Inteira escrita por Felipe Martins


Capítulo 1
Inteiramente Grande




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Inteiramente grande

 

Para muitos, a paz é um estado de espírito que descreve apenas a ausência do caos. Nada mais. Naquele momento, Sindel sentia o ódio instaurado pelo reino de Edenia e só conseguia pensar que sua paz chegara ao fim. Cabia a ela, naquela situação, pensar no que havia a ser feito.

Porém, nem ela podia raciocinar direito sobre o que acontecia. A sua frente, estirado, estava o seu esposo há milênios e rei daquelas terras, que tanto se assemelhavam ao Jardim do Éden, estirado... morto. O chão, antes claro e reluzente, assumia um tom opaco de vermelho que vinha do corpo, formando um rastro onde quer que tocasse — inclusive a espada de Shao Kahn, invasor daquelas terras, que olhava para ela como se visse ali um veado indefeso, pronto ao abate.

Qualquer pessoa na posição da rainha poderia sentir medo, mas não ela. Sabia do interesse de Shao Kahn, rei da Outworld e atual invasor. Ainda que, por motivos óbvios, não tivesse contato com aquele homem, estava ciente, através de conselheiros e algumas previsões de Delia, de que aquela invasão, além de ter seu cunho político e estratégico, vinha com um desejo oculto pela posse da rainha daquelas terras.

Lágrimas eram vistas brotando no canto do seu olho. Não fosse pela presença do seu maior ódio à sua frente, traduziria toda a sua angústia em gotículas salgadas que, procurava acreditar, desafogá-la-iam das suas próprias mágoas; porém, a situação pedia um pouco mais de secura. Rispidez.

— Agora que não temos esse velho para nos atrapalhar, — bradou Shao Kahn, frisando levemente o “velho”, — falemos sobre o que te importa: teu futuro, rainha de Edenia.

— Que queres, Shao Kahn?

— Em situações normais, que é o caso desta a que estamos nos referindo, serias agora a minha escrava, Sindel. Conheço-te bem para saber que preferes a morte a isso, mas nutro por ti desde que te vi um desejo muito forte. Dar-te-ei a honra, portanto, de continuar sendo rainha e tornar possível que faças de mim alguém satisfeito.

— Nitidamente, falta-te saberes usar teu ego para coisas mais decentes além de coçares o saco e achares que és melhor que os outros.

Shao riu.

— Curioso... foi esse mesmo rei que matou o seu amado, não é mesmo?

Sindel engoliu em seco. Sabia que não seria prudente reagir às palavras do general, então guardou para si a raiva que por pouco não se transformou em outra batalha a se travar (na qual ela estaria numa clara desvantagem, vendo o armamento do outro).

O novo rei de Edenia não precisava de respostas: apenas o silêncio de sua nova companheira era o suficiente para saber que ela concordara com tudo. Esboçou um longo sorriso no rosto, aproximando-se mentalmente dela e, com a voz grave e num cochicho, disse:

— Bem-vinda ao Inferno, ‘querida’.




Aproximadamente um mês se passara desde que o Jardim do Éden havia sido tomado por aquele que desgraçara o reino. O céu, escuro, iluminava-se por uma imponente Lua que regia a sinfonia noturna às estrelas, pequenos pingos brilhantes no céu. Uma brisa que percorria os aposentos do rei acordou a rainha numa carícia leve, evitando despertar aquele que dormia ao seu lado. Ela se levantou lentamente, afastando-se para colocar alguns panos à frente da janela quando observou como o céu estava encantador naquela noite.

Lembrou-se, inconscientemente, das noites em que passava observando as estrelas e desenhando constelações no vazio acima de si, imaginando animais voando pelo espaço enquanto Jerrod avaliava suas pressuposições positiva ou negativamente, sorrindo sempre. Ainda que dissesse “não”, era uma pessoa amável com tudo e todos: Edenia inteira respeitava o seu rei, inclusive a rainha.

Abaixo de si, ouviu um soldado da Outworld berrar ordens a alguns escravos. Sindel não precisou de muito para reconhecer as pessoas acorrentadas: antigos conselheiros, braços-direito da Realeza e outros que tinham contato direto com ela antes da invasão. Subitamente, num ato de súplica, a atenção de grande parte deles foi atraída pelos olhares vindos de cima e eles viram quem os observava.

De todas as reações, eles tiveram a que Sindel menos estava preparada: lamento. Nada de raiva, agitação, urros de desaprovação, mas a pura e dilacerante pena da sua situação, apesar de eles serem os acorrentados. A rainha sentiu que eles, de alguma forma, conseguiram ler os seus pensamentos mais profundos, então esperava que todos tivessem escutado o seu pedido de desculpas. “Não há nada que eu possa fazer... perdoem-me.”

Aproveitou que estava sozinha e fez o que há tempos havia sido privada de tentar: pensou. Vendo a imensidão branca chamando-a num sussurro leve às origens da vitória-régia, lembrou-se de algo que seu esposo gostava bastante de recitar aos seus súditos.


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.

Viu o homem que nunca reconhecera deitado na cama em que tinha passado a primeira noite consumado seu amor. Percebera, ali, que muito havia se encolhido desde a chegada daquele homem: exagerava-se na falsidade e na ocultação de seus pensamentos sinceros e excluía de si a capacidade de revidar, contestar, sugerir ou modificar.


Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.

Sentia que muito fizera a Edenia aceitando ser a companheira de Shao Kahn: aquilo o acalmou de tal forma que muitos cidadãos puderam ser salvos por não estarem envolvidos com aquele reinado. Não lhe interessava, reforçou o novo rei ao aceitar a barganha da rainha com tamanha facilidade, os moradores ou a cidade, mas sim a posse de Sindel. Nada mais. Entretanto, ainda que mantivesse aquela relação como escusa para salvar os moradores do seu (?) reino, sentia que não era ela que satisfazia os desejos ocultos de Shao Khan e fazia dele seu soberano inatingível: era um espírito irreconhecível que tomava o seu corpo e fazia tudo ficar mais fácil... menos importante. Não sentia seus atos, apenas os realizava.


Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Levantou seus olhos. Olhou para o horizonte. A torrente lacrimal anunciava sua queda, mas não se importou: focou-se nos limites de sua visão. “Até onde seus olhos alcançarem e mais um pouco, és vista como rainha, Sindel,” Jerrod havia-lhe dito na noite de núpcias do casal, naquele mesmo quarto. “Onde teus olhos tocarem, há pessoas que veem em ti um exemplo a ser seguido, Rainha,” completou. Agora, chorava por si, mas mais ainda por eles: onde estava o seu amparo? Seu apoio? Sua certeza? Uma delas estava morta, isso era fato: a outra morreu junto com o silêncio dilacerante, que lhe cortara todas as veias ao mesmo tempo. Morta, vivia; desolada, sorria; enojada, simplesmente via.

Fora Lua um dia; naquele momento, sentia-se formiga na presença daqueles que confiavam nela e ainda não tinha ideia de como reverter a situação. Nada voltaria ao que era antes, sabia bem disso, mas queria poder ao menos governar seu povo como antes — inclusive, aquilo não era mais possível. Shao Kahn aprisionara-a como a um recipiente frágil, limitando seus movimentos. Sindel, porém, era inteira: não suportava mais estar ali, sem ter como se mexer.

Agora, a rainha desistira de trancar suas emoções e deixou-se levar pelas lágrimas que, ora tímidas e ora frequentes, tingiam suas bochechas de um vermelho tímido, mas expressivo, e escapava a raiva que, num descuido, traria um choque odioso que poderia matar seu 'inesposo'. Sua face, antes perdida entre estrelas e a Lua, agora estava fechada, impassível em reflexões internas. Os pingos, espalhados por onde quer que fosse, eram os únicos locais em que conseguia ser aquilo que sempre foi. Estava tão absorta em sua linha de pensamento saudosista ao ex-marido e à sua grandiosidade que não sentiu quando um homem se aproximou por trás de si e a abraçou:

— O que há de errado, meu amor? — indagou Shao Kahn, fingindo-se preocupado.

Num estalo, Sindel acordou à realidade. Aquilo era o seu presente, aquele era o seu futuro. Com a força de um soco no estômago, ela suspirou e respondeu:

— É que eu... só lembrei que te amo.

Sorrira, como sempre. Ninguém se importava com o que ela tinha a dizer, então sorria, esperando que, em algum dia, alguém notasse o conjunto que os dentes faziam com seus olhos.


Em um arquear de lábios, estava a maior súplica que fazia há tempos.
E ninguém havia notado.

Uma última lágrima.
Um último suspiro.
Últimas palavras.
Últimos desejos.

Eu não te amo.
...Eu te amo.
Eu te odeio.

Ninguém.
Queria.
Saber.

Fim


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