Ovelhas Negras escrita por Bianca Vivas


Capítulo 23
Quem vai ficar?




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Maria de Lourdes

Eles foram até uma espécie de píer nos arredores da cidade, perto do rio. Ali, havia um pequeno bar. O barman era um homem careca com cara de poucos amigos. Apesar de ser dia, o bar era incrivelmente escuro. Como Lola ainda não tinha almoçado, eles pediram uma porção de engorduradas batatas fritas. Eram horríveis e tinham gosto de óleo, mas a Coca-Cola que Eric pediu ajudava a engolir.

O rapaz estava sendo bem gentil, largando suas responsabilidades para cuidar dela e até mentindo para seus pais sobre onde estava — tudo porque Lola disse que não queria perguntas sobre Catarina e Lucas. Eric concordou com tudo, desde que ela não bebesse. A menina atribuiu esse cuidado todo ao fato dele estar estudando para ser médico.

Depois de algum tempo, ela decidiu ligar o telefone. Havia várias ligações perdidas de sua mãe. Lola pensou em ligar de volta, porém, só em pensar na quantidade de broncas que iria ouvir, ela afastou aquilo de sua cabeça. Eric não era Luan, que apenas com um sobrenome fazia sua mãe ficar de bom humor pelo resto da semana. Ela desligou o celular de novo e colocou-o no bolso da calça, para não ser incomodada.

— Então — Eric perguntou, virando o último gole de sua cerveja —, está mais calma agora?

— Eu nunca estive nervosa. — Ela revirou os olhos. — Mas sim, eu estou me sentindo melhor.

Ela não estava mentindo. Conversar com Eric a ajudou a relaxar. A esquecer Felipe e Luan, e as acusações de Lara. Eles eram amigos, ou mais que isso, que não se viam há algum tempo — isso contava para alguma coisa. Contaram sobre suas vidas atuais, mas, dessa vez, contaram de verdade. Nada daquelas amenidades que permeavam os diálogos dos dois sempre que se esbarravam sem querer, como naquela noite na casa de Juno, quando toda aquela confusão começara.

— Sabe — ele disse —, meu pai sempre disse que você seria igualzinha ao Lucas. — Eric a fitava intensamente. — Olhando para você agora, eu acho que o velho tinha razão.

— Eu não gosto de falar sobre ele. — Lola abaixou a cabeça e fitou a lata de coca. — Você sabe disso.

— Meu pai também não — Eric contou. — Ele ficou bem chateado. Diz que Lucas nunca tinha feito algo desse tipo. Ir embora e não dizer para onde ia.

— Você nunca me disse isso. — Ela riu amargamente.

— Você nunca perguntou. — Eric deu de ombros.

Nesse momento, Lola levantou a cabeça e encarou Eric.

— Ele gostava de viajar?

— Bem, foi assim que meu pai e seu pai se conheceram — Eric respondeu, contendo um riso que teimava em escapar por entre seus lábios. — E nas fotos de viagens de meu pai, seu pai sempre está ao lado dele. Então, acho que ele deveria gostar um pouco.

— Eu nem sabia que meu pai tinha dinheiro para viajar assim — ela murmurou, porém Eric ouviu, porque respondeu:

— Bem, até onde meu pai conta, Lucas herdou uma pequena fortuna dos seus avós.

Herdeiro. E aventureiro. Era incrível a quantidade de coisas sobre o pai que ela não sabia. Dos amigos dele, só conhecia Garcia e Sandra. Não lembrava qual era sua profissão, nem sequer lembrava-se de ver o pai trabalhando quando moravam juntos. A única coisa que sabia com certeza era que um dia, quando tinha nove anos, acordou e seu pai não estava mais em casa. Ele nunca mais voltou. Ligou algumas vezes durante aquele ano e no aniversário de trezes anos dela. Depois disso, desapareceu de vez.

Nunca lhe ocorreu perguntar algo a Garcia e Sandra. Muito menos conversara sobre isso com Eric, alguma vez. Preferiu fingir que o desaparecimento de Lucas não lhe afetava em nada.

— Já que eu não posso beber — ela suspirou —, vou querer outra Coca-Cola.

Ao perceber que Lola não estava confortável com aquele assunto, Eric começou a falar sobre outras coisas. Entre recordações da infância e adolescência, e desabafos sobre desilusões, o tempo passou sem que nenhum dos dois percebesse. Quando se deram conta, o bar começava a encher. Eram uns tipos mal-encarados que estavam ali, obviamente, para beber após um longo dia de trabalho.

— Droga, é minha mãe! — Disse Eric, olhando o visor do celular que tocava e chamava a atenção de todos que estavam perto.

O rapaz se afastou para atender e, quando voltou, pediu a conta.

— Nós já vamos? — Lola perguntou, meio chorosa, já imaginando que teria de enfrentar sua mãe em breve.

— Sim — ele respondeu, puxando-a pela mão. — E mainha quer ver você. Você desapareceu lá de casa desde... Bem, desde o incidente. Ela sente sua falta. — Era a primeira vez que Eric citava o grande acontecimento que a fizera se afastar dele, e a menina teve a estranha sensação de que seu estômago estava revirando-se para regurgitar as batatas-fritas que acabara de comer.

Lola fez uma careta. Já deviam ser quase sete horas e ela passara o dia inteiro fora de casa, sem dar satisfações e com o telefone desligado. Chegar uma hora mais cedo ou mais tarde não faria tanta diferença, quando olhava o cenário geral. Mesmo assim, sentia uma sensação ruim na boca do estômago.

— Eu não posso — ela hesitou entrando no carro. — Minha mãe deve estar preocupada.

— Se ela estivesse preocupada, já tinha mandado a polícia atrás de você. — Eric sorriu.

— Não apostaria nisso, se fosse você. — Ela mostrou a língua para Eric e ele concordou em levá-la para casa logo.

Durante o caminho de volta, Lola criou várias desculpas na sua cabeça. Descartava uma após a outra. Normalmente, não se importava muito se eram boas ou ruins, todavia não queria ter mais problemas e brigas na sua vida. Desejou que Felipe estivesse ali para lhe dizer o que fazer. Ou Luan. De alguma forma, a mãe dela gostava dele, mesmo sem conhecer o garoto de verdade.

Eric tentava puxar papo, porém Lola não estava muito interessada em conversar e eles acabaram ficando mesmo em silêncio, na companhia dos próprios pensamentos. O trajeto não era tão longo assim, já que naquela cidade tudo ficava a um passo de distância. Logo estavam na porta da casa de Lola.

— Chegamos. — Ela suspirou e pegou a mochila da escola, pronta para abrir a porta do carro.

— É... — Eric segurou o pulso dela, impedindo-a de sair. — Vê se não some, tá Lourdinha? — Ele pediu, olhando profundamente em seus olhos, como se aquilo fosse realmente importante. — Pode me ligar a qualquer hora e sempre que precisar.

Lola assentiu e desceu do carro. Enquanto entrava em casa, sentia a intensidade do olhar de Eric queimando em suas costas. Seu velho amigo e amante. Ela tinha uma dor recém-descoberta a compartilhar com a família dele. Não ia sumir — não dessa vez. Ela repetiu isso mil vezes para si mesma, mesmo sem acreditar muito, enquanto respirava fundo e abria a porta de casa.

A sala não estava escura e sua mãe não estava sentada no sofá. Tampouco estava em algum dos quartos — as portas estavam escancaradas. Lola, então, fechou os olhos, agradecendo, e entrou no próprio quarto. Largou a mochila da escola lá dentro e correu para tomar um banho e trocar de roupa.

Sabia que logo acabaria encontrando com sua mãe, porém, esperava estar minimamente descansada quando isso acontecesse. Ela não era mais a garota que ouvia mil gritos e não se importava. Ou que dizia o que queria sem ligar para o significado das próprias palavras. Esse problema com Felipe estava drenando suas energias. Ela sabia que não deveria ficar assim por causa de um garoto — sempre existem outros e outros garotos —, mas Felipe havia se tornado seu amigo.

Estava deitada na cama, revirando as páginas do livro de literatura, quando Catarina entrou no quarto. A mulher usava sapatos de bico fino e uma saia lápis que fizeram Lola se endireitar na cama imediatamente. Desde quando Catarina vestia aquele tipo de roupa? Teve vontade de perguntar, mas mordeu os lábios antes que fosse tarde demais.

— Onde você se meteu? — A mãe perguntou, cruzando os braços na frente dos seios.

Lola permaneceu calada. Queria que acabasse o mais rápido possível.

— Dá pra você me responder, Maria de Lourdes? — Catarina perguntou novamente. — Estou cansada disso. — Ela passou as mãos pelos cabelos curtos e, só então, Lola notou as olheiras da mãe. Não sabia dizer quando haviam surgido. Sentiu-se um pouco negligente com essa constatação.

— Fui ao restaurante do Garcia — ela disse, com um fio de voz. Nem parecia a Lola de sempre.

— O restaurante de quem, Maria de Lourdes? — Um vinco se formou na testa da mulher que já espremia os lábios de raiva.

— Do Garcia, mãe — Lola respondeu displicente, mais confiante que segundos antes. — Aquele amigo argentino do papai.

Catarina fechou os olhos. Lola aproveitou a brecha para sair do quarto. Sabia que a mãe odiava falar de Lucas. Na verdade, ela parecia fingir que Lola não tinha pai, às vezes. A garota imaginava que ela estaria bem brava com essa informação.

— O que você foi fazer lá? — Ela seguiu a filha e sua voz carregava um tom imperativo.

— Conversar — ela disse, engolindo em seco. — é isso que pessoas normais fazem. Conversam umas com as outras — Lola forçou um riso.

— Sem gracinhas, moça — Catarina a cortou. — Eu não te dei permissão para ir lá.

— E precisava?

— Claro! Eu sou sua mãe! — A mulher gritou. Parecia estar contendo aquela reação há um bom tempo.

Lola mordeu os lábios e nem pensou quando gritou de volta:

— Pois não parece!

— Maria de Lourdes!

— O quê?! — As duas estavam gritando uma com a outra e se encarando.

Foi aí que Lola se lembrou de tudo que Eric dissera sobre seu pai. Eram poucas palavras, poucas informações. Ainda assim, era mais do que tivera na maior parte de sua vida. Isso a deixava ressentida com a mãe, porque a considerava a grande culpada disso tudo. Então, ela se lembrou dos pais de Juno e de Felipe, e de como eram casais preocupados com os filhos. Em seguida, lembrou do próprio Felipe e de Juno. Os dois amigos que ela havia perdido e que sua mãe nem sabia.

Catarina nunca havia notado que Juno deixara de frequentar aquela casa, e que Lola não vivia mais na casa da amiga. Não havia notado que a filha chegava em casa todo dia com um amigo diferente. Com um cara diferente. Nem ao menos notou que ela tinha comprado uma identidade falsa e que a usava para ir a festas na cidade vizinha. Ela não sabia de nada. E, o que sabia, escondia de todo mundo.

As lágrimas começaram a rolar pelo rosto de Lola e a garota não fez questão de enxugá-las.

— Você nem mesmo age como minha mãe! — Ela atirou, com a voz embargada pelo choro. — Você nunca me contou nada sobre meu pai ou sobre quando eu era criança. Você nunca nem perguntou como foi na escola ou pediu para conhecer meus amigos! Você só sabe cobrar, cobrar e cobrar. E você nem fazia isso direito até aquela suspensão idiota!

As lágrimas caíam em seus lábios e ela podia sentir o gosto salgado delas, misturando-se com a saliva. Os olhos estavam vermelhos e Lola soluçava enquanto falava. Catarina apenas a observava, esperando que calasse a boca.

— Eu conheço seus amigos — ela disse lentamente. — Juno, o tal de Felipe e o filho de Antônio.

— Juno mal fala comigo há um bom tempo! — Lola viu as feições falsamente calmas da mãe tomarem um ar de incredulidade. — Você não age como minha mãe! — Lola gritou uma última vez.

Catarina fez menção de caminhar até a filha. Talvez para abraçar a garota. Lola, contudo, num ato impulsivo, saiu correndo escada abaixo, para não ver mais o rosto da mãe. Estava magoada com tudo e todos. O que estava acontecendo, ela pensava, não era justo.

Quando colocou os pés na rua, se arrependeu. Contudo, não tinha coragem de voltar. Decidiu que andaria pelo bairro e depois voltaria. Pensou se deveria pedir desculpas pela explosão. Seria a primeira vez que aquilo aconteceria.

Continuou apenas andando.

Quando percebeu, já estava saindo de seu bairro. Estava perto da escola. Queria voltar para casa, porém uma chuva grossa e repentina começou a cair. Ela correu para se abrigar embaixo de uma sacada qualquer. O tempo que levou até achá-la foi o suficiente para a chuva encharcar suas roupas. Agora elas estavam grudando em seu corpo e pesando.

Ela precisava ligar para alguém. Era óbvio. Botou a mão no bolso da calça jeans e puxou o celular. A primeira pessoa que pensou em ligar foi Felipe. Ele não atendeu nenhuma das três ligações e ela desistiu. Procurou o número de Luan na agenda. Discou várias vezes e só caía na caixa postal. Ela estava começando a entrar em desespero.

Vagamente, como um pequeno raio de sol iluminando sua mente, Lola se lembrou de nove dígitos. Mandou a mensagem. Entretanto, após alguns minutos sem resposta alguma, seu desespero voltou.

Estava decidida, apesar de tudo. Não ia ligar para Catarina. Não precisava de outra briga. Em casa, ela pediria desculpas, porque realmente tinha sido muito dura com a mãe. Entretanto, não se falariam antes disso. Por isso, quando percebeu que a chuva não estava passando, Lola respirou fundo e saiu de debaixo da sacada. Ia até em casa embaixo de chuva mesmo.

Enquanto caminhava, sentia a calça jeans grudando em sua perna e a puxando para baixo, cada vez mais. A blusa que usava era muito leve e o vento que fazia já estava deixando Lola com frio. Ela cruzou os braços em torno do corpo e abaixou a cabeça. Suas tranças já estavam grudadas na cabeça e certamente cheias de nós no comprimento. E isso só aumentava o frio que estava sentindo.

Em algum ponto, ela notou que havia um carro a seguindo. Ela não estava muito preocupada. Só queria chegar em casa. Então deixou o carro segui-la. Assustou-se quando o veículo foi perdendo velocidade e parando perto dela. Lola sentiu a adrenalina percorrer suas veias. Olhou para os dois lados procurando uma saída, caso fosse alguém querendo sequestrá-la. Ela não tinha dinheiro, entretanto, pelo que Eric dissera, seu pai tinha.

O carro parou de vez. O motorista abaixou o vidro preto e, sentado atrás do volante, Lola reconheceu um rosto familiar. 

 


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