Perdida no tempo escrita por DreamUp


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitor!

*--*

Espero que gostem!



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Você já viu alguma daquelas lanternas de lava? Que o que quer que seja aquilo lá dentro fica mexendo e mexendo, mudando de forma o tempo todo, bem psicodélico? Eu estava a aproximadamente 1 hora olhando para uma dessas. E essa uma hora foi tão longa que eu tenho certeza de que já descobri o padrão de movimento da coisa (para baixo, esquerda, direita e para cima, para baixo e para a esquerda de novo ー e se repete). Por que foi mesmo que eu comprei isso? Ah, sim, presente para o Alan. Ele ia odiar, ia ser perfeito. Não pude evitar dar um sorrisinho, afinal ele nunca usava nada do que eu dava para ele. Nada melhor do que dar uma coisa feia que a cada vez que ele olhasse se lembrasse da irmã querida. 

Levantei em um salto da minha cama, agarrei a lanterna e marchei porta do meu quarto afora, descendo as escadas para ver os cabelos pintados de castanho bem presos em um coque da Mary balançando pra lá e pra cá enquanto olhava o espelho no hall. Eu não podia ver seu rosto, mas eu podia imaginar o bico que deveria estar na sua boca. Não pela própria aparência, Mary não precisava se preocupar com isso, mas pelas abomináveis marcas que alguma das garotas da limpeza tinha deixado ao limpar. Não conseguia mais contar quantas vezes trocamos de funcionárias ou empresas que terceirizam, nunca ninguém fazia como deveria ser na cabeça de Mary. Ninguém, exceto Matilde e Adele, que se aposentaram a uns 10 anos. 

Ela girou a cabeça ao ouvir meus passos e abriu um sorriso bonito. Tão logo veio, se fechou em uma linha reta:

ー Sabe, Meredith, querida, essas garotas da Mystics Cleaning que vem limpar aqui não fazem as coisas direitinho. Acho que você deveria considerar contratar alguém diretamente. Terceirizando com empresa a gente nunca sabe quem vai vir, e mesmo que eles garantam um serviço de qualidade, eles não conseguem controlar o que cada uma das pessoas fazem na casa dos clientes. Olha o espelho como está! Todo marcado. ー A sinceridade da reclamação era palpável. Mary reclamada de todas as pessoas que vinham limpar aqui, mas o fazia com as mais sinceras e honestas intenções. 

Mary Whitley trabalhava nesta casa a exatos 43 anos, pura dedicação e amor. E punho de aço. Nunca haveria um único fio fora do lugar enquanto ela estivesse ali. 

ー Se você acha melhor, Mary… Sabe que tem carta branca para fazer como achar melhor. Eu estou indo ver o Alan, ok? Não sei quando volto. 

Eu aposto que em cinco semanas ela vai querer voltar para alguma das empresas que terceirizam. A gente deveria ter mantido algum tipo de tracker, com certeza já contratamos todas as existentes pelo menos uma vez. 

 

Estacionei meu Mini Cooper preto em frente ao apartamento do Alan e dei umas buzinadinhas para que ele soubesse que alguém chegou. Ele morava no centro de Londres, em um lugar que dava para fazer tudo andando ー o que era na verdade a única opção boa já que ele não sabia dirigir (nem usar o transporte público). O apartamento era um duplex em cima de uma barbearia, cujo dono, Fahid, absolutamente detestava meu Mini Cooper. Dizia que eu tampava a fachada do estabelecimento e que quando as pessoas viam o carro achavam que ele cobrava caro e não entravam. Toda vez que ele me dizia isso, eu rebatia dizendo que era absolutamente mentira: o mais provável era que as pessoas se interessavam pelo meu veículo lindo e reluzente e, olhando para ele, enfim acabavam percebendo a tal barbearia atrás e, só então, consideravam entrar naquele lugar. 

Nós tínhamos a mesma conversa todas as vezes que eu vinha no apartamento do Alan ー não era tão frequente assim, mas o suficiente para manter o ritual. Francamente, Fahid, você já viu as ruas de Londres e o tamanho dos saltos que eu uso?, não dá para parar longe. 

Travei o carro e olhei para cima para ver se a cabeça do meu irmão já tinha aparecido pra fora da janela. Lá estava ele, os óculos quadrados de armação azul-marinho, com a cordinha de prata dando a volta no pescoço. Ah, ali estava! O único presente que eu dei para o Alan que ele de fato usava. Acredite se quiser, mais de uma vez, ao colocar a cabeça para fora da janela ele derrubou os óculos. Sim, mais de uma vez óculos voando dois andares abaixo e se espatifando na minha frente. Mais de uma vez só comigo (não que ele recebesse muitas visitas). Depois da segunda vez, eu dei para ele uma daquelas correntes de colocar no óculos, como todo bom velhinho e velhinha tem, para deixar no pescoço. 

Ele me olhou lá de cima com o enorme sorriso perfeito de sempre. Como pode estar sempre tão contente? Ele me mostrou o dedo indicador, pedindo que eu esperasse que ele já abriria. 

Fahid apareceu na porta da barbearia com uma tesoura na mão e abriu a boca para falar do carro estacionado. Fui mais rápida e estendi a mão aberta com a palma voltada para ele. 

ー Hoje, não, Fahid. 

ー Mas você... 

ー Hoje, não, Fahid. 

Caminhei até o portão de ferro que dava ao apartamento do Alan e o destranquei com a chave que eu tinha. Depois de passar por ele, esperei o som das sete fechaduras que ele tinha instaladas na porta principal sendo destravadas para, só então,  poder subir as escadas que levavam ao primeiro andar do duplex. Alan considerava muito importante trancar muito bem ー obsessivamente bem ー  tudo que considerava de valor. 

 

A primeira coisa que se via ao subir as escadas era uma sala bem decorada em tons de cinza e branco. Claramente obra minha. Se fosse pela vontade do Alan na casa inteira só teria um colchão, uma geladeira, um fogão e os cacarecos que ele usava para trabalhar. 

Ele me esperava no meio do cômodo com o usual sorriso e olhos brilhantes. Alan era muito bonito, tinha os olhos azuis, emoldurados pelas enormes armações azulーmarinho, cabelos castanhos escuros sempre despenteados, mas de um jeito que ficava elegante, um sorriso de morrer sempre pendurado na boca carnuda, o queixo firme e nariz perfeito, como o do nosso avô, e a pele branca. Lindo! Me deu muito trabalho na escola ー quantas garotas vinham puxar meu saco para chegar perto dele! O meu consolo é pensar que eu dei pelo menos a mesma quantidade de trabalho para ele. Ele sempre foi meio nerd, meio tímido, daquele jeito fofo, então todo mundo sempre quis tirar uma casquinha. Entretanto ele era desligado demais para perceber qualquer movimentação desse tipo em volta dele, quando alguém vinha flertar, Alan genuinamente acreditava estar fazendo um amigo, não encontrando um parceiro. Ele vivia tanto no próprio mundinho, viajando nas próprias ideias, que esquecia de cuidar de si mesmo e fazer coisas básicas como cortar o cabelo. Sim, ele esquecia, mesmo com a barbearia aqui embaixo. Estava aparadinho agora, porque eu o arrastei até o Fahid a umas duas semanas.

 

ー A que devo a honra da sua visita, Meredith? ー Ele disse enquanto pegava minha mão e me puxava para sentar no sofá. 

ー Eu vim te trazer isso! ー Disse com a maior empolgação que consegui encenar e estendi a lanterna de lava em sua direção. ー Pude ver a confusão passando por seus olhos, enquanto olhava as cores balançando no vidro, e seu sorriso contente ficando amarelo.

ー É muito bonito, Mere! Mas não é nem meu aniversário. ー Ele direcionou os olhos azuis para mim com receio. 

ー Você não precisa estar fazendo aniversário para ganhar um presente, Alan. Que bom que você gostou! Vamos arrumar um lugar para colocar. ー Sorri me levantando e olhando em volta. Alan me olhou com apreensão. Coitado, fazia o melhor que podia tentando esconder o quanto achou odiosa a lanterna. 

ー Claro! ー Deu um sorriso de canto coçando a nuca. ー Que tal lá na cozinha? 

ー Ah, não! Melhor na sua sala de trabalho, afinal é lá que você passa a maior parte do dia. Então vai poder admirar a lanterna o dia todo. ー Sorri e, dessa vez não consegui segurar, deixei um pouquinho das minhas intenções vingativas passarem. Na hora ele estreitou os olhos para mim. ー Vem, vamos. ー O puxei pelo punho. 

Seguimos pelo corredor em direção ao que seria uma segunda sala de estar, mas era usada como laboratório pelo meu irmão. Era um cômodo bem grande, com a parede mais ao fundo revestida de janelas que davam para a rua. 

Ele era físico e fazia pesquisa sabe-se lá sobre o que. Nunca me interessei muito por, afinal eram tantos aparelhos estranhos que eu ficava zonza só de olhar. Tudo que eu sabia é que ele acreditava de verdade que ia salvar o mundo com aquilo. 

Particularmente, eu não vejo como um monte de números e fórmulas podem fazer isso, e, honestamente, nem sei se o mundo merece ser salvo. Mas isso o diverte imensamente, então quem sou eu para ir contra? Nós tínhamos herdado uma herança gigantesca do nosso avô materno, Jerry, então Alan podia autofinanciar sua pesquisa e estudar o que bem entendesse sem se preocupar com nada. 

Dei uma olhada em volta, a procura do lugar perfeito para a lanterna. Ah! Do lado do computador, perfeito!

ー O que acha desse lugar? 

ー Fi-ficou ótimo, Mere! Muito bom, combinou direitinho. ー Ele não conseguiu por um momento tirar o olhar desolado do olhar. E, querido, como eu entendia, a lanterna era realmente irritante. ー Hey, por que não vem ver no que eu estou trabalhando? ー Disse já caminhando em direção ao que parecia uma tela de computador, mas que era da altura dele. Vi números, fórmulas e desenhos irreconhecíveis. Wtf, Alan!

ー Hmm, bem legal, Alan. As coisas parecem estar avançando bem, né? ー Soltei o comentário e esperei que ele notasse a ironia. 

ー Meredith! ー Alan revirou os olhos teatralmente. ー Você disse isso com sarcasmo, mas, felizmente, está certíssima! Eu estou avançando, aliás sinto que estou muito perto de um breakthrough! ー Ele estava bem empolgado, nossa! Quase quero realmente saber o que tudo aquilo quer dizer. 

ー E o que exatamente é isso? 

ー Isso é o futuro! ー Seus olhos brilhavam! Eu admirava a paixão, admito isso. ー Eu estou criando algo capaz de mover matéria através do espaço. Quilômetros em segundos! ー Tanta paixão que eu quase acreditava nele. Quase.

ー Tipo teletransporte? ー Viu? Coisa de filme de ficção científica, como acreditar?

ー Exatamente como teletransporte! ー Alan deu um pulinho. ー Já imaginou como isso afetaria o mundo? Chamadas policiais, emergências hospitalares, viagens, o mundo seria ainda menor! 

ー Parece… ー De mentira, quase disse, mas refleti por um segundo. A ideia era realmente boa: policiais poderiam estar nos locais dos crimes em questão de segundos, paramédicos poderiam socorrer emergências muito mais rápido... então eu entendi o porquê. ー Alan... ー Comecei devagar. ー E se não der certo?

ー Tem que dar, Mere! Vai dar! ー Acho que vi um pouco de desespero em seus olhos. 

ー Sim, claro. ー Disse com calma. ー Eu só queria ter certeza que você também esteja preparado para um resultado negativo, é só isso. 

ー Vai funcionar, Meredith, tem que funcionar. Se não der certo, eu vou continuar tentando e tentando! Milhares de pessoas acabam machucadas por conta disso todos os dias. Se esse tipo de coisa existisse.... ー Ele parou de falar por um segundo, olhou para a tela a sua frente e fechou os olhos apertados. ー Mamãe poderia estar viva, entende?

ー Alan, você sabe que o que aconteceu naquela noite não foi culpa sua. Não havia nada que você pudesse fazer, não havia nada que ninguém pudesse fazer. ー Seus olhos azuis me encaravam, não acreditando em uma palavra que eu dizia. ー Você sabe como ela estava… eu tinha só cinco anos, mas eu me lembro bem.

ー É, eu sei. Eu sei... é só que... poderia ter sido diferente. ー Alan olhava para os próprios sapato. O abracei o mais forte que consegui. Não havia nada mais que pudesse ser dito.

O clima acabou ficando mais pesado do que o suportável, então tratei de mudar de assunto o mais rápido possível. 

ー Eu venho na sua casa e você não me oferece nada para comer. ー Disse enquanto o soltava. 

ー Eu acho que tem alguma coisa na geladeira, se você quiser. Vamos olhar. ー Alan pronunciou também aliviado pela mudança de tema. 

 

Fui embora quando já estava anoitecendo. 

Às 23 horas, eu me encarava no espelho do meu quarto, pronta para sair. Kathleen, uma amiga da época do ensino médio, mandou uma mensagem enquanto eu ainda estava no Alan me chamando para uma festa do primo, Mark. Seria a ocasião perfeita para estrear o vestido que comprei na semana passada, preto com rendas e pedrinhas que refletiam luz e iam até metade das coxas. Ele destacava meus cabelos ruivos e minha pele clara de um jeito que me fazia brilhar junto com as pedrinhas. Me olhei mais uma vez no espelho. Meus olhos azuis estavam destacados pela maquiagem escura, a boca naturalmente rosada, com um gloss e as sardas nas maçãs do rosto dando um charme e ar de inocência. As pessoas sempre se encantam quando me veem e, sem modéstia nenhuma, eu adoro ver os olhos alheios vidrados em mim como se eu fosse alguma pintura muito cara que se tem que olhar com cuidado e admiração. 

Sai do meu quarto e desci as escadas. Mary e as outras pessoas a essa altura já tinham ido embora. Eu morava na antiga casa do meu avô, onde Alan e eu nascemos e crescemos. Era um casarão muito antigo do século 19, que havia sido reformado depois da 2ª guerra. Ele bem poderia ser o cenário de algum filme, com seus três andares, as janelas altas e a aparência imponente. Alcancei a porta principal e o táxi que eu pedi mais cedo já estava aguardando. Atravessei a varanda e entrei no campo de visão do motorista que esperava ao lado da porta do passageiro, pude ver seus olhos piscarem devagar em surpresa e sua boca abrir um pouquinho. Rapidamente se recompôs e lhe lancei meu melhor sorriso encabulado. Ninguém gosta de convencidos.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha gostado!Se chegou até aqui, não custa nada deixar um review ^^

Se esse capítulo tiver um bom retorno, o 2º estará disponível na quarta!
xx DreamUp



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