Luzes do Oriente escrita por Bluebell


Capítulo 6
Os Nós do Destino


Notas iniciais do capítulo

Olá, simpáticos leitores!

Estamos nos aproximando da resolução dessa novela mexicana. Antes de continuar, tenho uma consideração a fazer - há uma diferença entre dan e xianggong que não ficou muito clara nos capítulos anteriores. Na verdade, os termos são até intercambiáveis, dependendo da situação.
Dan é o nome genérico que se dava aos atores profissionais que representavam papeis femininos no teatro e na ópera. Se tivessem sorte e talento, seriam abraçados por mecenas e absorvidos por trupes que faziam apresentações privadas à nobreza, e assim jamais poderiam ser comparados a xianggongs. Quando atingiam prestígio suficiente para abandonar os palcos populares, se valiam principalmente da sua arte, não se envolvendo tão claramente - ou mesmo não se envolvendo - com prostituição.
Já xianggong, que significa "cavalheiro" ao pé da letra, seria uma definição mais específica de "artista da baixa" direcionada a garotos pobres vendidos por suas famílias para grupos de teatro de variadas categorias com objetivo de ingressar na carreira artística. Esta estava invariavelmente atrelada à prostituição, como parte de um sistema degradante que misturava a profissão de artista com a de acompanhante. Eram tão estigmatizados, que uma vez que um rapaz se tornasse um cavalheiro, imediatamente se convertia num pária aos olhos da sociedade e sua reputação se perdia de forma irrecuperável.

Isto explicado, seguimos adiante.

Boa leitura!



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Ele é meu meio-irmão, na verdade. Nossa mãe - uma lavadeira sem instrução, porém afetuosa e honesta - era muito jovem e acabou vítima da má-fé de alguns homens que se aproveitaram de seus sentimentos. Não que isso fosse algo incomum no meio em que nascemos - o nosso bairro pobre, de trabalhadores braçais, era cheio de escândalos do tipo. Mamãe nunca se casou e sofremos todo tipo de preconceito. Eu tinha cinco anos e não entendia como Yuan poderia ser meu irmão "pela metade", apesar de ele ter uma aparência muito destoante da minha. O que sempre valeu, para mim, foi o sentimento fraternal por aquele garotinho que nos enchera de preocupação ao começar a engatinhar, e de felicidade ao aprender a falar nossos nomes.

Antes de contar sobre como nossos caminhos separaram-se, é importante explicar um pouco sobre minha infância. Minhas primeiras e últimas memórias na China são de um casebre numa rua lamacenta, onde morávamos de favor. A dona da nossa casa era uma senhora idosa e solitária, que - mais tarde eu soube - vivia da pensão do marido, capitulado nas fileiras do exército. A vizinhança a chamava de "Senhora Cinza", porque só usava roupas de luto. O dormitório que nos fora cedido pertencia aos filhos, que também haviam falecido em combate.

Para uma criança pequena, tanto faz onde se vive, contanto que se possa comer, dormir e brincar. É por isso que tenho poucas lembranças verdadeiramente ruins, e quase todas elas são relacionados a fome, medo e doenças. Yuan e eu éramos inocentes e felizes a maior parte do tempo.

A pessoa de quem mais conservo memórias daquela época é mamãe. Era uma moça de beleza vívida e desleixada, com cabelos negros e olhos esverdeados, frutos da mestiçagem com marinheiros europeus. Por um bom tempo, alimentou-nos com os trocados que ganhava lavando roupas, as quais vinham em trouxas enormes das mansões da cidade. Daqueles dias, guardei as brincadeiras com Yuan à margem do rio, enquanto ela e as outras mulheres esfregavam e batiam roupas, sempre atentas para que não nos aproximássemos da água. Às vezes, quando fazia muito frio ou um de nós não estava em boa saúde, ficávamos em casa, e a Senhora Cinza mantinha um olho em seus bordados e outro em nós. Ela não era precisamente amável conosco, mas gostava de observar nossas brincadeiras e de oferecer guloseimas nos intervalos delas.

Não sei quando exatamente mamãe começou a perder peso. Somente percebi que estava doente quando notei repetidas vezes seu corpo febril e suado junto a mim, na cama, durante as noites em que ela se remexia, incapaz de pegar no sono. Não tinha nem ideia do mal instalado em sua saúde e apenas rezava para que se recuperasse rápido.

Daí, veio a tosse.

Mamãe tossia e batia a roupa, tossia e varria a casa, tossia e limpava o peixe...seguia tossindo até deitar-se, e mesmo ali continuava a tossir - então molhada de suor. Yuan e eu não dormíamos mais, e logo também a Senhora Cinza. Preocupada, ela trouxe à nossa casa um curandeiro, que confirmou suas suspeitas e recomendou repouso. Vendeu-nos unguentos e ervas, as quais a Senhora Cinza queimou para produzir uma fumaça que obrigou mamãe a inalar, até que a tosse fosse tão intensa a ponto de mobilizar escarro.

Foi a primeira vez que vi alguém tossir sangue. Tapei os olhos de Yuan e corri com ele para o quarto. Lembro de como eu tremia ao abraçar meu irmãozinho aos prantos, eu mesmo tão apavorado quanto ele...

Daquele dia em diante, mamãe restringiu-se ao leito e as inalações tornaram-se um ritual horrendo. A casa cheirava a cânfora e sangue. Ela arrastava consigo um lenço sempre manchado de amarelo e vermelho, em que vivia a cuspir depois de violentos acessos de tosse. Yuan e eu estávamos proibidos de ter com ela qualquer contato mais íntimo, e fomos obrigados a dormir no quarto da Senhora Cinza. Eu me deitava abraçado ao meu irmão sobre um lençol fino, com toda a dureza do chão contra nossas costas e esmagados pelo peso de uma solidão compartilhada. Em várias noites, dormimos mesmo sem a presença da Senhora Cinza, que muitas vezes se levantava ao som da tosse de minha mãe para socorrê-la.

Assim, mamãe definhou - seu cabelo rareou e seus olhos bonitos tornaram-se grandes e encovados no rosto ossudo. A Senhora Cinza fez o que pôde - chamou mais curandeiros e comprou todos os remédios que lhe empurraram, mas sem resultados. Então, com tantos sinais de que a doença apenas progredia, teve que tomar uma decisão difícil.

Numa noite, ela deitou-nos no seu precário colchão de palha e contou que nossa mãe precisaria viajar para o campo para curar-se. Frisou o quanto o ar puro do interior seria bom para o peito dela e como era perigoso que ela continuasse perto de nós com sua doença contagiosa. Yuan perguntou em quanto tempo ela poderia voltar para casa, e eu desatei a chorar. Um vizinho havia partido para a colônia de tuberculosos no último verão e lá havia sucumbido à enfermidade. Minha mãe também estava partindo para morrer.

Mesmo com todo o meu berreiro, no dia seguinte, ela foi levada numa carroça com outros doentes. Acenou para nós com os olhos cheios de lagrimas e aquele lenço encardido, até virar uma esquina e desaparecer.

A partir dali, as coisas só pioraram. A Senhora Cinza, que já encontrava dificuldades para sustentar-nos sem a contribuição da minha mãe, viu-se à beira de dívidas quando o inverno chegou. Os alimentos eram especialmente mais caros e difíceis de serem encontrados naquela época do ano, e estávamos cada dia mais pobres e magros. Yuan tinha três anos, mal sabia falar, e eu ainda era pequeno demais para o trabalho, e éramos duas bocas para alimentar. Foi à beira da fome que a Senhora Cinza se reuniu com alguns vizinhos e buscou uma solução.

Ninguém dispunha de condições para arcar com os gastos de dois órfãos e uma viúva. No entanto, um dos moradores sugeriu uma alternativa para meu irmão e eu - conhecia um homem do Santuário que procurava crianças dotadas para um treinamento especial no ocidente. Naquela altura da vida, eu já provocava fenômenos estranhos quando estava dominado por alguma emoção muito forte, como rachar objetos fora do meu alcance e causar discretos tremores nas paredes. Ainda que desconfiada, a Senhora Cinza permitiu que o tal olheiro viesse fazer-nos uma visita.

Nevava no dia em que meu destino foi traçado. O estranho à serviço de Atena notou-me muito antes de entrar em nosso casebre. Entusiasmado, fez algumas perguntas à nossa benfeitora e tocou-me o queixo, forçando-me a encará-lo. Parecia maravilhado com os olhos que eu havia herdado de minha mãe e com a força que corria em minhas veias. Celebrou meu potencial, todavia, não dispensou sequer a menor análise a Yuan.

Eu tinha tanta fome e frio, que nem reagi à negociação que o homem travou com a Senhora Cinza. Estava fraco e minha cabeça não funcionava como deveria. A senhora insistiu para que os dois irmãos não fossem separados, contudo, ele foi irredutível - seu interesse resumia-se a mim.

Outra vez, uma despedida em minha vida. A Senhora Cinza, que nunca se entregava aos sentimentos, chorou com Yuan no colo, enquanto eu era levado pelo olheiro. "Seu irmão precisa fazer uma viagem...", ela dizia no ouvido do caçula...Assim que fui alimentado e agasalhado pelo homem, dei-me conta de que tomava o mesmo caminho que a minha mãe; eu estava partindo para nunca mais voltar.

Então, fui enviado ao nosso mestre, na Grécia. Até que você chegasse, sofri muito com o exílio, a solidão e os treinos...Diariamente, eu era punido por chorar a distância da minha família. Sem dúvidas, a vida era muito melhor ali do que na miséria, mas eu só queria a minha casa. O mestre não entendia como eu podia ser tão ingrato ao refutar o ideal de tornar-me cavaleiro. Foi quando fiz da ânsia de reencontrar mamãe e Yuan o combustível do meu treinamento. Devagar, eu me adaptei à rotina.

E aí, você veio, e tudo ficou mais fácil. Você foi a minha família quando eu mais precisava de uma, Shion. Eu lhe serei eternamente grato.

Quando conquistamos nossas armaduras de bronze - e eu nunca lhe contei isso -, voltei às minhas origens pela primeira vez. Cumpri uma missão no sul da China, e logo na sequência viajei para o leste sem que ninguém soubesse.

De volta à Suzhou, encontrei Yuan vivendo no mesmo casebre, tantos anos após nossa separação. A Senhora Cinza já havia falecido, assim como a minha mãe, na colônia de tuberculosos. Na ocasião, meu irmão tinha doze anos e morava com um homem que se declarava sobrinho da Senhora Cinza e herdeiro por direito da casa.

Adolescente e tão bonito, não o reconheci. Yuan não se lembrava de mim, obviamente; apenas sabia que tinha um irmão pelos relatos de sua "avó". Carregava a ideia fabricada de que todo o resto de sua família havia feito uma grande viagem.

No entanto, eu voltei. E vi o modo como Yuan era tratado pelo seu "primo". Ele era um escravo em seu próprio lar, ou pior que isso.

Pedi a Yuan que viesse morar comigo no Santuário, ofereci-lhe até emprego como servente, mas ele tinha receio de partir da China. Tinha medo do ocidente, dos meus poderes, das minhas histórias. Eu implorei e ele fincou o pé naquela rua imunda, com aquele homem detestável...alegou que nosso yuanfen era superficial, por isso estávamos separados, apesar de sermos irmãos. Ele sempre acreditou muito nisso de predestinação e acaso, sabe? Até tatuou essa maldita palavra nas costas, no mesmo lugar em que tenho meu tigre. Naquela conjuntura, o yuanfen foi uma desculpa esfarrapada. Hoje, compreendo que cuidar da casa da Senhora Cinza era a única vida que conhecia, e que não dispensaria seu teto por uma aventura com um estranho.

Voltei ao Santuário arrasado. Havia finalmente encontrado meu único parente vivo, e ele tinha frustrado meus sonhos de remendar nossos laços arrebentados.

Porém, para minha sorte, em pouco eu fui mandado outra vez à Ásia, e desta vez com fins de completar o treinamento avançado. Foi um longo ano de preparação em Lushan¹ - tão distante de Suzhou, mas nem tanto quanto a Grécia. Portanto, esforcei-me para visitar Yuan num par de ocasiões enquanto morei nos Cinco Picos.

Em todas as passagens pela nossa antiga casa, entretanto, me deparei com a mesma situação decadente e relutância em ir embora. No entanto, não tentei convencê-lo de nada; aproximamos-nos pouco a pouco e nos conhecemos melhor. Éramos irmãos, afinal, e devíamos um ao outro ao menos cordialidade.

Quando, enfim, me tornei cavaleiro de ouro e volvi à Grécia, ganhei o dobro de responsabilidades, mas também de regalias. Havia muito mais acesso às folgas e isso foi decisivo para que eu desenvolvesse meu relacionamento com Yuan. Todos os anos, desde que sou o Cavaleiro de Libra, viajo para a China, como você bem sabe.

Nas primeiras "férias", eu costumava pagar ao primo uma quantia desonesta para hospedar-me no casebre deles e me ocupava em ajudar Yuan com as tarefas domésticas. Trabalhava na vila para abastecer a dispensa com alimentos e comprava roupas e remédios para sua segurança. Não lhe deixava nem um centavo, porque sabia que o primo não era confiável.

Tanto tempo já se passou...Yuan voltou a me chamar de irmão e permitiu que suas barreiras ruíssem para que eu reocupasse meu lugar de importância em sua vida. Ele era um garoto encantador - ainda o é - e tudo que tinha restado da minha infância. Sei que talvez você não entenderá isso, porque sempre dispôs de um lar para onde voltar em Jamiel. Mas eu, que fui um órfão desgraçado, como a maioria dos cavaleiros, encontrei na restauração daquele vínculo familiar meu maior tesouro.

Ficamos bons amigos, sempre à espera das minhas férias para nossos reencontros. É claro que refiz minha oferta em cada visita. Infelizmente, Yuan nunca esteve disposto a deixar o oriente.

Há três anos, no entanto, o busquei no mesmo casebre e somente encontrei o primo.

Como quem conta que foi à feira, ele avisou-me que Yuan havia sido vendido para uma companhia de teatro para sustentar-se sozinho, afinal, seu custeio estava mais caro à medida que crescia. Sim, essa foi a justificativa dele. Quase matei aquele vigarista diante dos vizinhos e depois saí numa cruzada pela cidade para resgatar meu irmão.

Foi Jin quem me guiou para a Yutao, assim como aconteceu com você. Eis que encontrei Yuan aqui, fantasiado de mulher e seduzindo uma plateia de velhos com uma performance musical...

Desculpe, falar disso sempre me traz lembranças horríveis.

Naquele dia, eu chorei. Eu estava parado exatamente onde estou agora, espiando por entre as cortinas. Ver Yuan como xianggong foi como perder minha família outra vez para uma tragédia e um atestado da minha incompetência como irmão mais velho. Então, Jin me avisou que eu não devia causar nenhuma comoção ali. Parentes eram estritamente proibidos no refúgio dos cavalheiros, e ele não queria ser castigado por Pavão da Noite por quebrar as regras.

Entenda - um xianggong, assim como um cavaleiro de Atena, não pode ter uma família. É um privilégio incompatível com a profissão, tanto quanto o livre-arbítrio. O artista é uma boneca graciosa com quem a sociedade vem se divertir de quando em quando, e deve permanecer obediente e dissociado do mundo real. Não tem problemas, não tem linhagem, não tem desejos.

"Vou mandar este bordel para o espaço!", eu rangia os dentes, só esperando o momento em que Yuan se reunisse a mim nos bastidores, depois do espetáculo. Era o que eu planejava fazer e com certeza o faria, se meu irmão não saísse de sua apresentação com um sorriso enorme.

Ele parecia estranhamente feliz. Havia crescido muito desde minha visita prévia, estava cada vez mais belo. De certa forma, as roupas e a maquiagem lhe caíam bem. Até aquele momento, eu nunca me prestara a analisar melhor os detalhes, mas fui obrigado a concordar que Yuan possuía mesmo algo de feminino.

Quando me viu chorando, correu para me abraçar e rogou que eu não tivesse nenhum ataque de raiva. Então, levou-me para seu quarto, uma aberração vermelha com quadros eróticos nas paredes, e conversamos por horas.

Vamos aos fatos: um homem chamado Dong Zhao, conhecido pelos frequentadores da Ópera como Pavão da Noite, vira meu irmão atravessando uma ponte e por ele ficou obcecado. Pavão da Noite é um dan consagrado e pelo menos vinte anos mais velho que meu irmão. Nada de bom poderia sair daí.

Acabou que ele o seguiu até o casebre e se apresentou ao primo como dono de uma companhia de teatro. Confessou que tinha se interessado pelo meu irmão e ofereceu um valor obsceno por ele, não se importando com o fato de que Yuan estava um tanto velho demais para ser iniciado na vida de artista. Yuan já era considerado adulto e não tinha nenhum ofício, além de servir ao primo. Este, por sua vez, nunca veria outra oportunidade tão vantajosa de livrar-se do meu irmão.

No fim do dia, Yuan foi levado aos prantos para a Yutao. Pavão da Noite o acompanhou, tratando-o com excessiva gentileza. Tentou consolá-lo ao jurar que seus esforços se concentrariam no aprendizado das artes, e que não se deitaria com homem algum, se não quisesse. Mimou-o durante toda a viagem e prometeu a ele que nunca sentiria falta de seu antigo lar.

Yuan contou-me com olhos sonhadores sobre como o dan tinha lhe cedido sua própria cama - que ele raramente usava, já que morava em outro lugar - para passar a primeira noite em conforto. Então, falou sobre seu talento inato para a atuação, sobre como os professores ficavam satisfeitos com seu desempenho nas aulas e como fez amigos entre os seus semelhantes. Descreveu a euforia de estar num palco e ser aplaudido por uma multidão. Estava contente em finalmente deixar de ser um servo e ganhar alguma visibilidade, ainda que de maneira controversa.

Yuan passou a viver entre os cavalheiros, mas nunca foi tratado como tal - ele era uma espécie de protegido de Pavão da Noite. Este era exageradamente carinhoso para consigo, e nunca vulgar, como os homens que frequentavam a casa de espetáculos. Estes, aliás, estavam terminantemente proibidos de tocá-lo. Isso não significava que Yuan estava livre de ter que bajulá-los e entretê-los em festas particulares. No entanto, nunca se entregou a nenhum deles, muito embora tivesse pensado por algum tempo em fazê-lo em gratidão a Pavão da Noite. Ofertas vultosas foram feitas, sem que o dan quebrasse sua promessa.

Havia um motivo para tanta proteção e mimos. Pavão da Noite pretendia tê-lo somente para si, e o conseguiu através de sua rara amabilidade. Yuan, de coração inocente, carente de atenção devida e cuidados, rendeu-se ao seu guardião num estalar de dedos.

A partir daí, o poder dele na Yutao só cresceu. Mudou-se para o quarto de Pavão da Noite e foi ensinado pelo próprio a atuar, cantar, dançar e amar.

Ele tornou-se um sucesso sob a tutela do dan, e o caminho natural seria que ascendesse à Ópera, assim como seu mestre. Mesmo em vias de encerrar sua carreira, Pavão da Noite ainda era muito influente e o ajudaria a buscar seu espaço entre as estrelas do momento. Ocorria que, fora dos limites da Yutao, Yuan não mais estaria sob as asas dele, e o mundo dos grandes teatros era reconhecidamente hostil. A competição desleal entre os atores contava com o financiamento dos seus poderosos amantes, que não se importavam em gastar fortunas para garantir-lhes o melhor papel, as melhores fantasias...Eventualmente, Yuan teria que encontrar um mecenas mais rico do que o seu professor para não comer poeira, assim como o próprio Pavão da Noite fizera em sua juventude.

Yuan não queria. Sua ambição não era maior que o amor que sentia por seu mestre e seu lar. Ele acreditava em yuanfen — não era simples coincidência ou momento passageiro sua estadia na Yutao. Reconhecia a ligação poderosa entre si próprio e Pavão da Noite, intuía que estavam destinados a ficarem juntos.

O amor é mesmo uma coisa emburrecedora, não é? O que dizer, então, do primeiro amor?

É uma sorte que seja assim, porque, apaixonado, Yuan fez a melhor escolha. Ele vive muito bem aqui, ocupa uma posição de importância logo abaixo de Pavão da Noite e é respeitado por todos. Possui uma boa cama onde dormir e faz refeições regulares, além de ter alcançado a realização em sua própria profissão. Ele não é um xianggong, mas sim um dan— um dan que recusou-se a subir em palcos célebres por amor.

Em nosso reencontro, eu não enxerguei tudo isso, porém, pude notar que ele tinha aprendido alguma coisa ou outra sobre etiqueta e seu jeito de falar parecia mais requintado. O entusiasmo com que narrava suas aventuras na casa era palpável. Yuan queria ficar e, outra vez, eu não podia fazer nada.

Tive que aceitar.

Yuan implorou que eu não tivesse vergonha do que ele havia se tornado, que eu não me afastasse dele...como se eu pudesse! Pactuamos que continuaríamos a nos ver, mas as circunstâncias, desta vez, eram um tanto mais complicadas.

Eis que Yuan conversou com Pavão da Noite sobre nossa situação. Concordaram que os outros cavalheiros não deveriam saber que o já tão favorecido Lebre da Lua tinha até direito à família, e negociaram minhas visitas com a condição de que nunca revelássemos nosso parentesco a ninguém. Assim, todos na Yutao pensam que temos uma espécie de amizade com benefícios. O quarto vermelho é uma mão na roda para manter as aparências.

Hoje, depois de tantas vindas a este lugar, consigo aceitar tudo com mais tranquilidade. Vejo que, na condição de artista mais popular do bairro, Yuan poderia tornar-se ocioso como uma tai-tai², sustentado por um dos vários ricaços que o assediam. Mas ele crê fortemente em yuanfen. Ele sabe que não veio parar na Yutao por acaso; ama Pavão da Noite e é por ele protegido. Encontrou sua felicidade torta aqui e jamais abandonará esta casa pela Ópera ou um mecenas, tampouco por mim.

Aliás, o endereço que está na minha ficha é o do casebre da Senhora Cinza. Hoje, ele está desabitado. O primo teve problemas com a polícia e foi obrigado a deixar a cidade. Sei que deveria ter atualizado minhas referências; nos pouparia dessa confusão toda ter deixado o contato de um amigo meu em Huqiu...

Bem, agora que você já sabe de tudo, pode parar de me atacar? Eu juro que nunca vim até aqui com o objetivo de caçar homens, ou qualquer coisa do tipo...estes cavalheiros é que nunca me deixam em paz!

Ei, não me olhe assim, estou sendo honesto.

.

Shion sentia-se entontecido.

— Irmãos?

— Sim. Está mais tranquilo, agora? - Dohko suspirou, cansado.

— Acho que sim. - fez uma pausa reflexiva. - Achei que viesse à China para festividades religiosas. Seus comentários sobre sua terra natal se resumiam a templos e pagodes...

— Você não se enganou. Tem esse detalhe, também. Sempre que estou pelas redondezas, gosto de fazer uma visita ao templo de Tu-Er-Shen.

— Quem é esse? Yuan o mencionou, se não me engano.

Dohko assumiu um ar encabulado:

— É o deus encarregado de cuidar do amor entre os homens. Em vida, ele cometeu o erro de apaixonar-se pela pessoa errada...se é que você me entende. - Libra sorriu, triste, e Shion apertou os lábios. Sabia perfeitamente como era aquilo. - Acabou sendo condenado a espancamento por espiar seu amado nu. Assim que partiu daqui, os responsáveis pelo submundo consideraram o motivo de seu assassinato injusto, e deram-lhe o status de divindade e a tarefa de guardar as afeições entre os homens.

Foi necessário algum tempo até que o lemuriano digerisse mais aquela informação. Dohko estava tão desesperado por amor, que tinha se apegado a um deus para alcançar seus desejos. Mesmo aliviado com as explicações sobre Yuan, Shion ainda tinha uma dúvida a ser esclarecida.

— Dohko... - fez o lemuriano, em tom de incerteza. Se nunca perguntasse, jamais tiraria aquele espinho de seu coração. - É neste lugar que você reza por amor? Lebre da Lua contou-me que você está apaixonado.


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Notas finais do capítulo

¹ Lushan é o nome da região na China onde ficam os fictícios Cinco Picos Antigos.
² Tai-tai é uma mulher casada que não trabalha.

Tentei segurar a mão do drama. Espero que tenha funcionado. Chega de sofrimento nessa fanfic!

Até o próximo capítulo!