Contos da Montanha Shiroyama escrita por Makimoto


Capítulo 2
Capítulo 1 — “Você fala?”


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente~! Antes de mais nada, eu gostaria de dizer que eu fiquei _radiante_ com todo o feedback que eu recebi nessa história em apenas um prólogo. Eu comecei esse projeto sem muitas expectativas, hahah, mas agora eu me sinto muito bem com ele e eu devo isso a vocês. Também gostaria de lembrar, e esclarecer, que sim, eu sou muito lenta pra responder comentários e atualizar, então, por favor, não me matem e nem fiquem bravos comigo. ç.ç~ uhsuashausa! Não estou ignorando ninguém, eu juro, eu só sou lenta mesmo pq escrevo bíblias, mas pode deixar que estarei respondendo todo mundo assim que vocês virem essas notas (tadãã!). Como quero reservar as notas iniciais para o glossário do capítulo, peço que leiam as notas finais pq tem mais coisas que eu quero falar lá. x3~ Enfim, aí vai:

Kosode :: Parte superior da vestimenta da época (para homens e mulheres);
Hakama :: Peça de roupa equivalente à calça;
Zabuton :: Almofadas onde as pessoas sentam ao redor da mesa baixa;
Bakeneko :: Yōkai em forma de gato;
Yōkai :: Como comumente se chama as criaturas sobrenaturais do folclore japonês;
Rōka :: Corredor (que pode contornar a casa também);
Kanji :: Caracteres da língua japonesa usados para escrever em japonês;
Butsudan :: Santuário/altar doméstico de origem budista onde costumam colocar fotos de um ente querido que já faleceu;

Boa leitura! ♥



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15 de junho, sexta-feira;

Embora tenha desperdiçado toda a manhã vasculhando cada canto parcialmente empoeirado da casa, não consegui encontrar o livro que, eu tinha certeza, havia deixado em cima da mesa. Tentei lembrar da última vez que o li, pouco antes de dormir, quando ponderava sobre listar ervas que eu poderia encontrar nos arredores do vilarejo, mas meus pensamentos sempre convergiam para a mesma conclusão.

A confusão matutina atrasou os meus planos, porém, convencida a não permitir que arruinasse completamente o meu dia, vesti-me e decidi caminhar.

Assim como no dia anterior, quando cheguei à Yamakura, o sol queimava forte, todavia, desta vez, o tempo estava agradavelmente úmido. Eu podia ouvir o cricrilar ritmado de um grupo de grilos invisíveis, e a árvore no centro do vilarejo, cuja vivacidade eu, infelizmente, não tive tempo de apreciar antes, agora despontava sobre meus olhos.

Além dela, havia um enorme campo aberto e inclinado que decrescia em direção à base mais baixa da montanha. As folhas das árvores brilhavam ao serem tocadas pelo sol da tarde. Meus olhos foram engaiolados pela paisagem rural, mas ainda assim poética, que me cercava, ao passo que senti o meu espírito dissolver-se gradualmente entre os galhos retorcidos e no sopro do vento que sacudiu os meus cabelos.

Conforme fui subindo a estrada de terra principal, reparei em algumas caixas empilhadas na entrada de uma das casas. Haviam cenouras e batatas nelas. Meneei a cabeça para observar melhor e, apesar de eu não entender nada de agricultura, a cor vibrante me sugeria que tinham uma aparência saudável. Estiquei o dedo para tocar os legumes, mas, antes que eu pudesse concretizar o ato, um berro que veio de dentro da residência fez eu me recolher assustada:

— O que diabos você está fazendo? — Era um rapaz alto, de cabelos negros, vestido em Kosode e Hakama de um azul opaco.

Ele não parecia ser muito mais velho que eu.

— Perdão?

— Perguntei o que você está fazendo. — Ele parou na minha frente e me encarou com visível irritação. — Já estou tendo problemas o suficiente com a bagunça de ontem à noite e definitivamente não preciso de mais gente xeretando aqui.

— Eu só estava olhando. — Franzi o cenho. — Não precisa se exaltar.

— Eu não estou exaltado. — Respondeu ele, visivelmente exaltado.

— Eu acho que está sim.

— Não, não estou.

Aquela discussão se estenderia por horas se eu não a tivesse interrompido. Não entendia as intenções daquele homem, nem as razões que sustentavam o seu aborrecimento, de modo que achei mais correto deixa-lo acreditar que sua conduta tinha alguma base sólida, afim de encerrar aquele debate ilógico.

— Desculpe, eu não quis invadir.

Ele me olhou como quem não sabia o que fazer.

— Você disse que alguma coisa aconteceu aqui ontem à noite?

— Sim. Eu fui roubado novamente.

— Como assim?

— Não é novidade, mas, veja bem, foi há muito tempo. Quando aconteceu pela primeira vez, há algumas semanas, eu achei que fosse um animal, como um felino faminto ou uma raposa selvagem, mas, além de roubarem a comida, desta vez minhas ferramentas sumiram. — Ele coçou a cabeça, parecendo nervoso.

Quanto mais o relato prosseguia, mais estranho parecia. Conforme me explicou, ele sempre colhia os legumes e os deixava na calçada, encaixotados, para que pudesse cambiá-los por outras mercadorias com os demais aldeões. Nunca houve uma preocupação genuína com a segurança pois todos se conheciam muito bem e furtos não eram comuns na região.

— E quem é você, afinal? Você não parece ser daqui. — Ele indagou.

— Não. Eu cheguei ontem e estou ocupando a casa do senhor Inoue enquanto pesquiso algumas ervas locais.

— Você é a forasteira? — Retrucou em um tom esnobe.

— Sim.

— Não acha engraçado que você chegou ontem e, de repente, me roubam novamente? — Ele me encarou e disse com a expressão mais séria que eu já tinha visto.

— Eu espero que não esteja sugerindo que eu tenho alguma coisa a ver com isso...

— Ryōtarō.

— Ryōtarō-san. — Repeti. — Se houve um caso antes da minha chegada, creio que eu não posso ser acusada de ser a culpada dele.

Ele continuou me encarando por alguns segundos, com os olhos fixos nos meus, talvez pensando em uma resposta. Eu não estava disposta a levar aquela conversa adiante pois aquele homem não parecia propenso a mudar de ideia quanto à sua errônea acusação.

— Será que foi obra de um ladrão? — Perguntei diretamente a ele.

— O vilarejo é pequeno e todos nós nos conhecemos aqui. Eu acho difícil que algo assim tenha acontecido a menos que seja alguém de fora.

Não parecia que chegaríamos a algum lugar.

— Bom, eu devo ir. — Eu disse, com sinceridade, antes de deixa-lo em paz. — Boa sorte com as suas ferramentas. Eu espero que as encontre.

Sem demora, refiz o caminho anterior e decidi retornar para casa.

Embora a falta de modos tivesse me incomodado, tive a impressão de que Ryōtarō-san estava apenas zangado pelo ocorrido. Eu vivi a vida inteira em Tóquio, e não saberia sequer imaginar como a vida no interior era menos prática. Ter seu trabalho surrupiado por um desconhecido devia mesmo ser um contratempo bem desagradável especialmente para alguém que trabalhava em uma coisa tão essencial ao ser humano como o alimento.

Ruminei sobre a questão durante todo o trajeto de volta e só depois que cheguei em casa eu me dei conta de uma coisa: a última vez que eu tinha visto o meu livro tinha sido no dia anterior, e o meu chapéu também havia sumido.

Eu não tinha nenhuma prova, mas — por um efêmero instante — passou-me pela cabeça que talvez os desaparecimentos, ambos repentinos e inexplicáveis, tivessem alguma relação.

Ou, quem sabe, eram só uma coincidência muito esquisita.

Entrei em casa quando a tarde já se findava e revirei novamente a sala, mas nada parecia fora do seu lugar. Havia uma urna de madeira, quadrada e fechada, no canto — contendo meu material de pesquisa e amostras medicinais —, livros aqui e ali, e algumas mudas de roupa no armário entreaberto.

Um calafrio percorreu o meu corpo quando a hipótese de que tinha sido tudo obra de um ladrão retornou à minha mente. Se fosse verdade, isso significava que alguém tinha entrado em minha casa durante a noite e roubado o livro. E, durante a visita de Yamada-san e Suzu, meu chapéu.

Pensar que estive tão perto assim de alguém com intenções ruins me deixou apreensiva.

Decidi afastar aqueles pensamentos — que não tinham nenhum fundamento comprovado — da minha mente e retomar os meus afazeres. Eu sabia que quanto mais pensasse no assunto, mais me sentiria mal por estar sozinha naquela casa enorme e velha.

Acendi a lamparina, depois de confirmar que havia óleo suficiente para manter o fogo queimando pelas próximas horas, e acomodei-me na Zabuton. Após abrir um outro título — fino e amarelado, com “Medicina da Natureza” escrito na capa sob a caligrafia tradicional japonesa —, apanhei minhas folhas de anotação. Abri o livro em uma página anteriormente marcada e me pus a selecionar e anotar nos papéis ao lado as plantas que eu deveria coletar no dia seguinte.

Poucos minutos compenetrada em minha tarefa foram o suficiente para que eu esquecesse momentaneamente o assunto do roubo. Acepções divergentes em torno da minha profissão, e que eu havia ouvido durante todo o curso, brotaram novamente em minha mente. Voltei a pensar sobre a certeza que eu tinha de que, para muitos, o trabalho de um médico, ou daqueles que estudam para isso, podia parecer decerto enfadonho, mas, para mim, que vi a beleza no executar de sua função social, sempre foi prazeroso descobrir maneiras diferentes, e naturais, de trazer e renovar a vida das pessoas.

Em sequência, a figura de minha mãe preencheu meus pensamentos. Sua saúde sempre havia sido muito frágil e, quando eu era criança, comumente a via tomando muitos comprimidos. Aos meus olhos, nenhum deles fazia efeito, pois ela continuava de cama por semanas quando adoecia. Ao começar a faculdade, explicaram-me que o efeito de uma cápsula artificial era muito mais potente e rápido que o de uma planta em seu estado de pureza, por exemplo, mas que, em compensação, o uso excessivo delas causava vários efeitos colaterais imperceptíveis ao longo da vida, que poderiam retornar mais tarde.

Acho que em algum ponto eu cheguei à conclusão de que queria curar as pessoas de uma forma saudável — sem efeitos colaterais, sem medo, sem contrapesos —, motivada por minhas próprias razões, todavia que de uma forma que ajudaria outras pessoas.

Minhas fantasias foram interrompidas quando, de súbito, a lamparina apagou e o cômodo foi tomado pela escuridão. Fiquei imóvel por alguns instantes, tentando me dar conta do que tinha acontecido, entretanto, não importava o quanto eu piscasse na débil tentativa de ajustar a visão, eu não conseguia enxergar absolutamente nada.

Ergui-me e fui até o objeto, só para constatar que não havia mais sequer um pingo de óleo — embora ainda estivesse morno — em seu interior.

Meus músculos enrijeceram ligeiramente quando, de súbito, ocorreu-me que poderia ser o ladrão.

Fiquei em silêncio, mas não fui capaz de ouvir nenhum som.

Tateei as paredes até encontrar a Fusuma e deslizei-a para o lado. Estava na cozinha e, com alguma dificuldade por causa das coisas que eu deixei no chão, consegui alcançar a saída que me conduziu aos fundos da casa.

O luar iluminou o meu rosto no momento em que eu saí e eu me senti aliviada. Havia uma árvore há alguns metros, cercada de arbustos, e, entre mim e eles, um espaço grande e com grama crescendo. Algumas toras de madeira repousavam no canto do quintal, cobertas de poeira e rachaduras, e um pássaro pequeno, que estava apoiado em um dos galhos finos da árvore, alçou voo e desapareceu de vista.

Repentinamente, ouvi um som abafado vindo dos arbustos. Assemelhava-se ao som de terra sendo cavoucada. Um pouco apreensiva, caminhei em passos cautelosos em direção à origem do ruído, me movendo devagar. Quando me aproximei o suficiente para tocar o arbusto, o barulho desapareceu.

Estiquei-me por cima da folhagem, inclinando a cabeça o máximo possível, e pude ver então um buraco, próximo à base da árvore. Não havia ninguém por perto e haviam ferramentas de jardinagem espalhadas ao redor. Estreitei os olhos e tentei ver mais adiante, porém, como a penumbra não permitia, fui forçada a chegar mais perto.

Quando pus o rosto próximo do buraco, ouvi novamente um ruído baixo vindo de dentro e, antes que eu pudesse agir, uma figura, que eu não consegui identificar no momento, saiu e pulou sobre mim. O peso dela foi o suficiente para me derrubar, em conjunto com o susto que fez meu coração acelerar de repente, e, ao cair, o quer que fosse, saltou de cima de mim e parou a alguns metros na minha frente.

Levantei-me, apoiando os cotovelos no chão de terra, e me deparei com um gato enorme, com mais da metade do meu tamanho — de pelagem branca com algumas manchas pretas e alaranjadas —, encarando-me com um olhar selvagem a pouco mais de um metro de onde eu estava. Sua cauda era longa e se contorcia freneticamente enquanto ele sibilava, mostrando os dentes para mim. Haviam bolas flutuantes, que pareciam ser de fogo azul, dançando ao redor dele, e sua aparência lembrava muito a dos Bakeneko descritos nas histórias infantis.

Eu já tinha visto muitos tipos de gato na vida, especialmente quando era criança e costumava brincar com os que viviam ao redor da minha casa, mas aquele era totalmente diferente.

— Calma. — eu disse inconscientemente; esperando que minha voz talvez pudesse acalmá-lo. — Eu não vou machucar você.

— Me machucar? — Palavras graves saíram de sua boca felina, enquanto ele remexia os bigodes. — Não me faça rir. Basta um segundo para que eu rasgue a sua garganta.

O gato tinha falado.

Ignorei completamente seus dizeres ameaçadores, e me ative ao fato de que o gato tinha falado.

Fiquei atônita.

— Você fala? — Indaguei, vacilante. — Quero dizer, você... fala?

Ele rosnou de novo e eu me dei conta de que não estava sonhando.

— Você sabe quem eu sou? — Ele perguntou. — Ou melhor, “o que” eu sou?

— Sim. — Minha voz trêmula confirmou um fato que, por dentro, eu mesma duvidava.

Ele era mesmo um Bakeneko — por mais absurdo que fosse repetir isso para mim mesma — e não haviam dúvidas. E isso significava que ele era, também, um Yōkai: um monstro, uma criatura inumana, que inspirou milhares de histórias e escritos e que sempre foi tido como apenas uma lenda.

— Você é o responsável pelos roubos? — Insisti. — Da comida, do meu livro. Do meu chapéu.

Ele ficou em silêncio a princípio, mas eu pude ver que seus músculos iam, lentamente, relaxando e envergando uma postura mais branda.

— Eu estava com fome.

Meu nariz captou cheiro de peixe no ar — de óleo de peixe, para ser mais exata —, como o que se usa nas lamparinas antigas convencionais.

— E o óleo estava uma delícia. — Admitiu sem remorso.

Eu não sei se ele não era realmente mau ou simplesmente percebeu que eu não representava nenhum perigo, mas não parecia mais disposto a me atacar. Eu ainda estava assustada e mal podia explicar o quão louca eu me sentia por perceber que eu estava tendo uma conversa muito mais conclusiva com um gato-monstro que com o rapaz das cenouras.

— Eu peguei o chapéu, e o livro, porque não pude me conter. É da minha natureza roubar coisas atraentes. Não tive a sorte de poder escolher um lado, como você.

Arqueei a sobrancelha, sem entender o que havia sido dito, e fiquei ainda mais estupefata ao me dar conta de que estava lidando com um gato-monstro cleptomaníaco.

— Porque você estava cavando? — Questionei, ao cargo que as orelhas dele se moveram suavemente. — E por que roubou as ferramentas de Ryōtarō-san?

— Eu estava procurando uma coisa.

Soergui as sobrancelhas.

— Você conhecia o homem que morava nessa casa? — Perguntou-me.

Eu balancei a cabeça em sinal negativo, e ele encurtou a distância entre nós. Sentei-me na beirada do Rōka que contornava a casa, permanecendo incerta sobre a natureza e as intenções do outro, e o animal se acomodou no chão de terra à minha frente.

— Há muitos anos, eu costumava vir a esse vilarejo para brincar com uma garotinha que morava na última casa da estrada, e que estava sempre sozinha. — Ele deu início ao seu relato. — Ela era muito tímida e não conseguia se enturmar. Foi então que, num certo dia, nós apostamos se ela conseguiria enterrar um pequeno sino, que ela tinha posto em uma fita e amarrado em torno do meu pescoço, na base daquela árvore, sem que o dono da casa, que era um homem rude, amargo e temido pelas outras crianças, descobrisse. — Seu olhar repleto de nostalgia e inocência repousava nas estrelas, fazendo-me nutrir pela misteriosa criatura simpatia e afeição inteiramente inesperadas — E... bom, ela o fez.

As cerúleas esferas de luz, com sua sinistra aparência etérea, continuavam a oscilar ao redor do gato, e eu não conseguia tirar os olhos delas enquanto a história prosseguia. As imagens que a ilustravam se formavam em dentro da minha cabeça sem que eu pudesse impedir.

— Conforme o tempo passava, eu percebia que quanto mais eu ficava perto dela, mais ela se isolava das outras crianças. Acontece que, uma vez que você descobre sobre a existência dos Yōkai, a linha entre o mundo humano e o nosso se torna cada vez mais tênue, e eu não queria que ela a atravessasse. Humanos e Yōkai nunca conviveram juntos e eu, francamente, não sei que tipo de efeito isso teria sobre ela caso decidisse prosseguir.

A voz, que outrora era fantasmagórica e penosa, agora tinha um tom mais manso. Minha intuição me dizia que ele estava falando a verdade.

— Eu desapareci e a deixei para trás. — Confessou com infelicidade. — Sem despedida, nem mesmo um adeus, eu virei as costas e parti.

Pude sentir um leve pesar em sua fala. Por alguma razão, que no momento eu não soube explicar, muito menos entender, eu já não tinha mais medo dele. Embora eu devesse. Ele era um Yōkai.

— Você só queria protegê-la, não é?

— Eu nunca tinha conhecido um humano que pudesse me ver. Nunca soube o que a tornava tão especial, mas... — Ele fez uma pausa. — Ela me viu. E não teve medo de mim.

Era difícil para mim imaginar que uma criança pudesse se deparar com um monstro daquele tipo, sem se assustar. Adultos têm respaldo para duvidar da própria sanidade, cogitar a possibilidade de um sonho, mas — pensava eu — as crianças normalmente eram mais suscetíveis ao espanto.

— Posso pedir um favor? — Seus olhos dourados encararam o fundo da minha alma.

Refleti por alguns minutos a respeito de seu pedido, mas, naquele momento, eu não tinha ideia do que encontraria mais tarde.

No dia seguinte, acordei cedo e subi a estrada em direção à última casa do vilarejo. O tempo estava seco, como era o previsto, mas eu gostava de caminhar. Sentia-me estranhamente disposta naquela manhã e tentei não cogitar que poderia ser graças ao meu visitante noturno.

Quando cheguei na residência ornamentada com uma placa com os Kanji para “Matsuoka”, fui recebida por uma senhora muito idosa e de mãos trêmulas que fitou-me com ternura.

— Bom dia. — Cumprimentei-a delicadamente. — Aqui é a casa da Miho-chan?

Suas sobrancelhas saltaram em surpresa.

— Você era amiga da minha filha?

Demonstrei estar tão surpresa quanto ela e, sem demora, e depois de uma explicação pouco honesta sobre o motivo da minha visita, fui convidada a entrar.

No momento em que transpus a porta, vi-me em um cômodo, que parecia a sala de estar, cheia de desenhos presos nas paredes. Meus olhos passearam através das folhas rabiscadas, uma a uma, que continham o mesmo traço e estilo de desenho, enquanto eu tentava imaginar quem os tinha feito.

— Ela gostava muito de desenhar. — Mencionou a senhora. — Passava a maior parte do tempo desenhando e brincando sozinha.

Após servir-me chá e pedir que me sentasse à mesa, a idosa me contou que a filha tinha problemas para se relacionar com as outras pessoas e que sempre tinha sido, desde muito nova, extremamente retraída. Nunca tinha dado trabalho, sempre foi uma criança amorosa e atenciosa para com a família, mas, por alguma razão, apresentava dificuldades em interagir e fazer amizade com as outras crianças.

A partir de certa data, houveram episódios em que ela parecia estar conversando com alguém, mas, quando a mãe verificava, não havia nada lá. Ela passou a desenhar o mesmo gato, sempre com as mesmas manchas nos mesmos lugares, em várias folhas de papel. Matsuoka-san preocupou-se com a filha e tentou descobrir a raíz do problema, mas, em contrapartida, as outras crianças passaram a ter medo da menina e a ignoraram ainda mais.

Senti um aperto no peito quando a história começou a parecer muito familiar para mim. Meus olhos rapidamente repousaram sobre o Butsudan no canto do aposento. Além de alguns objetos de origem budista espalhados pelo altar, havia no centro uma pintura pequena do rosto de uma garotinha — em seus cabelos castanhos e sorriso encantador — cercado por tigelas de arroz.

Também me foi dito que Miho-chan morreu ainda na infância, anos depois, de causas desconhecias e foi enterrada montanha acima, em um pequeno cemitério utilizado pelos aldeões, e que poucos souberam do ocorrido.

Meu peito encheu-se de pesar.

— Os desenhos são muito bonitos. — Completei com um melancólico.

O pedido que o Bakeneko me fez começou a soar ligeiramente inapropriado.

— A senhora se importaria se eu ficasse com um? — Perguntei com incerteza.

— Não. — Ela me ofereceu um sorriso gentil e os olhos marejados. — Já faz muito tempo que as pessoas não perguntam sobre a minha filha. Conversar sobre ela, de certa forma, faz-me sentir como ela ainda estivesse aqui.

Ela me entregou uma das folhas rabiscadas e eu prossegui, depois de ter agradecido pela recepção, montanha acima. Continuei meu caminho pela estrada em direção ao topo e me preparei para aventurar-me por uma trilha íngreme e raramente utilizada.

Em determinado ponto, em um campo de terra regular onde a maior parte da grama havia sido arrancada, notei a presença de algumas lápides de pedra, dispostas sem ordem definida, de tamanhos semelhantes. Algumas delas estavam cobertas de musgo. Eram monumentos quadrados, com algumas falhas retilíneas nos cantos, com um lugar para flores, incenso e água na frente e uma cripta embaixo para as cinzas.

Corri os olhos pelo local, observando os Kanji esculpidos nas pedras, até encontrar os que correspondiam ao vocábulo “Matsuoka”. Caminhei até ele, abaixando e me sustentando de cócoras, e certifiquei-me de que o nome escrito no jarro de cinzas era “Miho”.

Acendi um incenso e juntei as mãos para orar.

O tilintar de um objeto metálico ecoou pela floresta ao mesmo tempo em que uma brisa suave soprou sobre mim. Era uma sensação agradável, embora eu estivesse circundada de corpos cremados, e o cheiro da natureza — de terra, de plantas verdes e de vento — inebriava os meus sentidos e me fazia imergir em uma profunda sensação de paz.

O Bakeneko surgiu de detrás de uma das árvores carregando uma fita vermelha com um sino preso nela. As chamas azuis que outrora circundaram-no ainda estavam lá, mas ele parecia muito menos assustador agora, sob a luz do sol que, com dificuldade, penetrava as folhas densas e nos atingia.

Ele se aproximou do túmulo de Miho-chan e depositou o sino cuidadosamente ao lado do jarro com as cinzas. Sentou-se sobre as patas traseiras, enquanto a cauda raspava na areia, fechou os olhos e baixou sutilmente a cabeça.

Eu me perguntei se gatos oravam.

Abri apenas o olho esquerdo e vislumbrei a figura mística daquele animal que eu tanto ouvi falar quando eu era criança.

— Eu ainda quero o meu chapéu.

— Certo.

— E o meu livro.

— Certo.

Meus lábios se curvaram em um sorriso discreto e eu voltei-me novamente para a minha prece.


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Notas finais do capítulo

Agradecimentos cabem ao Artur, que desenhou a Makoto _maravilhosamente_ e eu estou encantada até agora; sério, você é um amor! ♥♥♥ Fico feliz em anunciar também (mds, já usei tanto a palavra "também" nessas notas uhasuhasa) que eu preparei um blog (http://kemono-bukku.blogspot.com.br/) sobre a história onde eu vou reunir todos os elementos pertinentes à YnM; desenhos que eu receber, informações sobre os yōkais, enfim, tudo relacionado à obra.Obrigada pelo apoio, gente, e eu espero que gostem! ♥