aprende que Berwald era surdo desde que nasceu, e que estudou na mesma escola de Peter. Formou em medicina há dois anos, mas decidiu focar na área de pesquisas e para isso voltou à faculdade. Concordou em ajudar Tino a aprender a língua de sinais porque seu professor orientador lhe pedira, e porque ouvira falar de Peter. Antes da metade do caminho, o menino já gostava dele, o que era bom, já que pelos próximos meses Berwald apareceria cada vez mais em sua vida.

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Peter está sentado na mesa da sala da avó, que o deixou lá com um pedaço de bolo de chocolate e um copo de leite, só para puxar sua mãe para o quarto; ele consegue escutar elas brigando, mas prefere ficar ali, comendo, a se envolver em mais um ataque de raiva da sua mãe. Ela o odeia – Peter sabe disso, apesar de ninguém falar – e ele não é muito fã dela também. Aqueles momentos – as duas brigando achando que Peter não escuta enquanto ele come bolo na sala – já lhe são comuns. Ele as odeia, odeia o choro, e os gritos, e ele sabe que sua mãe o culpa por tudo. Às vezes ele acredita nela; às vezes não.

Dessa vez, porém, a briga é interrompida pelo toque da campainha. O menino levanta e vai até a porta, a abre sem nem lembrar de olhar pelo olho mágico. O homem que está do outro lado é alto como sua mãe, com olhos muito, muito verdes e sobrancelhas muito, muito estranhas, como as de Peter. Sua mãe as odeia. O homem parece surpreso em vê-lo ali, surpreso por ele ter aberto a porta, talvez.

- Vovó está ocupada. – Peter fala automaticamente, mas sua avó entra na sala logo depois, sem a sua mãe. O menino volta para a mesa e volta a comer o doce, ainda sob o olhar atento do desconhecido.

- Boa tarde, Arthur. – Sua avó diz, e Peter não presta real atenção, não faz a conexão. Nem se importa com quem aquele homem é, até sua mãe entrar na sala, com a mesma expressão que usa para quando Peter faz algo de errado, como se o odiasse profundamente.

- Vá embora! – Ela grita, e Arthur encolhe os ombros, recuando um passo de volta para a varanda. Sua mãe grita por mais um tempo, com o estranho, até a sua avó a puxar para longe, de volta para o quarto.

- Entre, Arthur, pode se sentar e pegar um pedaço, eu vou conversar com ela.

- Com licença, então. – Arthur fala pela primeira vez. Peter se lembra de pensar como a voz dele era bonita, profunda. Parecia com aquelas das músicas que sua mãe ouvia. Era a única coisa que tinham em comum, ele e a mãe. O gosto musical. Peter se lembrava de gostar dele, naquela tarde. De como ele falava, como ele sorria com os olhos mais que com os lábios, de como ele ria pelo nariz, também. Lembra também de como ficou feliz quando ouviu que aquele homem era seu pai. Lembra de chorar de pura alegria quando ele foi até sua casa, pediu-o para buscar suas coisas e disse – O que acha de tentar morar comigo um tempo, Peter?

Achava-o incrível, brilhante. Quando Peter foi morar com ele, Arthur estava saindo da faculdade, começando a trabalhar em um hospital especializado em pediatria. Apesar disso, era presente, tentava ser presente. Aos domingos ouviam música juntos, iam ao shopping comprar CDs ou fones ou uma palheta nova para o violão de Arthur. Às vezes, muito raramente, o pai tocava para ele, e Peter conseguia imaginar a mãe sentada em uma plateia, o ouvindo tocar e se apaixonando, e gosta de se imaginar como fruto desse amor, não como o motivo para todo o ódio.

Arthur não era um pai perfeito, mas tentava ser. Peter o amava, amava de verdade. E ele morreu. Batida, um caminhão ultrapassando o sinal. Peter escutara a buzina, mas não prestara atenção porque estava reclamando com o pai, tentando chamar sua atenção, cutucando ele por sobre a cadeira. O pai o xinga e o manda colocar o cinto, e Peter obedece. É quando Arthur vê o caminhão, quando percebe o que estava acontecendo, e é tarde demais.

Peter consegue enxergar a cena. Arthur está brigando com Peter e então se interrompe, os olhos verdes se arregalando. Peter o vê apertando as mãos no volante, lançando um olhar para o menino pelo retrovisor, e ele o vê virando o carro, tomando todo o impacto, salvando a vida do filho que ele só conhecia há dois anos. A buzina ecoa, e não para, nem mesmo quando Peter acorda.

Ele não consegue, não consegue respirar, e tem um som estranho em seu ouvido e por um momento ele realmente acredita que vai morrer. Mas Tino está ali, logo ali, erguendo ele do colchão, falando, berrando para que ele respirasse. E o menino o encara, olha para cima e foca nos olhos azuis e em como eles parecem sinceramente preocupados, quase desesperados, e ele só consegue pensar.

Arthur morreu. Ele está morto, e a culpa é minha.

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Os médicos dizem que Peter não é realmente surdo. Um dos ouvidos foi, sim, danificado por causa da pressão da batida, sem reparo. Mas o outro, o que o menino sempre reclama que dói ou que incomoda, está bom. Peter deveria ouvir, e deveria conseguir falar, mas não consegue. Não ouve. E Tino sabe que é verdade porque à noite, depois dos pesadelos, ele ouve Peter chorar. Escuta-o falando sozinho, pedindo ajuda ou chamando o nome do pai.

Mas para Tino as piores noites são quando ele acorda pedindo perdão.

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Seis meses depois.

Pela primeira vez, Peter não tem pesadelos, não tem falta de ar, nem acorda chorando. Tino entra silenciosamente no quarto do menino, e fica ali, observando-o dormir. É irônico que ele tenha dificuldades de dormir agora que Peter dorme tão bem.

Ele fica ali mais um pouco, e então volta para o corredor, fechando a porta atrás dele; pega o colchão e volta com ele para o armário. Quando entra em seu quarto, sente como se não estivesse em casa. No fim, ele dorme no corredor. No dia seguinte nenhum deles comenta sobre a vitória, mas dá pra notar o quão aliviados estão. Peter parece menos pálido, e come muito mais do que o normal. Parece que estão respirando pela primeira vez em meses. Tomam sorvete no caminho para a escola, e brindam.

Naquela noite Peter tem pesadelos, e de manhã estão ambos pálidos e cansados, mas não como sempre. Quando Peter termina de comer, pega o bloco de notas e escreve algo, que entrega para Tino antes de sair da cozinha para buscar suas coisas no quarto. No papel, Tino lê

Pesadelos 280 x Peter 001

Nós não vamos desistir ainda.”

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Oito meses depois.

Peter não tem mais pesadelos, e não usa mais os fones quando está em casa, nem quando saem juntos. Só os tira da bolsa quando volta para casa sozinho, depois de levar os outros na estação. Ele liga os fones no celular e coloca sua lista de músicas com a palavra “Silêncio” para tocar. Ele não ouve nenhuma delas, não sabe como são tocadas nem como a letra é cantada.

Peter sempre amou a música, porque Arthur sempre amou a música. Ele tem muitos fones – um preto pequeno e um vermelho pequeno, um que tinha um microfone, que ele costumava usar para jogar online com os amigos, e só um preto grande porque o seu azul foi quebrado no início do ano – porque Arthur tinha muitos fones e gostava de escolher fones para si e para Peter. Depois do acidente usava os fones porque o lembravam de Arthur e paravam o barulho que lhe dava dor de cabeça.

Agora, o menino usa os fones porque o lembram de Arthur, e só.

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Doze meses depois.

De alguma forma, até o fim do ano todos os pais de alunos pelo menos já ouviram falar sobre o que aconteceu na escola, sobre os grupos na hora da saída e as ameaças que alguns alunos da outra escola receberam – pelos professores principalmente, já que nenhum dos alunos parece disposto a falar. Tino, que quase nunca consegue ir às reuniões da escola, é um dos últimos a saber. Quando chegam em casa depois da cerimônia de encerramento do ano, ele e Peter vão juntos a uma pizzaria para comemorar.

Depois de fazer os pedidos, Tino começa a escrever, e o menino sabe que é algo importante, porque ele está apertando os lábios. Por um momento, ele pensa que tem algo a ver com Berwald, que desmarcou com eles de última hora porque o professor precisara de ajuda na palestra que ia dar, mas quando recebe o papel, se surpreende com o que vê.

Algo me diz que você e sua mente brilhante tem escondido coisas de mim. E eu adoraria ouvir sua versão da história sobre os ataques que vocês sofriam, e sobre como eles magicamente pararam depois de alguém enviar cartas anônimas ameaçando os alunos da outra escola.”

Peter ergue os olhos, hesitantemente, e percebe que não está ferrado, Tino só parece preocupado. “Faz tempo que isso aconteceu.” É o que responde.

Não tente me enrolar. Teve algo a ver com isso, não é? Sei que sim, a diretora me explicou como exatamente as coisas foram feitas, o plano todo. Nenhum aluno abriu o bico, não sobre nomes pelo menos.”

Por que eu abriria?” Peter escreve. Seria bobeira fingir ignorância, afinal. Tino revira os olhos quando lê.

Isso é típico do seu pai.” Reclama, no cantinho que restou do papel. Segundos depois, Peter recebe a segunda parte. “Vocês dois são tão teimosos, e absurdos. Ninguém pode te punir agora. Nem pretendiam punir desde o início. Todos da escola sabem que foi você, e estão todos muito orgulhosos. Eu estou orgulhoso. Fico feliz que não estejam incomodando vocês mais. Só não saia por aí enviando cartas ameaçadoras mais, combinado?” Peter lê e relê o pequeno comentário garranchado na primeira página “típico do seu pai”. Sorri, dá de ombros. Responde: “Prometo.”

Berwald chega dez minutos depois, ainda de terno, meio ofegante. Entrega um embrulho para Peter e se senta na cadeira de frente para Tino. O presente é um par de fones novos; não era igual ao que perdera no início do ano, mas era bonito também, vermelho com desenhos em preto.

'Obrigado, obrigado, obrigado, obrigado' ele repete o movimento, quase saltando de alegria na cadeira, até Berwald ficar vermelho. E é estranho – deveria ser estranho – como eles reagem, como se fosse tão engraçado, como se fosse normal que Peter tire o celular do bolso e tire fotos, e Tino caia no chão de tanto rir depois de ver Berwald ficar ainda mais vermelho. É tão estranho, tão normal, que eles pareçam uma família. E que os três se sintam como uma família.

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Dezoito meses depois.

Peter chega em casa depois da escola e vê Tino e Berwald jogando cartas, sentados de pernas cruzadas ao redor da mesa de centro. Os mais velhos param o jogo por um momento e Tino se levanta para receber Peter, e

O menino ergue a mão direita e leva ao peito. Toca-o por um momento, e então gira os dedos, fechando-os, e estica a mão, abrindo-a na frente de Tino, como se oferecesse algo com um floreio. O finlandês não entende o gesto, mas Peter sim. Berwald sim. E os dois trocam um olhar, uma conversa inteira, e o menino vai para o quarto. E Tino não sabe, mas aquele, aquele é o primeiro “eu te amo” que Peter diz.

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Vinte meses depois.

Berwald é quem oferece seu coração em um floreio, dessa vez. E dessa vez, Tino sabe o que significa. Ele devolve o gesto.

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Vinte e cinco meses depois.

Eles se tornam – agora oficialmente – uma família.

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Notas finais do capítulo

Bem, espero que tenham gostado! Chequem a coletânea! Não se esqueçam de deixar um comentário, por favorzinho ;)
Até a próxima,
Gin-chan