Proteja os Olhos dos Pássaros Famintos escrita por Wolfie A


Capítulo 3
Primeiro contato




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Abri a porta do apartamento sentindo o coração bater nos ouvidos. Segurei na maçaneta com força e quase senti a energia que fluía entre meus dedos e o metal. Meu pai veio em seguida, pisando dentro do apartamento com uma cautela exagerada. O cheiro foi a primeira coisa que me atingiu as narinas: sangue velho. Eu podia reconhecer o cheiro do sangue, que estava fraquíssimo, mas que ia aumentando a cada passo adentro do apartamento.

— Não podemos deixar esse apartamento fechado com esse cheiro.

Meu pai concordou com a cabeça. Não falou nada. Olhei bem para os músculos de seus braços. Apertavam os ossos de uma forma que me agoniava, estavam todos flexionados, movimento de proteção. Meu pai estava pronto para correr.

Eu via nos seus olhos o esforço que era sentir aquele cheiro e não gritar ou correr para fora dali. Ele dava passos lentos, flexionando um pouco os joelhos como se um monstro o aguardasse na curva.

— Pai, não prefere ficar lá fora? — perguntei. Ele fez que não. Acho que tinha medo de que eu me lembrasse num surto e caísse louco ao chão. Dei um sorriso. — Não vou me matar.

— Não é isso — ele afirmou. Em seguida endireitou a coluna, parando e me olhando nos olhos. — É que me remete a muitas coisas, teu apartamento.

— Vocês não vão me dizer nada? — me apoiei em uma só perna.

— Dizer o que? — perguntou. — Encontramos você quase morto aqui, é tudo que sabemos. O que mais poderíamos saber? Você havia se afastado de nós.

— Havia? Por quê?

Ele respirou fundo. Balançou a cabeça de forma a espantar alguma coisa e me olhou nos olhos.

— Não sabemos. Você parou de visitar a gente. Mudou-se para cá, um apartamento a duas horas de nossa casa, e cada vez ligava menos.

— Eu tinha algum motivo para me afastar de vocês?

— Nenhum que saibamos.

Abaixei os olhos e continuei caminhando. Abri as janelas. Acendi as luzes, mesmo com a luz do sol entrando agora pela janela. Percebi a origem do cheiro: vinha do banheiro, o cheiro nada suave do sangue seco. A impressão que ficava era que algum acidente havia ocorrido ali e que ninguém tinha se dado o trabalho de arrumar. Não podia ser tão mal assim.

Abri a porta do banheiro devagar, entrando com os olhos antes do corpo. Minha visão batia no ambiente como o sol nascente africano. Havia uma banheira, que eu não me lembrava, colocada na parede oposta à porta. Sangue coagulado, velho e escuro decorava a porcelana outrora branca. Um tapete em frente à banheira também possuía suas manchas de sangue e, macabramente, algumas pegadas ensanguentadas marcavam o piso de linóleo branco. As cortinas azuis de seda sofisticavam o banheiro e estavam semifechadas, com a luz passando entre a cortina e atingindo suave a banheira. Meu estômago embrulhou.

Eu entrei na loja atento a tudo que eu queria comprar. Olhei para as louças, o esmero que tinham sido feitas. Uma delas me chamou a atenção de forma singular. Tinha uma aparência antiga e ao mesmo tempo moderna, com as torneiras cromadas entalhadas no desenho de um dragão que pareciam prata polida. Possuía também pés que imitavam patas e era clara e grande. Não pensei duas vezes ao comprá-la. Foi um valor alto, economias que eu tinha acumulado, mas não hesitei.

Queria também, além da nova banheira, um piso mais dramático. Linóleo era um ótimo material, o vendedor disse, que me ajudaria com um ambiente mais aconchegante, e era fácil de instalar. Comprei. Um conjunto de piso de linóleo que era idêntico à madeira. Branco e refinado, faria seu papel, pensei. Para finalizar o novo ambiente, comprei duas cortinas azuis escuras de seda.

A banheira foi entregue dois dias mais tarde, quando o piso já havia sido instalado. Ajeitei todo o apartamento, comprei novos lençóis para a cama, novas xícaras que eu sujaria e deixaria sobre a cabeceira, xícaras de porcelana. Eu me dei todo o trabalho de comprar aquelas coisas e de me sentar para escrever quando estava prestes a perder a cabeça.

Sentei-me para escrever.

Fechei a porta do banheiro inopinadamente segurando na maçaneta com força. Olhei para o meu pai que permanecia imóvel.

— O que foi?

— Escrevi uma carta de suicídio — respondi, correndo até minha cama e revirando os lençóis, a escrivaninha e todas as gavetas ao meu alcance. — Eu sei que escrevi uma carta de suicídio...

— Tobias, você escreveu uma nota apenas — meu pai tirou do bolso da própria camisa um pequeno pedaço de papel. — Pensei que talvez você fosse querer lê-lo, mas sua mãe estava apreensiva.

Peguei cuidadosamente o papel de suas mãos e olhei para minha letra escrita de forma escrupulosa. Apenas uma linha que dizia “Você é o meu câncer”.

— Mas que porra? — eu começava a me sentir atordoado. Meu coração começou a bater rápido quando a ficha finalmente caiu. — Eu realmente tentei me matar. Eu tentei me matar. — sentei na minha cama com o peso do meu corpo caindo agressivo.

— Tobias, eu tinha medo que você reagisse assim. Já passou.

— Não, pai. Olha só esse apartamento — falei apontando com a cabeça. —Eu não só tentei me matar, pai, eu estava completamente louco. Nem sei por quê. O pior é que eu nem sei por quê. Que porra de “você é o meu câncer” é uma nota de suicídio? O que eu queria dizer com isso? Eu queria dizer alguma coisa com isso?

— Sua mãe tinha medo de que fosse para nós essa nota. Mas, Tobias, isso aqui está cheio de dor. Não foi para nós.

Eu sabia que não tinha sido para eles. Eu não sabia como, mas sabia que não era para eles. Eu fechei meus olhos e apertei com força tentando puxar qualquer coisa da memória. Como previsto por minha mãe, eu não sabia se aquela visita ao meu apartamento tinha sido uma boa ideia. Eu estava ainda mais confuso. A diferença era que, agora, eu tinha a sensação de que eu não estava tão bem assim.

Fomos embora em seguida. Eu não queria mais aquela tortura mental de palavras e momentos que me passavam a cabeça, mas que eu não sabia por quê. Eu estava um pouco triste. Era apenas uma sensação de invalidez diante aos fatos. Uma sensação de incoerência. Eu tinha medo.

Fiquei na cama o dia todo, bisbilhotando meus cortes de tempos em tempos, como se alguns segundos mais tarde eles fossem estar curados. Minha mãe bateu na porta aberta para avisar que estava entrando e me trouxe uma xícara de café quente.

— Seu pai me contou... — ela estava um pouco cabisbaixa, embora eu soubesse que isso não a faria falar menos. — Eu sinto muito, sabe. A gente não sabia o que estava acontecendo... A gente pensou que você só estivesse se afastando... amadurecendo, saindo do ninho. Também tinha esse novo emprego, esse novo carro, a gente não sabia se você estava namorando, não queríamos atrapalhar. Ah, sei lá, a gente só tentou te dar espaço...

— A culpa não é sua, mãe, e foi ótimo que vocês me dessem espaço. Se vocês tivessem me prendido talvez as coisas tivessem terminado piores.

— Ah, mas não. A gente devia ter feito uma pressão, sim. Não sei onde eu estava com a cabeça de ouvir seu pai com essa ideia de dar espaço e não sei mais o quê. Eu tinha uma sensação de que alguma coisa não ia bem. Bobeira minha. Só que já passou, tá, Tobias? Já passou essa coisa toda. Fosse demônio, fosse loucura, surto ou o que quer que estão chamando, passou. Vamos deixar isso quieto. Olha como você ficou depois de voltar lá.

— Mãe, estou assim porque tem muita coisa perdida por aí. Faz parte de mim. Não queria ter que lutar por algo que é meu por direito.

— Tobias, deixa isso... — meu pai entrou no quarto, um sorriso diferente no rosto. Minha mãe olhou para ele de repente. — O que foi, Luciano? O que aconteceu?

— Tem um tal de Bartolomeu lá na sala. Convidei-o para entrar. Ele diz que é seu amigo e estava preocupado porque não estava conseguindo falar com você nem com ninguém.

Saltei da cama e desci as escadas correndo. Bartolomeu levantou do sofá antes que eu chegasse perto dele. Eu parei em sua frente e peguei nos seus ombros, olhando fixamente e curiosamente para seus olhos cor de anil. Meus olhos não reconheciam a feição, não importa o quanto eu fixasse meus olhos nos dele. Sentei-me.

— Tobias? — perguntou o estranho, percebendo que eu não o reconhecia.

— Desculpe, não me lembro de você.


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Notas finais do capítulo

Lembre-se de comentar. Muito obrigado por ter lido. Abraços.