Cantiga de outro Verão escrita por DezzaRc, A Little Dreamer


Capítulo 4
Luto


Notas iniciais do capítulo

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Música do capítulo: Por Enquanto - Cassia Eller



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Hugo não teve alternativa a não ser deixar a oficina de escrita criativa e rumar para o outro lado da cidade, em busca do sobrinho. Helena tinha extrapolado mais uma vez e não se importou em deixá-lo só em casa assistindo TV enquanto ia para suas noites agitadas com os filhinhos de papai. Ele estava cansado do longo dia de trabalho e agora mal se aguentava de pé. As poucas pessoas no ônibus àquela hora o olhavam, curiosas. O que um homem engravato fazia no transporte público? Era impressionante como o ser humano se deixava levar pelas aparências.

Ele saltou no bairro que morou boa parte da vida, não tão cheio quanto gostaria. Sabia que era perigoso caminhar naquelas vielas tão tarde; os donos da rua, mais conhecidos como os chefões do lugar, já tinham decretado o toque de recolher e era loucura permanecer fora de casa após aquele horário. Mas ele não sairia dali sem o sobrinho. Com passadas largas, chegou a um prédio de péssima estrutura, cheio de rachaduras e a pintura descascada. Tudo ali gritava descaso. O descaso de uma população abandonada e posta à própria sorte.

Hugo subiu o vão de degraus e chegou ao terceiro andar ofegante. Não se fez de rogado e bateu sem pena na porta do apartamento 9, um tanto impaciente. Alguns segundos depois, que mais pareceram horas, a porta foi aberta por uma senhora rechonchuda e de sorriso maternal. Ela sorriu ao reconhecer o rapaz e deixou que ele entrasse, depois de receber um beijo carinhoso na testa pelo belo homem.

— Guga já dormiu? — Hugo perguntou, olhando ao redor da sala minúscula, mas confortável e acolhedora.

— Sim, meu querido. Ele dormiu logo depois de jantar.

O moreno segurou um palavrão em respeito à velha senhora. Helena nem ao menos se preocupara se o filho tinha se alimentado.

— Não sei nem como lhe agradecer, Lúcia — ele segurou a mão da mulher que lhe tinha amor como um filho. — Uma vida não pagaria a dívida que tenho com a senhora.

— Deixe disso, querido! — Lúcia deu alguns tapinhas no rosto corado pelo esforço da corrida do rapaz. — O amor não é moeda de troca.

Ele observou os olhos escuros e calorosos da mulher que considerava como sua segunda mãe e agradeceu por ter tido pelo menos aquela sorte na vida. Poucas pessoas valiam a pena nesse mundo, e Lúcia era uma dessas. Apesar de a irmã ser uma cabeça oca, Lúcia a amava incondicionalmente, mas ficava triste com a forma que Helena tratava o próprio filho. Guga era um amor e, acima de tudo, uma criança. Nenhuma criança deveria ser largada a mínguo, muito menos não ter o amor dos pais.

Hugo desistiu de voltar para casa naquela noite e apenas levou o sobrinho adormecido no colo à porta da frente, a casa de sua falecida mãe. Ele não gostava nem um pouco das lembranças dolorosas que eram despertadas naquelas paredes agora tão frias e sem amor. Depois de colocar o sobrinho no quarto, ele foi até a cozinha e achou uma garrafa de whisky no armário. Ela não deveria estar ali, no entanto, e isso só comprovava o fato de que Helena não deixara de beber.

Não soube ao certo a hora que jogou a garrafa fora, nem que adormeceu no sofá desconfortável com a TV ligada, mas despertou desorientado e com uma leve pontada na cabeça quando a irmã chegou aos primeiros raios de sol da manhã.

Helena não parecia surpresa ao vê-lo jogado em seu sofá. Às vezes, era patético o comportamento de bom moço do irmão, tão preocupado com uma criança que nem ao menos era seu filho. Ela não cansava de culpá-lo por não tê-la deixado cometer o aborto ou entregado Gustavo a adoção assim que nasceu. Não. Ele não só foi contra qualquer coisa que pudesse livrá-la daquela criança indesejada, como também a obrigava a fazer um papel que não queria exercer. Helena não era, e nunca seria, uma mãe.

Ela já estava pronta para passar direto pelo irmão, mas foi interrompida por um puxão brusco em seu antebraço.

— Bruto como sempre — declarou, olhando-o com ódio. — Veio fazer as malas daquele bastardo?

Hugo a fitava com a expressão enojada. Aquela mulher com certeza não saiu da mesma barriga que ele. Ela não era digna de ser filha da mãe que tiveram. Helena passava muito longe de tal proeza. Era triste a forma como aquele rosto bonito e angelical poderia enganar alguém, até uma pessoa de bom coração como Lúcia.

— Nós fizemos um acordo, Helena.

— Olhe só, senhor advogado. Não me lembro de ter assinado contrato nenhum com você. Então, se não veio buscar aquela peste, vá embora.

Hugo respirou fundo, tentando não cometer uma loucura contra a própria irmã. Ele se afastou e esfregou as mãos no rosto, nervoso. Por que ela não entendia aquilo de uma vez por todas? Por que tinha de repetir todas as vezes que se encontravam?

— Helena, para minha infelicidade, eu preciso de você. Preciso que coopere e me ajude. Se eu pudesse, e Deus sabe o quanto eu queria poder, levaria o Guga daqui sem olhar pra trás — ele voltou a fitá-la, os olhos derretidos em súplica. — Mas não tenho como cuidar dele se mal paro em casa, muito menos tenho condições de bancar uma babá com o tanto de gastos que já tenho com o garoto, pois nem isso você se interessa em ajudar.

Helena soltou uma risada irônica.

— Eu falei, não falei? Mas você me escutou? Não! Poderíamos não estar passando por esse problema agora se você tivesse me ouvido. Mas escute bem dessa vez, Hugo. Nós não tínhamos e nem teremos condições de criar essa criança! Não vê que ele é um estorvo para nossas vidas?!

— Cale já essa maldita boca, Helena! — Hugo gritou, mas logo se arrependeu por correr o risco de acordar o sobrinho. — Se tem um estorvo aqui, essa pedra no meu caminho é você, sua vadia!

A moça de cabelos negros apenas revirou os olhos, entediada com as discussões de sempre. Ela poderia muito bem largar a criança em um lugar qualquer, mas aí sim não teria sossego na vida. Helena precisava arrumar um jeito rápido de se livrar do garoto, e a forma que o irmão ia aos trancos e barrancos em meio a estágio e bicos, nunca teria sua vida de regalias de volta.

— Qual a nova previsão, Hugo? — perguntou cansada, retirando os saltos finos dolorosos dos pés e os atirando em qualquer lugar entre o sofá e a mesa de centro.

— Só preciso de três meses — respondeu enigmático. — Até lá, faça o favor de não cometer nenhuma besteira.

♦♦♦

Hugo andava na grama verde meticulosamente aparada. Era estranho como um lugar fúnebre poderia lhe trazer a paz de espírito. Fazia alguns meses que não visitava aquele lugar, mas soube que já ficara tempo demais longe de suas raízes. As pessoas diziam que só dávamos valor depois que perdíamos, mas Hugo já sabia o valor de sua preciosa mãe há muito tempo. Talvez, desde que nasceu. Ou no momento que seu pai os abandonou com uma mão na frente e outra atrás, e eles se viram sozinhos com uma mulher desempregada, mas batalhadora. Apertos todos viviam, mas era na hora da necessidade que conhecíamos quem era quem; sua mãe provou ser um anjo.

O jovem advogado caminhou entre as quadras até encontrar a que queria. Na mão, havia uma rosa branca solitária e corpulenta, uma das preferidas de sua velha. Hugo não era fã de choros sobre a lápide, mas uma boa reza e alguns minutos discutindo a respeito de tudo e nada era o suficiente para acalmar seu coração desacreditado da vida.

O tempo ensolarado dava ao local um ar quase sagrado. Quantas almas queridas e bondosas descansavam no jardim da saudade? Quantos choravam diariamente ou desejavam apenas mais alguns segundos com o ente amado novamente? Hugo era uma pessoa estranha, pois gostava de frequentar o cemitério apenas para ver como as outras pessoas reagiam à dor da perda. Ou simplesmente colocar na cabeça que ele não era o único que perdeu alguém, muito menos seria o último.

Ele se agachou em frente a familiar lápide da mãe e depositou a rosa no túmulo. Hugo respirou fundo ao mesmo tempo em que uma brisa gelada sacudia os cabelos escuros. O rapaz tirou o pouco de terra que cobria os dizeres da lápide, e as leu mais uma vez mentalmente: “Suzana do Carmo Torres, mãe querida, avó e amiga. Descanse em Paz.” Ele mesmo tinha escrito a pequena homenagem, quando Helena, em um de seus raros momentos que mostrava a humanidade, mal tinha condições de levantar da cama. Sua irmã caçula abominava esse lugar, e nesse ponto ele até entendia. Hugo, pelo contrário, gostava do martírio de encarar a realidade quase todos os meses e matar qualquer pensamento sonhador que o fizesse sair do chão. A vida era feita de fatos, e pessoas como ele não tinham tempo para se perder com falsas ilusões.

Depois de uma oração silenciosa de olhos fechados, ele permaneceu ali, apenas pensando na vida e nos anos sem a presença de Suzana ao seu lado. Se ela ainda estivesse viva, poderia ajudá-lo a criar Guga. Ela praticamente adotou o menino quando nasceu, Helena tinha apenas o trabalho de amamentá-lo esporadicamente e, ainda assim, aos resmungos.

Hugo não soube ao certo quanto tempo passou ali, mas quando levantou, suas pernas estavam com cãibra de se manter por tanto tempo na mesma posição. Ele esticou os braços no alto da cabeça e depois conferiu o relógio de pulso. Quase na hora do seu trabalho temporário de fim de semana. Antes de deixar a lápide da mãe, observou ao redor do terreno e notou que não estava só. Poucas pessoas caminhavam no local àquela hora, mas uma em questão lhe chamou a atenção: uma figura ruiva e esguia parada em frente ao túmulo de alguém, com uma mulher que devia ter mais ou menos a idade de sua mãe se fosse viva, de cabelos castanhos avermelhados. A senhora abraçava a ruiva, e depois de um singelo beijo na testa, a deixou só.

Era Marina Dias, sua professora da oficina de escrita criativa.

Apesar de controlada, ele percebeu o rosto avermelhado de longe e logo soube que ela estava chorando. Não o choro desesperado e escandaloso da irmã, mas um choro retraído e contido. O choro da lembrança e da saudade. Hugo não soube ao certo porque quis falar com a moça e lhe dizer algumas palavras de conforto. Por que iria consolá-la, se não conseguia consolar nem a ele mesmo? E desde quando sentia compaixão por garotas mimadas? Na certa, devia ser o avô rico que morreu e ela chorava por não ter usufruído um pouco mais do dinheiro do pobre velho.

Olhando-a naquele momento tão íntimo, Hugo não conseguia enxergá-la da forma que a julgava. Ela parecia realmente sofrer, e não por um motivo fútil como aquele. Ele observou a senhora que poderia ser a mãe dela, afastada das lápides e no caminho principal, aguardando a filha. Marina limpou o rosto pela última vez e deixou a lápide sem olhar para trás. Sua mãe a abraçou e as duas permaneceram daquela forma por segundos incontáveis, até que Marina colocou os óculos de sol e seguiram para o lado oposto de onde Hugo estava.

O moreno aguardou até que as duas virassem a quadra e saíssem de seu campo de visão, então andou para a lápide com margaridas frescas. Ele retirou o buquê com cuidado e notou um bilhete preso por uma pedra de médio porte. Curioso, apanhou o pedaço de papel e leu a poesia contida nele:

“Uma ocasião,

meu pai pintou a casa toda

de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa,

como ele mesmo dizia,

constantemente amanhecendo.”

(Adélia Prado)

A frase na lápide prendeu seus olhos.

Fernando Soares Silva Dias

“Descanse em paz, querido pai.”

Marina tinha perdido alguém tão importante quanto sua mãe. A dor que ele viu nos olhos verdes era a mesma que ele carregava há anos. Tudo se tornou ainda mais claro quando ele viu o ano da morte do pai da jovem, há exatos cinco meses. Ela até podia ser uma garota mimada, mas a ruiva tinha uma história para contar, e Hugo estava curioso para escutá-la. Algo lhe dizia que a casa da bela jovem não amanhecia há um bom par de meses.

Hugo chegou em casa a tempo de tomar um banho e se arrumar para o trabalho, ainda pensativo na sua descoberta. Por que Marina morava só se a perda do pai ainda era recente? Pelo rosto jovem, ele não daria mais que vinte anos à moça, embora apostasse que ela tivesse mais que isso, ou não estaria dando oficinas de escrita por aí. Ele nunca imaginaria que a ruiva que dava aulas no workshop tivesse perdido alguém. Ela era mesmo uma boa atriz.

Afinal, quem era Marina Dias?

No caminho para o trabalho, ele resolveu ler um dos textos dela em seu celular. O sol da capital o fazia suar com a roupa social, mas precisava se vestir daquela forma se quisesse ser um advogado respeitado algum dia. Ele conectou o smartphone à internet da operadora e acessou o site da revista que a ruiva escrevia mensalmente. Marina possuía um blog próprio no site. Ele acessou o último texto sobre leituras clássicas versus best-sellers contemporâneos e a leu em um fôlego só. Era realmente uma excelente matéria, com um ponto de vista firme e argumentos sólidos. Hugo passou alguns minutos lendo os demais textos da sua orientadora, cada vez mais encantado com as opiniões da jovem. Ela poderia ser muito bem apenas mais uma ativista da internet que não fazia nada além de falar. Mas ele tinha que admitir: no jogo de palavras, ela era mestre.

O moreno acessou novamente o primeiro texto que leu e resolveu dar uma olhada nos comentários. Talvez pudesse descobrir um pouco mais sobre a garota misteriosa que queria se provar verdadeira. Tinha um número considerável de aceitação do público, mas havia alguns leitores mais exaltados. Um, em especial, a ofendeu diretamente e Hugo não gostou nem um pouco do que leu. O comentário enviado por um anônimo, dois dias atrás, a chamava de “vadia” e “analfabeta”, apenas por ela concordar que todos os livros tinham seu valor. Vários outros comentários também ofensivos surgiram em resposta a esse, assim como leitores fervorosos para defender a autora do texto. Hugo resolveu, então, dar sua colaboração, mas sem assinar seu nome verdadeiro. Não lhe daria aquele gostinho.

O best-seller de hoje pode se tornar o clássico de amanhã. Seus textos são realmente admiráveis, Marina, mal posso esperar para ler o próximo. Boa semana.

Hugo praguejou quando seus dedos tremeram e ele ficou relutante se mandava ou não. Jogando tudo para o ar, ele apertou o enviar. Se a ruivinha estava mesmo triste e se tivesse o costume de ler os recados dos leitores diariamente, iria sorrir pelo menos por alguns segundos. O rapaz, mais uma vez, se sentiu incomodado por gostar da sensação de fazê-la feliz.


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Notas finais do capítulo

Hey, pessoal! Vocês finalmente conheceram a desmiolada da Helena, a mãe da coisa fofinha que é o Guga, e maior megera, né? O que acharam dela? E a doce Lúcia? Ela não era a amante do Hugo como Nina achava! Hahaha. Esses dois, hein... Será que tomam jeito agora ou nem? Hugo já se deu o benefício da dúvida, vamos ver até onde isso vai dar. Só iremos saber sexta que vem, mas durante a semana pode rolar spoiler lá no tumblr oficial: http://cantigadeoutroverao.tumblr.com/
Estou amando os comentários de vocês. ♥ Leitores fantasmas, vocês estão na história errada, tá? Enigma é em outro link, aqui você tem que seguir para a luz! Hahaha. Vou adorar ler o que você tem para dizer sobre a história. :D
Beijão, até semana que vem. ♥