Ovelhas Negras escrita por Bianca Vivas


Capítulo 22
A canção de Maria, oh deus




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Luan

O pai de Luan finalmente decidira voltar para sabe-se-lá-onde ele ficava quando não estava infernizando a vida do filho, da mãe ou dos seus funcionários. O menino ficaria livre por um tempo, para poder sair para beber e fumar. Aliás, considerando quem a velha, sua avó, era, ele poderia fumar onde bem entendesse. Agora, sim, ele estava tendo a vida que sempre quisera.

Ou quase isso.

— Acho bom você se arrumar logo, ao invés de ficar deitado nessa cama sem fazer nada. — Dona Laura entrou no seu quarto, já abrindo as cortinas e gritando com ele.

Luan franziu o cenho. Desde quando a velha agia assim? Será que havia, de repente, acordado e percebido a si mesma como uma senhora de idade ao invés de uma jovem de vinte e poucos anos participando do Festival de Woodstock? Certamente não, deveria haver algo mais.

— Calma, velha — ele respondeu, levantando apenas parte do corpo, sem se dar ao trabalho de abrir os olhos. — Ainda são seis da manhã. Nesse fim de mundo aqui, eu chego na escola em dez minutos.

— E quem disse que você vai pra escola hoje? — Foi tudo o que Dona Laura disse, já puxando o cobertor de Luan e jogando-lhe peças de roupa. — Você vai me levar pra cidade vizinha, preciso fazer umas compras.

Luan abriu os olhos, sobressaltando-se. Sua avó queria mesmo que ele faltasse aula? Realmente, Antônio, seu pai, havia feito um favor mandando-o para o fim do mundo que ele chamava de cidade. Quanto mais o tempo passava, mais ele percebia que havia recebido uma benção, não uma maldição, quando fora mandado para lá.

Sem dizer palavra ou questionar a avó, o menino apenas levantou-se, pegou suas roupas e dirigiu-se ao banheiro. Tomou um banho rápido, apenas para acordar, se aprontou, pegou qualquer coisa para comer e tampar o estômago, e saiu.

Ele que dirigiria. Dona Laura detestava ficar à frente do volante em estradas, então, infelizmente, quando saiu com o carro da garagem, era apenas a velha quem desfrutava de uma generosa dose de gin matinal. Realmente, ele morava com a pessoa perfeita. Quem diria, não é mesmo? Ainda se espantava quando percebia a sorte que possuía.

Ao chegarem na cidade vizinha, Luan teve que levar sua avó em tantos lugares, que, por volta de meio dia, não conseguia mais contar quantas sacolas ocupavam o carro preto. A velha decidira que seu neto favorito, e não apenas por ser o único, merecia um descanso e eles rumavam para uma churrascaria. Luan só torcia para que pudesse tomar pelo menos uma cerveja, era o mínimo.

Enquanto faziam o pedido de um belo rodízio — Dona Laura nunca aceitaria menos que isso, comia quase tanto quanto bebia, e bebia mais que qualquer astro de rock —, Luan pôs o celular em cima da mesa. O aparelho começou a vibrar freneticamente.

— Não vai atender? — Perguntou a velha, olhando por cima do cardápio para ver quem ligava.

Luan desviou os olhos para o aparelho. Era Lola. Não entendia porque a garota ligava. Certamente, não deveria nada urgente. No máximo, iria querer saber onde ele estava, afinal, não aparecera na aula naquele dia e há muito tempo havia abandonado este hábito.

— Não — ele respondeu com um aceno de cabeça. — É Lola, nem deve ser nada demais. — Em seguida, virou-se para o garçom, para pedir dois rodízios e a melhor cerveja da casa.

O garçom assentiu e saiu. Dona Laura pôs-se a olha o neto com uma expressão estranha, misto de curiosidade e divertimento.

— O que foi? — Ele perguntou, estranhando a atitude da velha.

— Nada não — ela disse, mas logo mudou de ideia: —, é só que é irônico você ser amigo logo dessa menina, a Maria de Lourdes.

— Por quê, velha?

— Oras, você não sabia? — Ela tapou a boca num gesto de falsa surpresa. — Nunca te contaram, meu neto? A mãe dela é a razão para o seu pai ter jurado nunca mais pisar aqui.

A primeira reação dele foi gargalhar. Catarina, a mãe de Maria de Lourdes? Ele sabia que a mulher conhecia seu pai, afinal, haviam sido colegas de sala na época do colégio. Agora, dizer que ela era razão pela promessa de seu pai? Eles não haviam sido amigos? Como isso podia ser real.

— É verdade...

O garçom trouxe a cerveja dos dois e a velha deu um longo gole, apreciando o líquido gelado. Deixou suas palavras pairarem no ar, apenas esperando a reação do neto. Luan acreditava que aquela era apenas mais uma brincadeira de sua maliciosa avó.

— Como isso seria possível? — Ele tomou um pouco de sua cerveja, fingindo que a história poderia ser um pouco interessante.

— Ah, eles eram bem amigos, chegaram até a namorar. — Luan assentiu. Aquela parte ele sabia e achava até irônico, tal pai tal filho. — A questão é que Catarina, a mãe de Maria de Lourdes, também era uma amiga inseparável de Lucas, melhor amigo de seu pai. Não se você lembra dele...

Luan tentou pescar na memória algum Lucas que seu pai talvez tenha mencionado ou apresentando-lhe. Nada aparecia. Aquele nome era uma página em branco em seu cérebro.

— Provavelmente não... — respondeu, sabendo que a resposta era certeira.

— É... Ele também sumiu no mundo, é bem provável que não conheça. — A velha divagou um pouco, mas logo piscou os olhos, focando no assunto novamente. — O fato é que Lucas, Antônio, seu pai, e Catarina, mãe da Maria de Lourdes, eram inseparáveis.

— E formaram um trisal que não deu certo? — Luan perguntou, já imaginando seu pai nesse tipo de relação.

— Quem me dera — Laura respondeu, dando uma risada amarga —, pouparia muitos problemas, mas seu pai é um chato com algumas coisas desde aquela época. Não. Seu pai e Catarina terminaram e, logo depois, ela se apaixonou por Lucas. Os dois ficaram juntos em segredo, só se assumiram quando seu pai foi embora para estudar. Ele ficou feliz com a situação, já estava com sua mãe...

— Sim, velha, ainda não tô entendendo — Luan secou o primeiro copo de cerveja.

— Calma, menino. Esse é o mau da juventude, vocês são todos uns apressadinhos! — Ela ergueu a mão enrugada e apertou as bochechas do neto antes de voltar para a história. — Tudo estava bem, até o verão de 1997. Seu pai estava noivo de sua mãe e viria trazê-la aqui, para conhecer a família e amigos. Por algum motivo, ela não pôde vir e seu pai reencontrou Catarina, que havia terminado com Lucas; preciso dizer que eles viviam terminando e voltando.

— Então meu pai ficou com Catarina e depois ela voltou com Lucas?

— Ainda não — ela disse. — Ele ficou Catarina o verão inteiro e decidiu que iria terminar tudo com sua mãe, afinal, a mãe de Maria de Lourdes era o amor de sua vida, sempre fora e sempre será — a menção daquela informação, Luan sentiu o estômago embrulhar um pouco, decididamente, não queria imaginar a mãe de sua amiga e seu pai juntos. — No dia que ele decidira contar à Catarina que queria ficar com ela e fazer todas aquelas juras de amor idiotas que pessoas na idade de vocês fazem, bem, foi o dia que ele descobriu que Catarina e Lucas estavam juntos de novo.

— Ele pegou os dois transando, não foi? — Luan perguntou entediado. Não poderia culpar a mãe de Lola por trair seu pai, ele era realmente intragável.

— Sim — Laura respondeu na mesma displicência qual a qual espanta uma mosca chata. — Então, ele, Lucas e Catarina brigaram. Seu pai jurou que nunca mais pisaria os pés aqui, voltou para São Paulo, descobriu que sua mãe estava grávida, casou com ela, e o resto é história.

Luan ficou em silêncio ao fim da história. Dona Laura bem que poderia ter dito: e nunca mais nenhuma palavra sobre esse relacionamento fora dita, até hoje, porque havia sido assim. Lola nem sabia que seus pais se conheciam, enquanto ele próprio só sabia da ligação porque já vira uma foto da mãe de Lola com seu pai e mais um monte de colegas da época, quando ainda estavam no ensino médio.

— E Catarina? — Ele perguntou, por fim. — O que foi que aconteceu com ela?

— Ora, casou com Lucas, engravidou de Maria de Lourdes e todos viveriam felizes para sempre se Lucas não tivesse desaparecido. — A velha esvaziou o que seria seu terceiro ou quarto copo àquela altura. — Deve ser o destino, no fim das contas, se Catarina e Antônio não ficam juntos, também não ficam com mais ninguém.

Luan franziu o cenho, sem entender muito bem o que a velha queria dizer com aquilo. Não era como se seu pai não tivesse namorado outras mulheres após a morte de sua mãe, ou como se a mãe de Lola vivesse em celibato.

— Ah, meu neto, o carma é forte — explicou a velha, pensativa, ao notar a ruga de desentendimento na testa de Luan. —Tão forte que você e Maria de Lourdes tiveram os caminhos cruzados e são mais grudados que qualquer coisa. — Luan continuava sem entender. A velha tinha dessas, de falar em enigmas vez ou outra. — O sangue puxa, meu querido, o sangue puxa. — Ela disse, por fim, com jeito de quem mais nada comentaria sobre aquela história.

De fato, nenhuma palavra mais fora dita sobre os passados dos pais dele e de Lola. Tocavam no nome de Antônio apenas para caçoar dele. No entanto, quando voltavam para a pequena cidadezinha no fim do mundo, enquanto o farol iluminava o caminho que levaria a grande lagoa que dava às boas-vindas a quem chegava, Luan continuava pensando na história de mais cedo.

Por algum motivo, seu estômago não apenas embrulhava-se com tudo aquilo, como também sentia uma sensação muito estranha — um pressentimento ruim —abocanhando todo seu interior, apoderando-se dele. 

 


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