Acasos escrita por Renata Guimarães


Capítulo 14
Capítulo 14




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Quando me aproximei da porta, para sair do estúdio, consegui ouvir eles do lado de fora falando em um tom não muito amigável, como se fosse uma discussão. Foi só eu abrir a porta que a conversa morreu no mesmo minuto, cheguei a conclusão que meu nome estava no meio da discussão pra ter acabado bem quando eu cheguei, se fosse outra coisa, eles continuariam. Fiquei meio chateada quando cheguei nessa conclusão, mesmo tentando agradar a todos parece que não consegui, mas é como dizem por ai, nem Jesus agradou a todos, quem sou eu para agradar. O importante é que pelo menos eu tentei. Claramente eles ficaram meio desconfortáveis com a minha presença, colocaram o long no chão e se adiantaram, foram andando bem a frente. Eu fui atrás caminhando, Mayra ficou ao meu lado, andando no long, só que em uma velocidade que seguia a do meu caminhar. Eu optei por não falar nada, meio que não cabia a mim quebrar o silencio. Eu já estava carregando muita coisa nas costas para um começo de tarde.

Fiquei reflexiva me lembrando de quando optei por não viver mais a farsa que vivia. Dá discussão terrível que travei com meus pais quando contei que estava de saco cheio de viver aquele teatrinho e que ia viver minha vida plenamente, fora dos padrões que me eram imposto. Nada de noivado falso, nada de falsa heterossexualidade, nada de fingir estar feliz, nada de regras morais fundamentalistas regendo minha vida, nada de reprimir minha sexualidade ou esconder minha felicidade. Isso quando eu conseguia ser feliz, mesmo que escondida, e conhecer uma garota legal. A recordação deles jogando na minha cara que me deram dinheiro e pagaram uma faculdade cara, que me deram luxo e que eu era mal agradecida e mimada. Jogaram na minha cara como se cuspissem nela, que eu concordei com isso tudo, que não me forçaram a nada e me chamaram de hipócrita “o dinheiro dos tais fundamentalistas te serviu muito bem quando era para satisfazer seus luxos” isso saiu da boca da minha mãe. E minhas palavras em defesa que de nada serviram. Minhas alegações de que eu só aceitei por respeito a eles e por me sentir envergonhada, não por ganancia, aceitei por respeito. Me lembro como se fosse ontem da pedra que foi posta em cima dos nossos relacionamentos. Eu continuei cursando o que ainda tinha de tempo pago de faculdade, arrumei um emprego de garçonete e o dinheiro desse trabalho guardei com o dinheiro do suborno. Juntando o dinheiro necessário para me virar, pagar aluguel do muquifo que eu morei e pagar meu curso. Usei todo o dinheiro do suborno para pagar meu curso e continuei trabalhando como garçonete. Por sorte eu guardei o dinheiro que ganhei dos anos que minha vida virou um teatro e eu virei uma atriz infeliz, se não hoje em dia eu estaria provavelmente morando na rua ou tendo que me sujeitar as vontades dos meus pais. Minhas lembranças foram interrompidas por uma tentativa da May de puxar um assunto.

— Olha, eu sei que você tá chateada, me desculpa tá, mas pensa pelo lado bom, foi só mão de obra.

Eu balancei a cabeça positivamente e dei um sorrisinho amargo.

— É… Só minha mão de obra.

Só… Esse só ecoou na minha cabeça como um fantasma assombrando minha mente. Só minha mão de obra... Só o fruto de muita humilhação, só uma imensa estrada para chegar onde estou. Eu fui humilhada pelos meus pais. Estudei muito para aprender a técnica da tatuagem. Limpei muita mesa durante isso, ouvi muito destrato de cliente arrogante. Dormi em um lugar que parecia mais um buraco do que um quarto. Comia qualquer porcaria só pra me manter em pé. Ainda teve mais judiação no meu tempo de aprendiz no estúdio. Onde eu trabalhava muito mais que como garçonete, mas ganhava um salário tão ruim quanto. Dividi quarto com os meus colegas de estúdio. E nessa época eu nem me sentia no direito de reclamar, por estar melhor do que quando comecei, de morar melhor do que quando cortei relações com meus pais. Aquilo era um luxo para mim, eu nunca imaginei que um dia chegaria no conforto que hoje tenho em tão pouco tempo. “Só sua mão de obra”. Eu olhei para a Mayra tranquilamente andando de long, cinco anos mais jovem que eu. Provavelmente nunca passou por nenhuma barra na vida dela. Eu a 1 ano atrás era empregada no estúdio do Carlão, com um salário de tatuadora, já tinha um conforto que não tinha quando era aprendiz, mas mesmo assim era sofrimento para pagar as contas. Se não fosse Lewis eu estaria na merda, porque eu não tinha contato com ninguém do estúdio. Os caras que ficaram de saco cheio de ser funcionário - ainda mais funcionário do Carlão - e decidiram se juntar para abrir um estúdio novo. Como o Lewis gostava do meu trabalho eu fui convidada para entrar na empreitada junto. Se não fosse por ele, eu ainda seria funcionaria do Carlão com toda certeza. No começo, quando abrimos o estúdio foi difícil, não é fácil administrar um negocio do zero, nossa sorte que os clientes acompanharam os tatuadores, Gabriel ajudou muito dando divulgando, mas foi tudo divulgação a moda antiga. Tanto que só fomos ter plataformas digitais agora. Ainda somos um bebê engatinhando com seu um aninho de vida. Eu pude reconstruir minha vida, graças a essa sorte que dei. Nem todo mundo dá essa sorte, graças a Deus eu fui abençoada.

— No que está pensando? Você tá muito quieta, além do comum.

— Não to pensando em nada - eu não queria ser rude e expor que fiquei ofendida.

Eu que estou a julgando mal, ela pode ter passado por muita coisa com dezoito anos e eu posso estar aqui olhado de cima para ela, como se eu fosse superior, como se minha historia fosse superior a dela, sendo que nem sei a historia dela. Estou sendo maldosa, todo mundo sofre, todo mundo teu seus dilemas. É implicância minha, ela não teve intenção de me ofender. Eu que escolhi me sentir ofendida. Então fechei os olhos por um segundo e tentei apagar tudo da minha mente e focar no momento.

— Não está curiosa sobre o que vai ser o grafite? - eu abri os olhos e Mayra olhava pra mim.

— Sobre o que? Fala ai.

— Conhece o rapper Drake?

— Conheço, só não conheço muito a arte dele.

— Então... tem um muro de um restaurante que liberaram para a gente grafitar, lá é frequentado por uma galera que curte basquete, rap e essas coisas.

Ela ficou esperando eu dar um feedback do que ela estava falando, como se pra checar se eu estava prestando atenção.

— Basquete e rap…

— As outras paredes do restaurante já estão grafitadas, tem uns grafites fodas com Tupac, Notorious B.I.G, Eminem. Quando chegarmos lá você vai ver– ela deu um sorriso de felicidade, como se fosse algo importante para ela. – A nossa parede tem uma parte com o Kendric Lamar, é uma parede grande, e nós vamos fazer o Drake do lado do Kendric.

Ela tinha um jeito super fofo de falar com as mãos e ela fazia gestos grandiosos como se grafitar um muro fosse um evento.

— Vou ficar olhando vocês fazendo arte, não vou atrapalhar.

— Você não atrapalha, só ajuda, por isso eu to falando “nós”. Você está inclusa nesse “nós” - ela parou o long e me encarou.

— Você ainda tá chateada comigo? Eu já me desculpei, não foi minha intenção. Queria ter uma boa explicação para te dar de como tudo aconteceu, mas não tenho… Me deu… seilá, um branco. Eu me empolguei para te ver logo e não pensei em mais nada, não pensei em consequências, só nos benefício de te ver– ela parecia falar com sinceridade, o que amoleceu um pouco mais meu coração.

— Não to chateada é que eu nunca fiz isso e não quero atrapalhar - posso estar um pouquinho chateada, mas realmente estou tentando esquecer tudo isso e não quero que ela saiba que eu estou chateada.

— Você não fez faculdade de belas artes? Aposto que vocês pintavam uns quadros grandes e faziam coisa parecida.

— Sim, fazíamos - eu sorri ao lembrar dessa parte da faculdade, ótimas lembranças. – Só que não com tinta spray.

— Você podia ajudar a fazer as marcações da foto na parede e a gente pinta as marcações, eu dei essa ideia pra galera e todo mundo ficou empolgado.

— Posso tentar…

— A gente ia usar o stencil, mas é na parede de um restaurante, não é a gente de bobeira na rua, seria legal se fosse algo mais elaborado - ela voltou a andar no long. – Quando você olhar a parede e ver o grafite que fizeram do Kendrick Lamar vai entender porque queremos fazer algo a altura, está maravilhoso, grandioso e... corre!

Ela se adiantou um pouco com o long mais em uma velocidade que com uma corridinha eu alcançaria e eu fui correndo ao lado dela que deslizava pelo asfalto. Não sei bem porque eu corri, eu estava atraindo um monte de olhares para mim, olhares das pessoas na rua, o que me deixou muito envergonhada, mas mesmo assim eu segui o embalo. Já dava para ver os amigos dela bem mais a frente, eles estavam no nosso campo de visão, mas não estavam nem um pouco perto. No campo de visão, mas em uma escala bem minúscula para humanos com pouca distancia. O Igor do cabelo loiro raspado olhou para trás e foi o que apontou onde o restaurante estava, de longe enxerguei ele empolgado, com a manga da camiseta dobrada para cima e sua tatuagem no braço. Engraçado que só ele e Mayra que decidiram mudar o local. O resto da “galera” foram tatuados no antebraço. Parei de correr ofegante quando vi que ainda estava longe.

— Nossa, May! Ta muito longe - eu puxava o ar de forma voraz.

— Vem cá, sobe aqui - ela fez um “vem” com a mão.

— Como?

— Com cuidado da pra eu ir te levando, só você ficar em pé bem parada.

— Como?

— Vem aqui que eu te mostro.

Ela foi me guiando com sinais. Me fez subir bem em frente dela, com os pés juntos olhando para a frente, me sentia a Rose no Titanic. Aquela cena na proa do navio. Ela me abraçou como se fosse o Jack e eu comecei a rir com a minha imaginação. Ela deu um jeito para ficar com o corpo de forma que conseguisse dar impulso no long e me segurar ao mesmo tempo. Só conseguia imaginar que se a roda prendesse em algum lugar eu beijaria o chão e ralaria toda minha cara. A velocidade não era tão rápida como é quando ela tá sozinha, mas era melhor que andar ou correr. Eu estava suada e ela nem se importou de me segurar enquanto dava largas passadas para ganhar velocidade e chegar logo no tal restaurante que estava toda a galera dela na calçada esperando e observando a parede. Demoramos um pouco a chegar, eles já estavam com os frascos de spray e com a mascara no rosto.

— Nem demoraram eim…

— Cala a boca de vocês, ninguém aqui tem carro e temos uma dama que não está sobre rodas.

Helen revirou os olhos e já veio se dirigindo a mim, falou olhando pra mim e para Mayra, deslocando o olhar entre as duas.

— Olha, não temos o dia todo para o seu romantismo, Mayra. Eai, tem como fazer sua mágica de belas artes?

— Eu nunca fiz isso antes…

— Dá uma olhada na foto - o Igor mostrou a foto no smartphone dele e olhando para o rosto dele mais de perto comecei a reconhecer-lo, ele estava presente no dia do atropelamento, mas o cabelo não estava raspado. – Eu já vi uns caras fazerem marcação na parede antes de grafitar se baseando em foto, eu trouxe esse lápis de pedreiro, não sabia muito bem que material usar, mas isso deve ajudar.

— Posso tentar fazer o desenho com esse lápis e vocês colorem.

— Posso te ajudar a fazer o desenho, pra agilizar e você não sofrer tudo isso sozinha, Helen também vai ajudar.

O garoto Igor deu um sorriso super simpático e se mostrou muito proativo para tentar dar certo. Já a Helen por outro lado ficou com uma cara seria o tempo inteiro e fez tudo de má vontade. Só ajudou o básico, fez mais uma coordenação. Ficou dando mais ordens do que botando a mão na massa. Já os outros trouxeram escada, ajudaram a mover a escada e apagavam qualquer falha que nós cometíamos. Foi um bom sobe e desce de escada que eu e Igor fizemos. Helen ficou só segurando o celular e dando toques do que podia ser melhorado ou não. Que pra ser sincera, até que ajudou. Foram séculos de um processo demorado de marcar e apagar marcação. Isso só colocando a base do desenho. Quando chegou na parte dos detalhes do sorriso, do cabelo, nariz e barba que foi ainda mais complicado. Definir onde precisava de sombreado, qual cor iria em qual parte. Fizemos praticamente um projeto com imaginação e anotação em um pedaço de papel velho. Então começou o trabalho de quem entendia de Spray. Eu sentei no meio fio do outro lado da rua e fiquei observando. Igor trabalhou duas vezes, ele que foi instruindo todo mundo, inclusive a Mayra de onde pintar, que cor usar e tudo mais. Helen sentou no meio fio ao meu lado e confesso que dei uma tremida na base.

— E ai, qual é de você com a Mayra? - ela tinha um feição firme e eu quase engasguei, mesmo não tendo nada na boca, acho que engasguei com a pergunta em si.


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