Os Cânticos de Prime escrita por MMenezes


Capítulo 1
Prólogo [3.0]


Notas iniciais do capítulo

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;)



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O solo áspero e frio cortava seus pés descalços.

Era difícil manter-se firme contra o soprar dos ventos que lambiam sua pele nua; era doloroso dar um passo após o outro; era uma tortura respirar aquele ar rarefeito. Mas de maneira nenhuma se arrependia de sua escolha. Agora era uma coisa frágil, franzina, vulnerável… de carne.

Mas não se arrependia.

Em algum lugar além das águas agitadas, os enormes portões se abriam com rugidos altos e estridentes, fazendo a terra tremer ao seu esbravejar. Uma fina chuva vermelha caia deixando pequenas poças carmesim ao seu redor. Próximo da montanha à sua frente, ondas sobressaltavam-se sobre o mar inquieto.

O dia finalmente havia chegado. Estou pronto, dizia para si mesmo, mas sabia que mentia, pela primeira vez mentia.

Um vento frio veio contra seu rosto, e em um instinto, envolveu-se em seus descarnados braços, tentando aquecer o próprio corpo. Era estranho ser de carne, até as coisas mais inofensivas pareciam querer machucá-lo. Quase riu sem saber bem o porque, mas de repente uma lágrima quente atravessou seu rosto, repousando em sua barba hirsuta e desgrenhada; a primeira de muitas que viriam naquela noite.

— Majestade, deve haver outra maneira, um outro meio, qualquer coisa… deixe que nós o façamos.

Seu corpo tremelicava, seu âmago desejava desesperado saltar para fora de si mesmo, nunca havia sentido a dor do frio.

— Meu fiel e querido cordeiro, é assim que tem que ser — respondeu com a voz lhe falhando. Mas não lamente por mim, chegará o momento que vocês sofrerão tanto quanto eu, guarde suas lágrimas para este dia.

A ilha em que estava era um rochedo inóspito ao norte do Mar Negro, um pedaço do mundo abandonado, deixado a deriva longe de qualquer resquício de vida. Bem no meio da ilha rochosa, o Abismo se erguia ao céu cortando as nuvens que choravam sangue. Cerrou os olhos e fitou o cume, não vendo nada além de uma parte do monte se perdendo na noite.

Começou então sua imaculada penitência em direção ao cume do Abismo, um passo de cada vez, e cada passo como se estivesse pisando em espinhos. Logo atrás, suas treze Rochas o seguiram com passos arrastados não emitiam nenhum barulho.

A terra tremia sob seus pés, como se ela também sentisse o frio daquela noite taciturna. Houve um tremor mais forte que quase o desequilibrou, pode ver o exato momento em que a montanha balançou e um lance de pedras desmoronou em direção ao mar. Apertou-se com força, respirou fundo e prosseguiu.

O caminho que usaria para subir ao cume do Abismo era uma passagem estreita ladeando o monte; o suficiente para uma pessoa por vez. Colocou o primeiro pé na passagem e por um momento pareceu que havia perdido os sentidos, sua vista ficou turva e seu corpo pendeu para o lado onde o mar trombava contra a montanha. Em um reflexo de desespero, abraçou-se de face contra a montanha como uma criança assustada que se agarra à perna do pai.

Suas Rochas apenas observavam em silêncio.

A parede escarpada feria seu peito nú, mas não se importou em ter pequenas escoriações pelo corpo e foi se arrastando para cima meticulosamente. Conforme subia, os ventos sopravam cada vez mais fortes, atingindo suas costas como chibatadas incessantes. Não conseguiu evitar dois ou três gritos de dor — e sua imaculada penitência havia apenas tido ínicio.

Por múltiplas vezes sentiu-se sem forças e prestes a sucumbir à queda em direção as águas turbulentas, mas quando pensava na importância de seu êxito, voltava a pregar as unhas contra a montanha e subir. Subia se ferindo, subia se torturando, subia abrindo a própria carne nas pedras, mas subia. Logo atrás, suas Rochas vinham o acompanhando, caminhando em fila na estreita passagem ao redor do Abismo, observando caladas a seu flagelo.

Então, quando já não sentia mais seus braços e pernas — nem mesmo a dor das feridas que conquistara durante o caminho —, alcançou a parte da montanha onde o caminho se alargava e ficava mais seguro e receptivo. Seguiu por esse caminho, ofegante e esfregando o peito com as mãos anestesiadas de dor. A cada sentia mais dificuldade de respirar(era como se navalhas entrassem por sua narinas e cortassem seus pulmões), respirou devagar, tentando não estacar na metade do caminho. Uma dor latejante subia por suas pernas e quase o paralisava, uma outra dor lhe fazia caminhar de costas arqueadas, e não sabia onde, mas sentia sangue escorrendo por algum lugar de seu corpo.

Sangue abriu as portas e apenas sangue pode fechá-las.

Continuou a caminhar. Cruzou um nevoeiro espesso e caloroso. São as nuvens, concluiu meio que sem ter certeza. Pouco depois, chegou exaurido ao cume do Abismo, vazio e plano como uma mesa redonda. A luz prateada da lua iluminava o local e uma miríade de estrelas piscavam para ele. Respirou aliviado por finalmente terminar a primeira parte de sua imaculada penitência.

Caminhou com passos vagarosos em direção à beira do promontório, ficando frente a frente com a majestosa lua cheia. Lá embaixo, as nuvens vermelhas tapavam o mar escuro e agitado. Um vento frio arrastou seus cabelos contra seu rosto.

A Casa da Morte é ainda mais fria.

Inerte, voltou a se abraçar, ouvindo o estrondo dos portões se abrindo. Não esperava que poderia ouvi-los ali daquela altura.

— Somos as espadas do...do... céu e os broqueis… da … da … terra. Meu rei, deixe que lute...temos, de...de...ixe que fechemos os portões nós...nós...nós mesmos — disse o ineloquente Garel à suas costas.

Um grande guerreiro, o maior em estatura e bondade.

— Meu gentil e amado cavaleiro, tanta valentia e nenhuma compreensão. Sangue abriu as portas e apenas sangue pode fechá-las — respondeu sem se virar para ele; não suportaria ver suas lágrimas, não suportaria ver as lágrimas de nenhum deles, já sentia dor demais.

Na beira do promontório, os ventos eram mais frios e ferozes. Como flechas eles pareciam penetrar seu peito franzino. Seu corpo tremia e seus dentes batiam uns contra os outros, esfregava as mãos no peito tentando aquecer-se, mas não adiantava. Uma pequena fumaça saia de sua boca e nariz cada vez que respirava, e seu membro estava diminuto, encolhido entre suas coxas. No horizonte os portões gritavam, em breve estariam totalmente abertos e a morte e seus filhos voltariam a rastejar livres sob o céu. Não, ele impediria, estava ali para isso.

Apenas a morte para pagar a vida, pensou. Era esse o princípio de todas as coisas.

A morte não fazia parte de seus planos, era uma catástrofe, uma maldição, uma… consequência. Sim, era o efeito colateral da própria existência, sabia que ela viria a surgir, era sua culpa e de mais ninguém. Era esse o preço a se pagar pela vida.

Uma luz esverdeada começou a surgir no céu, dissipando a noite e colocando as pequenas estrelas para descansar. Um fulgor reconfortante aqueceu suas costas como um bálsamo. Por um instante não sentiu mais dor nenhuma e nem frio.

O dia havia amanhecido e o sol esmeralda galgava o céu lentamente.

(E o barulho das maciças portas se arrastando sem sutileza continuava, alto como nunca.)

Pela primeira vez naquela noite teve um pouco de satisfação. Estava a um passo da Casa da Morte, mas a paisagem era singular e… bela de se ver. Bem abaixo, poucos metros sobre seus pés, as nuvens se moviam como ondas leves e sedutoras, coloridas por tons de verde que lhes tiravam a aparência fúnebre da noite anterior, pareciam despedir-se.

Já nem se lembrava mais de suas pequenas dores.

Sorriu.

Podia ouvir o pranto de suas Rochas, continuavam inertes e resolutas, mas choravam feito órfãos.

— Clamo-te meu senhor, não continue — disse uma delas com uma voz esganiçada.

Tezlael.

Não respondeu.

Somente a morte para pagar a vida. Ele sabia disso, todos sempre souberam.

Pela primeira vez não conseguiu pensar em algo para dizer, nada que lhes acalmasse o coração, uma última palavra que lhes fortalecesse, nada ganhou vida em sua boca, doía demais as lágrimas que escorriam de seus próprios olhos.

As portas rangiam.

Ouviu gritos desesperados.

O calor que conforta é o mesmo que cavalga com a dor.

O sol esmeralda continuava a se ascender ao céu anil; a montanha tremia levemente sob seus pés; os ventos sopravam fazendo seu cabelo esvoaçar; lá embaixo as águas turbilhavam arrastando para suas profundezas tudo que lhes desafiasse. Era chegado o momento, mas sentia medo, um medo que lhe enraizava na beira do Abismo.

Sangue abriu as portas e apenas sangue pode fechá-las.

Fechou os olhos e refletiu por um último e extensível momento. Estrelas brilhavam dentro de seus olhos fechados; estrelas que continuariam a brilhar sobre a terra após a extinção de seu próprio brilho.

Deu um passo à frente.

O choro de seus escolhidos aumentou.

— Não chorem — esforçou-se em dizer. — Isso não é motivo para lágrimas meus amados, mas para sorrisos — uma lágrima quente escorreu lentamente por seu rosto, seguida por suas irmãs. — Os filhos da terra viverão para ver um novo sol.

Abriu os braços como se acolhesse o mundo.

Deixou-se cair do Abismo.

*

A Casa da Morte era o recôndito para aqueles que de maneira nenhuma poderiam mais caminhar sob as estrelas.

Os ventos não sopravam naqueles salões, nem águas jorravam naquelas piscinas, o habitar das Almas Rastejantes era o último patamar da agrura da vida morta, um lugar onde palavras não residiam e nem corações batiam. Era o contrário de tudo que havia regado, era a perdição que nunca havia desejado.

O chão era úmido e viscoso; e havia um cheiro de putrefação, fogo e sangue enchendo o ar ao seu redor. Não via, mas sentia olhares o espreitando, ocultos no breu que o envolvia. Andou a esmo com o pegajoso chão agarrando seus calcanhares e com um calafrio contínuo lhe subindo a espinha.

ABQATUL, uma voz agourenta e abominável sussurrou em seu ouvido. Ignorou-a e continuou seguindo em frente.

ABQATUL, ela voltou a falar; ou foi outra voz, não saberia.

ABQATUL, ABQATUL, ABQATUL.

Ouviu uma risada que foi seguida por outras e mais outras.

MELECH TAGA AYIN’

KOCHAV DA'UCH

As muitas vozes e elas gargalhavam eufóricas.

KOCHAV DA'UCH

ABQATUL

ADONAY QATUL

Não deu atenção a elas, eram apenas palavras mortas de seres que nunca deveriam ter recebido a palavra de vida. Seguiu seu caminho na escuridão, logo chegaria ao fim de tudo aquilo.

Passou por corredores estreitos e largos, curtos e longos. Algumas vezes as sombras o amotinavam como em uma densa masmorra sem luz; outras, soltavam-no ao léu em um oceano de trevas. Na Casa da Morte não havia espaço e tempo, tudo era meio ambíguo e sem sentido. Em um momento parecia que estava parado — mas sabia que estava seguindo em frente —, em outro sentia-se perdido, mesmo sabendo para onde estava indo.

Então, ao longe uma pequena luz tilintou e teve a certeza de que caminhava rumo ao lugar certo, as sombras não podiam enganá-lo.

Era uma abertura em uma rústica parede de pedras negras e mal empilhadas. A passagem tinha propriamente seu tamanho. Cobrindo o caminho na parede, havia uma cortina alva e translúcida,  fina e transparente como um véu. Ao tocá-la não sentiu a ternura de uma seda, mas a rigidez de uma porte maciça. Duas tochas ardiam de cada um de seus lados, com chamas mórbidas que não emitiam nenhum calor.

— Um fogo que não mais aquece e nem ilumina — sussurrou em desalento.

Sem muito pensar, fitou as compridas e afiadas unhas no topo de seus esguios dedos, como lanças recém afiadas para a batalha. Respirou fundo e penetrou-as em seu peito nú.

A dor foi lancinante e teve que fazer um esforço tremendo para manter-se de pé. Seus braços tremelicaram e o sangue escorreu brilhante pela ponta de seus dedos. Continuando a cerimônia, levou as unhas ao véu e em um gesto solene rasgou-o de cima a baixo como se ele não fosse nada além da frágil seda transparente que aparentava ser.

Aquilo pareceu exigir força demais, parou um momento para tomar fôlego.

ADONAY QATUL. ADONAY QATUL. ADONAY QATUL.

Atravessou o portal e continuou sua caminhada através dos corredores e salões escuros da Casa da Morte, com as vozes o seguindo, rindo e o amaldiçoando. Passou por quartos onde os filhos da morte antes dormiam, andou sobre tapetes de ossos velhos e almas puídas até chegar ao Saguão.

Seu sangue escorria por seu peito ferido e sua alma escorria de seu corpo contrito, deixando-o aos poucos.

Somente a morte para pagar a vida, meditava nessas palavras como se se recordar delas o levasse mais além na escuridão.

Em dado momento uma fileira de chamas brotou iluminando o recinto, pequenas esferas de fogo com um brilho embaciado como as tochas do Átrio. Bailavam na escuridão como dançarinas vermelhas e libidinosas. Seu crepitar era quase como um convite, e por entre essas chamas mórbidas e sem fulgor ele caminhou solitário.

— Somente a morte para pagar a vida — disse para si mesmo tropeçando nos próprios passos.

As chamas escalavam uma escadaria íngreme que se perdia na escuridão, e pelo caminho que elas traçaram ele andou. Por duas vezes quase caiu, na terceira seus pés cegos se embaralharam nos degraus e teve que usar as mãos para não se apoiar. Engatinhou pelo resto do caminho, como uma criança ainda aprendendo a andar. No recinto, todos riram. Todos que um dia amou agora riam com prazer de sua debilidade.

MELECH TAGA AYIN’

Prosseguiu com os joelhos e as mãos lhe servindo de pés até alcançar o cume, onde uma pedra alva, grande e sólida o esperava como uma donzela que a muito espera para ser desposada. Tinha ângulos estreitos e lados iguais, e sob ela diversas esteiras serpenteavam como veias ao longo da escuridão.

As pequenas sementes de chamas espocaram ao redor do altar, delineando um círculo ritualístico.

ABQATUL. ADONAY QATUL. ABQATUL.

— Sangue abriu as portas e somente sangue pode fechá-las. Somente a morte para pagar a vida — voltou a repetir tentando convencer-se a prosseguir sem hesitar. Suas mãos tremiam e suas pernas vacilavam, mas tinha que prosseguir.

Ficou frente à frente com a grande pedra alva. Ela estava impecável, ainda com o mesmo cintilar de quando a esculpira.

ADONAY QATUL. ABQATUL. MELECH TAGA AYIN’

E as vozes amotinavam-se ao seu redor. Não se importe com elas, são vozes mortas de vidas mortas. Respirou fundo três vezes, buscando concentração e coragem. Quatro. Cinco. Seis vezes. Na décima vez levou a mão direita à garganta e sem hesitar apertou suas unhas afiadas contra a julgular, sentindo uma dor aguda atravessando seu corpo.

Sangue abriu as portas e somente sangue pode fechá-las.

Inspirou. Expirou. Inspirou. Expirou. Inspirou. Expirou.

Cerrou os olhos e rasgou-se.

Foi a maior dor que já sentira. Perdeu as forças das pernas e tombou para frente, estirado, sufocando e gorgolejando sangue sobre a donzela que se banhava com sua vida. As sombras urraram e as pequenas chamas se esticaram feito flâmulas de vitória.

ADONAY QATUL. ADONAY QATUL. ADONAY QATUL.

Somente a morte para pagar pela vida.

Seu sangue escorria para a pedra alva e da pedra para as pequenas esteiras que se delineavam nas trevas como regatos numa floresta densa.

ABQATUL. ABQATUL. ABQATUL.

Somente a morte para pagar a vida.

Ouviu as portas que dariam liberdade as Almas Rastejantes se fechando com um arrastar rápido e impaciente. Urros de ódio acompanharam o fechar das portas. As sombras finalmente haviam se dado conta do que ele havia consumado.

Estava feito… a estrela havia se sacrificado no altar da morte e por mais algum tempo a vida reinaria.


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