A Quase Raposa e o Cão de Pedra escrita por Koyama Akira, Chisana Rumiko


Capítulo 8
Todos Têm Segredos Guardados No Fundo Da Alma


Notas iniciais do capítulo

Galeraaa, Chisana na área de novo O/
Devido aos meus consecutivos atrasos na postagem dos capítulos (xD), eu fiz um capítulo bem recheado para vocês ♥
Boa leitura!



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Michi

Eu acho que vou enlouquecer, pensava deitada na minha cama enquanto olhava para o teto.

Esses últimos dois dias foram, de longe, os mais difíceis de viver em todos os meus 16 anos de vida. E hoje em especial foi terrível.

Assim que cheguei em casa, logo após ter voltado à forma humana, minha mãe quase teve um ataque cardíaco. Parecia que ela estava sentindo todas as emoções humanas de uma só vez: felicidade em me ver, alívio por eu estar inteira, angústia por me ver suja e ferida, com raiva por eu ter sumido... Enfim, tudo de uma vez.

Claro que depois de uma série de análises, checagens e curativos, ela passou para o bombardeamento de perguntas. “O que aconteceu?”, “Por que só voltou agora?”, “O que fizeram com você?”, “O que comeu no jantar?” e outras coisas do gênero. Eu fiquei desnorteada. Não sabia ao certo se devia falar da minha experiência com os youkais e sobre descobrir que sou uma hanyou, pois não queria que ela reagisse mal ou então surtasse mais ainda. Tudo bem que eu descobri que ela sabe desse “mundo youkai” depois que a escutei falando sozinha — e ainda por cima falando sobre o meu pai — quando eu estava na minha forma hanyou, mas decidi não arriscar.

Acabei contando uma história meia-boca de que fui assaltada e que quase fui esfaqueada, mas na hora de desviar eu acidentalmente caí e bati a cabeça no chão. E então enrolei mais um pouco, dizendo que perdi a memória momentaneamente e que um casal acabou me ajudando, e que só lembrei de tudo quando acordei hoje de manhã, e foi quando eu voltei. De início, ela surtou mais ainda, e disse que ia me levar ao médico “custe o que custar”. Mas o chefe dela não parava de ligar exigindo explicações sobre a falta dela, e acabei a convencendo de que não era necessário me levar ao médico ou me fazer companhia, já que eu me sentia bem e as feridas estavam quase totalmente cicatrizadas, e que eu só precisava descansar.

À contra gosto — e depois de muita insistência — ela concordou em me deixar em casa sob a condição de permanecer em casa. Resumo da ópera: eu estou, basicamente, em prisão domiciliar por três dias para que ela se recupere do susto. Acho que a prisão se aplica à escola também, mas isso eu converso com ela depois.

Se bem que é até melhor para pensar um pouco sobre o que aconteceu, e sobre o Iwako-san estar... morrendo...

Céus, a mulher da casa das hortênsias não estava falando do mesmo Iwako. Existem mais de um no mundo, simplesmente não acredito que seja o mesmo. Para falar a verdade, eu nem sei por que eu estou tão agitada com isso. Afinal, eu nem o conheço direito...

É, mas ele salvou a minha vida. Três vezes; tanto do demônio-sombra quanto do oni no galpão e da velha na feira.

Caraca, eu estou com um débito imenso com o Iwako-san. Mas... o que eu poderia fazer por ele? Afinal de contas, eu não o encontrei em lugar algum hoje mais cedo e... E eu sou apenas uma humana. Ok, hanyou. Mas isso não muda muita coisa, já que eu mal sei me transformar, quem dirá salvar a vida de um youkai completo.

— Mas, se eu soubesse como te salvar... — sussurrei enquanto enterrava o rosto no travesseiro.

— Nossa, você fala sozinha — uma voz masculina ecoou no quarto, fazendo cada pelo do meu corpo se eriçar. — E eu achando que hanyous já eram criaturas esquisitas...

De repente, um barulho de pés batendo no chão com muita força, como se ele estivesse pulando para dentro do meu quarto, fez com que uma série de calafrios percorressem todo o meu corpo, fazendo-me entrar em estado de pânico. Eu permaneci imóvel; por mais que eu quisesse me virar e ver quem era o invasor, o meu corpo não respondia a nenhum comando meu. Pude ouvir um riso abafado, e então o som de passos vindo em minha direção.

E agora, o que eu faço? Chuto-o e saio correndo? Tento me transformar? Finjo de morta?

Enquanto eu ainda pensava no que fazer, o invasor se aproximou o suficiente para sentar na beira da minha cama. Não, aí já é demais. Vou te mostrar a não mexer com Aohono Michi! Quase que num salto, ajoelhei-me na cama e virei em posição de ataque, pronta para fazer o que desse na telha, mas... Digamos que... Ele não parecia ser um sequestrador ou assaltante. Na verdade... Céus, que garoto lindo.

— Oh, então você pode se mexer? Já estava ficando preocupado em te ver imóvel na cama — disse, quase que amavelmente.

Não pude evitar fazer uma rápida análise do meu “visitante”: um garoto em torno de 19 anos com cabelos bem escuros e com olhos de cores diferentes, um era verde meio amarronzado e o outro âmbar. Ele parecia extremamente confortável, e carregava em seus lábios uma leve curva de sorriso. Eu estava sem fala.

— Ora, ora, Hiyato... Acho que você assustou a menina — dizia a voz de uma mulher, que não estava no meu campo de visão. Que voz familiar...

— Não, sei do que está falando, Yue-san, ela me parece muito bem. — O garoto parecia se divertir com alguma piada interna entre os dois, pois ambos abafaram o riso. Isso já está me dando nos nervos... Onde é que está essa tal de Yue?

No mesmo instante que eu olhei para a minha janela — que, por algum motivo, estava aberta — uma mulher num deslumbrante kimono vermelho apareceu sentada, observando a tudo. Seus olhos de íris branca encontraram os meus, e foi como olhar para a própria lua cheia. Ela então deu um sorriso afiado e disse:

— Olá, Aohono Michi-san. Aproveitando bem a sua forma humana?

Eu sabia! Sabia que conhecia essa voz! É a mulher das hortênsias!, comemorava em minha mente. Mas...

— O que está fazendo aqui? — isso soou mais ríspido do que eu queria.

As sobrancelhas da mulher de kimono levantaram momentaneamente, mas logo voltaram ao estado inicial.

— Então é assim que você agradece a pessoa que te ajudou? Que cruel — disse o garoto sentado na minha cama com naturalidade.

— N-não, eu...

— Quero dizer, se você a trata assim depois de uma ajuda, imagina só como trata os seus inimigos! — ele continuou. — Realmente, uma garota perigosa...

— E-espera, o que... — Eu podia sentir a minha língua travar no céu da boca a cada palavra que eu tentava dizer. Sinceramente, o que tem de errado comigo?

— Hiyato. — A mulher sentada na janela, mesmo que ainda parecesse confortável, adquiriu um ar mais sério. — Pare de importunar a garota, nós estamos aqui a trabalho.

Estão... a trabalho?

O garoto fez uma cara emburrada para a mulher, depois olhou para mim e deu uma rápida piscadela. Ele era, de fato, um menino bem... atrevido... eu acho.

— Acho que começamos com o pé errado, então irei apresentar-me devidamente. — A mulher desceu da janela e seguiu em direção à cadeira da minha escrivaninha, que ficava em frente à minha cama. Assim que se sentou, prosseguiu a apresentação. — Meu nome é Yue, e esse é o...

— Hiyato. — O garoto a interrompeu, fazendo a Yue arquear as sobrancelhas em desdém. — É um prazer te conhecer. — Ele estendeu a mão para me cumprimentar, e eu aceitei. A sua mão era consideravelmente maior que a minha, mesmo que não aparentasse ser muito alto. Ele tinha um aperto firme e caloroso, e, por algum motivo, era muito confortável.

Mas eu não vou ceder tão fácil, eles ainda são dois estranhos dentro do meu quarto.

— Então... — prossegui, recolhendo a mão. — O que fazem aqui?

Hiyato pareceu animado para continuar, mas recuou assim que viu o olhar repreendedor da Yue.

— Ambos somos... informantes, por assim dizer.

— Informantes? De quem?

Yue sorriu para mim — como sempre, não me pareceu um sorriso muito amigável — e apoiou a cabeça na mão cujo cotovelo se sustentava na minha escrivaninha.

— De quem estiver disposto a pagar o preço, é claro.

Ela não estava sendo muito específica, e aquilo me deixava nervosa. Sempre tenho a impressão de que ela está escondendo alguma coisa de mim.

— Bem, a informação que eu queria era apenas a de como me tornar humana de novo, então creio que...

— Ora, vamos com calma, Aohono-san — ela me interrompeu. — Acho que me entendeu errado. Não estamos aqui para te vender informação, mas sim para comprar.

Comprar? Mas... eu não sabia nem como voltar a ser humana. O que eles realmente querem de mim?

— Olha, eu não sei o que querem e o fato de vocês terem praticamente invadido o meu quarto me incomoda muito. — Com muita cautela, ajeitei-me e sentei em cima dos meus calcanhares, com as pernas dobradas. — Agradeceria se vocês tivessem a consideração de saírem, por favor. Já tive o suficiente para dois dias.

Ambos se entreolharam e, desta vez, Hiyato foi o que assumiu o comando.

— Então, Aohono...? — Ele gesticulou para que eu completasse.

— Michi.

— Aohono Michi-san — falou num tom mais polido que antes —, acho que você não está entendendo as coisas muito bem.

— E nem faço questão de entender — respondi suavemente.

Hiyato levou alguns segundos para processar o que eu tinha acabado de falar — provavelmente não estava me levando muito a sério —, mas assim que entendeu, arregalou os olhos. Esse foi o meu sinal verde para continuar.

— Talvez vocês, criaturas mágicas, não entendam a gravidade do que eu vou falar, mas tentarei mesmo assim. — Sim, eu estava sendo mais ríspida do que desejava, e não, essa não era a minha intensão. Eu sabia que ia me sentir culpada depois, mas eu precisava muito colocar tudo para fora. — Em dois dias, eu descobri que demônios existem, que eu sou apenas meio humana, que o cara que salvou a minha vida três vezes está morrendo e que o meu suposto pai morto está, na verdade, vivo.

Assim que eu citei “o cara que me salvou”, Yue se interessou mais pela conversa.

— Então a história do Iwako é verdadeira? Hm, interessante... — Yue-san se encostou na cadeira e passou o indicador direito no lábio inferior.

— Que história? — Não pude me impedir a tempo de me envolver na conversa da Yue-san.

Ela me olhou presunçosa e arqueou uma das sobrancelhas.

— Ah, quer saber? Pensei que era demais para apenas dois dias... — Ela passou a encarar as unhas com satisfação, o que fez o Hiyato cair na risada. Eu apenas a encarei com o meu melhor olhar de desgosto e isso a fez entender que era melhor não forçar a barra por enquanto. — Iwako contou o que aconteceu na Feira de Shokuhin.

— A feira de youkais?

Ela assentiu.

— E, principalmente, sobre a intrigante consulta da cartomante.

— Ah, sim. Aquela senhora que viu uma luz estranha na minha alma. — Revirei os olhos. Enquanto isso, Yue quase faiscava na cadeira. — Não me diga que é isso o que quer saber — disse meio surpresa.

— Na verdade, você acertou em cheio. — Até mesmo o Hiyato tinha tomado uma postura mais séria. Aquilo estava me assustando.

— Sim... e o que é que tem?

— Bem, nós temos motivos para acreditar que... — Hiyato ia continuar, mas se interrompeu ao olhar para a expressão perplexa da Yue, como se ela tivesse levado um choque. — Yue?

— O Iwako... Aquele idiota! — esbravejou, fazendo com que tanto eu quanto o Hiyato recuasse alguns centímetros.

Num pulo, Yue pôs-se de pé e marchou em direção à minha janela. Chegando até a beirada, ela virou-se para o Hiyato e quase o fuzilou com o olhar. No mesmo segundo, ele se levantou da cama.

— Y-Yue-san... O que o Iwako-kun fez dessa vez? — Dava para perceber que o Hiyato estava levemente coagido. Apenas de leve.

— O bastardo tirou o meu feitiço! — Ela massageava as têmporas. — Se a intenção era se matar de vez, então que ele ao menos não gastasse o meu tempo. — Yue continuou resmungando enquanto subia na bancada da janela.

— Espera aí, Yue-san! — Em menos de um segundo, saí da minha cama e corri direto para onde ela estava e a impedi de pular a minha janela agarrando na manga do seu kimono. Yue-san me olhou de canto de olho de uma forma ameaçadora que quase me fez recuar. — O que aconteceu com o Iwako-san...? — A minha voz quase não saia, só não sei se era por medo pelo Iwako-san ou pela mulher cujos olhos eram mais afiados que uma agulha.

— Ah, agora o nosso mundinho de criaturas mágicas importa para você?

Yue-san deu um discreto puxão no kimono, fazendo-o pular da minha mão. Eu não resisti. Na verdade, eu sequer consegui abrir a minha boca para falar alguma coisa.

— Escuta aqui, humana — ela fez questão de não me chamar de hanyou, de excluir a minha parte mais próxima do que eles eram. — A última coisa que eu preciso agora é de uma pirralha no meu pé — ela falou mais para si mesma do que para os outros presentes, já que foi apenas um resmungo baixo.

Agora eu entendi o que é que ela estava escondendo por trás de seus sorrisos perigosos: o seu leve desgosto por mim.

— Yue-san! — Hiyato interveio, repreendendo-a.

— Hiyato, o que ainda está fazendo aí? — Yue aparentava estar mais nervosa do que eu imaginava que fosse possível.

— Estou esperando você se desculpar com a Aohono-san. — Ele olhou para mim com certa ternura, o que foi bem embaraçoso, e depois voltou a encarar a Yue-san com censura. — Viemos aqui comprar informações da Aohono-san, e creio que...

— Ah, poupe-me! — ela o cortou com impaciência. — Se quer continuar aqui para ficar cantando essa humana, eu não farei nada para te impedir. — E lá vamos nós com o “humana” de novo. Estou começando a achar que esse é o pior xingamento para um youkai. Não, espera aí, me cantando?! — Mas tenha a decência de perceber que a condição para que o meu feitiço fosse desfeito era a transformação do Iwako.

Hiyato imediatamente deixou de olhá-la com censura para entrar em um estado meio perplexo. Yue-san aproveitou essa oportunidade para continuar.

— Se o feitiço foi desfeito, é porque ele se transformou. E, se ele se transformou, mesmo sabendo de sua condição, é porque...

— ...Ele estava extremamente fodido — completou Hiyato. — Ele deve ter arrumado alguma briga, aquele cabeça-quente.

Eu não consegui acompanhar muito bem a conversa, mas pude entender perfeitamente bem que o Iwako-san precisava de ajuda.

— Finalmente entendeu? — Yue-san ainda parecia impaciente, como se tivesse que explicar para uma criança como se faz 2 + 2.

— Temos que ir logo, antes que...

— Eu também vou — bastou eu terminar de falar que ambos olharam para mim com surpresa, embora eu ache que a Yue-san me olhou com certo desgosto também.

— Era só o que me faltava, uma garotinha que não sabe nem controlar os próprios poderes de hanyou querendo comprar briga com youkais de verdade — desdenhou Yue.

Hiyato já ia tomar fôlego para se posicionar contra a Yue-san, mas eu o interrompi. Por mais gentil que fosse da parte dele, eu não podia o deixar tomar a frente sempre.

— Mesmo que eu só sirva como um saco de pancadas, como uma isca ou até mesmo como uma mera pedrinha no caminho desses youkais, se for o suficiente para salvar o Iwako-san... eu farei — disse, aparentando estar mais convicta do que eu realmente estava.

Devo dizer, foi gratificante ver a feição de espanto da Yue-san. Mas logo essa felicidade se foi quando ela sorriu, de orelha a orelha, como o próprio Gato Risonho.

— Se está tão confiante assim do que diz, então, por favor, tome a frente. — Ela deu um passo para o lado, deixando o caminho até a janela livre.

Eu olhei para ela, depois para o Hiyato, tentando entender o que é que eles queriam que eu fizesse.

— Transforme-se. — O Hiyato parecia ter lido a minha mente. — Mesmo que você queira ser apenas um saco de pancadas, acho melhor fazê-lo na forma de hanyou.

— M-mas, eu... — E aí toda a minha coragem foi-se embora. Bela hora para precisar desses malditos poderes!

Yue suspirou e andou até mim, chegando perto o suficiente para tocar-me. O seu avanço me fez querer instintivamente recuar, mas eu não ia fraquejar na frente dela de novo. Ela me olhou de cima abaixo e por fim me deu um belo de um peteleco na testa.

— Ai! — resmunguei, passando a mão em cima do lugar atingido. — Por que fez isso?

— Para fazer-te lembrar de como se transforma.

Ah, sim... ela deve estar falando de hoje mais cedo, quando fingiu estar me transformando.

— Prefiro a sua mentira do que o seu peteleco — resmunguei.

Ela — finalmente — deu um discreto sorriso de canto, mas logo voltou à feição de gelo e se posicionou ao lado da janela. Eu andei até ela e olhei pela janela. Apesar de ser pequena e estreita, a casa possuía dois andares, sendo que o segundo era apenas para os quartos. Quando eu olhei pelo vidro, pude ver apenas a pequena faixa de grama do jardim e a nossa árvore de bordo, uma kaede,, que não estava próxima o suficiente da janela para que eu pudesse usá-la de escada.

— Vem cá... Como é que vocês subiram aqui? — perguntei meio temerosa pela resposta.

Hiyato bufou e se aproximou.

— Não é como se nós, youkais, precisássemos de escada. Você logo verá, assim que sair dessa forma humana. — Ele parecia ansioso por alguma coisa.

— Ah, sim, me transformar... — Merda, como raios eu digo que não sei como me transformar? — Virar humana era fácil, já que é uma sensação conhecida para mim. Agora, a sensação de ser uma hanyou...

Yue arfou mais uma vez. Eu simplesmente não entendia por que ela mudou a sua postura comigo, já que eu não fiz nada de errado. Ou, pelo menos, é o que eu acho.

Percebendo o clima ruim, Hiyato veio até mim e colocou a mão nas minhas costas de forma muito... íntima. Aquilo me fez ter um arrepio, mas não de medo.

— Se você precisasse muito, acha que conseguiria se transformar? — A sua voz era de um timbre levemente grave e muito reconfortante. Somado àqueles olhos intensos, eu estava sem palavras.

Sai daí, Michi, esse cara é problema na certa!

— Bom.. eu... acho... — Tentei procurar a minha voz, mas eu estava nervosa demais para isso. Fala sério, Michi, você tem doze anosou o quê? — Eu acho que sim...

— Ah, que ótimo — foi apenas o que ele disse.

E então ele me empurrou.

Quando eu senti o empurrão nas minhas costas, eu não pude acreditar, mas aí um vento forte soprava no meu rosto e eu entendi que estava caindo. Aquele filho da mãe! Ele me empurrou mesmo!, pensava enquanto xingava o garoto com olhos engraçados. Mas eu não podia me focar nisso, eu precisava me transformar.

Por favor, Michi, se lembre da sensação de ser uma hanyou de novo...

Lembre-se da energia...

Lembre-se do ardor na sua pele...

Lembre-se de alguma coisa...

Lembre-se... lembre-se!

Foi então que eu senti uma mão agarrar a minha e um forte puxão na minha cintura, forte o suficiente para prender-me a quem quer que tivesse me puxado e amortecesse a queda no final.

— Viu? Eu sabia que conseguiria. — A voz do Hiyato parecia mais suave do que antes. — Só precisava de um empurrãozinho.

Notei que estava com os olhos fechados e os abri, primeiro focando no mundo à minha volta e depois para o garoto que ainda me segurava intensamente. Senti a pele nas minhas bochechas queimarem e no mesmo segundo eu o afastei de mim na distância de um braço. Isso apenas o fez sorrir maliciosamente.

— Quem diria que você tem um gosto tão... exótico. — Yue, como num passe de mágica, já estava lá embaixo encostada na árvore e observando a tudo, o que me fez ficar mais constrangida ainda.

Hiyato a encarou e sorriu, como um menino que acaba de descobrir um jogo novo.

— Bem, eu não vou esperar o açúcar de vocês acabar. Se não se importam, eu vou...

— ...Ir atrás do cara que você tanto odeia? — disse o Hiyato, num tom bastante sarcástico.

Yue o encarou com desdém.

— Ir atrás de um cliente que solicitou um feitiço meu — ela respondeu, seca.

— Sabe, eu não entendo vocês dois... — Hiyato finalmente deixou o meu lado e partiu em direção ao portão de entrada. — Brigam tanto um com o outro, mas, quando o Iwako ficou...

— Não, não me diga que você pensou nisso. — Yue deu uma risada contida, e logo pôs-se a andar atrás dele. — Eu tenho os meus motivos para não ser íntima do Iwako-san, mas também não o quero morto — respondeu diretamente. — Não ainda.

Eu realmente não conseguia acompanhar a conversa dos dois. Não entendi qual a relação que eles tem entre si e com o Iwako-san, mas isso não importava agora. Eu já estou aqui e vou terminar o que comecei.

Quando dei o primeiro passo em direção ao portão, senti um leve choque atravessar a minha perna. Aquilo me fez tomar um susto e, assim que me analisei, percebi que estava diferente. Que estava transformada.

Então eu consegui mesmo..., pensei meio incrédula.

— Você vem, ruivinha? — gritou Hiyato.

— S-sim!

E então corri para o lado de fora da casa.

— Sabe, eu pensei que vocês tinham uma forma de se locomover mais rápida do que simplesmente ir correndo — disse enquanto virava mais uma esquina atrás da Yue e do Hiyato.

— Sinto muito por não ter um Batmóvel — retrucou o garoto.

Sem querer, deixei escapar uma risada meio abafada, devido às lufadas de ar que eu colocava para dentro enquanto corria. Hiyato percebeu e sorriu de volta para mim.

— Ah, acredite, eu também queria poder ter uma forma de me locomover mais rápida do que essas pernas — respondeu Yue.

Ela parecia bem mais calma, agora que estava concentrada em identificar onde estava o Iwako-san através de um feitiço de busca, ou algo do tipo. Talvez eu me arrependa muito por quebrar a “trégua” atual, mas eu tinha que checar uma coisa...

— Yue-san, tem algo de errado comigo?

A pergunta caiu como uma bomba, tanto para a Yue quanto para o Hiyato, que arregalou os olhos como se quisesse dizer “O que está fazendo?”.

— O que exatamente você quer dizer? — Yue estava sendo bem cautelosa na sua fala, ou apenas estava focada demais na sua procura.

— Mais cedo, quando me ajudou a me transformar em humana, você não parecia ter problemas em lidar comigo ou... o que quer que seja. — Fiz uma pausa para analisar a sua reação, mas ela permaneceu exatamente inalterada. Continuei: — Mas agora, no meu quarto, o fato de eu ser uma hanyou parecia te incomodar muito, então eu...

— Não é o que está pensando — ela respondeu antes que eu terminasse.

— Então, o que é? — Tentei ser o menos acuadora possível, e acho que consegui.

Yue permaneceu em silêncio por alguns segundos, até que suspirou e fez uma brusca curva para a esquerda.

— Eu te achava engraçada, já que você me lembrava muito uma pessoa que eu conheci. — A sua voz estava bem mais baixa, e como a sua respiração era intensa, eu quase não conseguia escutá-la. — Mas, depois que eu descobri o que você era, eu fiquei meio... irritada...

— Depois que descobriu que eu era uma hanyou? Mas você já sabia desde...

— Não, não apenas uma hanyou. — Ela me cortou, voltando a ficar levemente mais tensa. — Uma kitsune.

Oh... Aquilo fazia menos sentido ainda para mim. Talvez ela tenha tido problemas com outros youkais kitsune no passado...

— Mas eu realmente não quero falar disso — ela concluiu. — Só esqueça o que aconteceu, e ficaremos bem.

Eu não sabia exatamente como reagir a isso. Yue-san não parecia ser o tipo de pessoa que conversa fácil sobre os seus sentimentos ou o seu passado, então decidi não me arriscar mais ainda nesse terreno desconhecido. Hiyato deve ter percebido que eu ainda estava pensando sobre a Yue-san, e por isso veio puxar assunto.

— Muito conveniente poder atravessar as pessoas quando quer, não é?

Eu o encarei e ele, sorridente, atravessou uma senhora que estava no seu caminho. A cena foi um tanto estranha, e eu não pude deixar de sorrir.

— Mas bem que seria legal poder interagir com humanos também...

— Você pode, se quiser — ele respondeu, dando de ombros.

Eu o encarei perplexa. Como assim, eu consigo falar com gente normal?!

— E aparecer, e tocar neles também — ele me informou. — Você é bem novata nisso, não é?

— Olha, eu só fui descobrir toda essa loucura há dois dias...

— Hm, entendo. Deve ter sido uma loucura mesmo. — Por acaso ele estava... me consolando? — Cuidado!

Ele me puxou pelo braço, evitando que eu batesse num poste. Eu acabei tropeçando e ele me segurou mais firme com as duas mãos.

— Você está bem? — ele perguntou, me analisando.

— Sim, mas... Por que fez isso?

Ele me olhou confuso e depois deu um sorriso envergonhado.

— Bem, você ia bater no poste...

— Eu não o atravessaria?

Ele me encarou mais um pouquinho e depois caiu no riso.

— Você não sabe mesmo como controlar a sua forma hanyou, não é? — Hiyato parecia estar se divertindo muito. Bom, pelo menos um de nós três está.

— Mas eu consegui atravessar as paredes da minha casa da última vez — justifiquei-me. — Por que eu não conseguiria agora?

— Porque você não está contendo energia o suficiente para isso. Atravessar pessoas é mais simples do que objetos, acredite.

— Mas isso não faz sentido! — Dei um leve tapa na minha testa para ver se meu cérebro funcionava, mas, como o esperado, não adiantou. Eu ainda não entendo o mundo deles. — Se eu estou numa forma espiritual e pessoas possuem espíritos dentro delas, por que é mais fácil atravessar um corpo inanimado do que um corpo com vida?

— Você ainda pensa como uma humana, ruivinha. — De onde ele tirou intimidade para me chamar assim? Se bem que... eu acho que não me importo. — Precisa aprender a ver as coisas de um outro ponto de vista.

— Hm, isso é verdade... Mas é incrível eu ter atravessado as paredes da minha casa sem nem mesmo saber controlar níveis de energia e essas coisas.

— Você é uma garota estranha — ele disse, ainda rindo.

Estava prestes a repreendê-lo — odeio quando me chamam de estranha! —, mas deixei isso de lado assim que o vi sorrir pra mim. Por um momento, ser chamada de estranha não me parecia uma ofensa.

— Ei, casal, dá para andar mais rápido? — gritou a Yue-san já no fim da esquina.

Casal?! — Pude escutar a minha voz dar um falsete.

Hiyato riu e me puxou pelo pulso, forçando-me a correr de novo. Passamos por mais duas ruas daquela forma, e eu me sentia extremamente nervosa. Fiquei pensando se seria muito rude de minha parte simplesmente tirar a minha mão dali, mas se eu deixasse iria parecer que...

— Sabe, eu estava pensando se... — Hiyato se interrompeu assim que a Yue-san parou abruptamente numa rua bem larga e cheia de cerejeiras.

— Ah, não...

Assim que eu olhei na direção que ela estava olhando, senti o corpo gelar. Iwako-san estava de joelhos, no meio da rua, com as roupas completamente surradas e com uma aparência bem ruim. Parecia que ele tinha apanhado até desmaiar.

— Iwako-san! — gritei e saí correndo para onde ele estava, me libertando da mão do Hiyato. Foi só eu terminar de gritar que ele caiu no chão, desmaiado.

Ajoelhei-me ao seu lado e vi que ele parecia bem mal, mais pálido do que eu me lembrava — a não ser por ocasionais áreas mais avermelhadas e machucadas. Não sabia se devia tocá-lo, já que se ele estivesse com algum dano interno, movê-lo de qualquer forma não seria uma boa opção. Justo quando o Hiyato e a Yue-san se aproximaram, o corpo do Iwako-san começou a convulsionar e ele começou a cuspir sangue.

— Ah meu Deus, o que a gente faz?! — Eu estava beirando o pânico enquanto os dois youkais atrás de mim pareciam estar apenas apreensivos.

— Hiyato, leve-o para o templo — ordenou a Yue-san.

Ela se virou e caminhou a passos largos até uma escadaria bem comprida, que dava para um templo velho e acabado. Num piscar de olhos, Yue-san saltou toda a escadaria, de uma só vez. Ela era apenas um borrão preto e vermelho a uma velocidade incrível, e mesmo desfocada, ela parecia extremamente graciosa. Agora eu sei como eles chegaram até a janela do meu quarto.

— Afaste-se — rosnou o Hiyato, sem 1% da polidez de antes.

Decidi que não era uma boa ideia ficar no caminho desses dois, então coloquei-me de pé no mesmo instante e dei alguns passos para trás. Hiyato então tomou o meu lugar e, cuidadosamente, colocou Iwako nas suas costas.

Ele não vai conseguir, pensei. Iwako-san é um cara consideravelmente grande, não tem como ele...

Antes que eu pudesse concluir o pensamento, a pele do Hiyato começou a ganhar uma cor estranha, e seu corpo parecia levemente disforme. O ar envolta dele pareceu ficar mais denso, até que finalmente uma fumaça bem encorpada surgiu, e em menos de um segundo, um... um... Bem, eu não sabia dizer bem o que era aquilo. Parecia um tigre cinza, com as patas e as barrigas de cor branca, extremamente peludo e com duas caudas compridas. E o mais surpreendente: ele era quase que do tamanho de um cavalo.

Ok, nessa forma fica bem fácil carregá-lo. Acho que ele conseguia levar mais uns quatro Iwakos com ele, por sinal. Assim que terminou a sua transformação, Hiyato não pensou duas vezes para avançar até a escadaria, mas, diferente da Yue, ele não pulou ela de uma vez, para não derrubar o Iwako-san das suas costas.

E eu, como uma reles hanyou, tive que me contentar a subir a escada do jeito tradicional mesmo. Se bem que, da última vez que eu estive nessa forma, eu lembro de conseguir correr bem mais rápido do que o normal... Será que o mesmo acontece se eu tentar pular? Meio indecisa, eu tentei dar o pulo mais alto que podia, e alcancei impressionantes cinco degraus. Bem, não foi como a Yue-san, mas dá para o gasto.

Dando meus pequenos pulinhos, cheguei ao topo em menos de três minutos, o que já foi muito surpreendente. Olhei em volta para tentar encontrar o Iwako-san e os outros, mas eles pareciam estar já dentro do templo. Corri pelo gramado ligeiramente mal cuidado e adentrei no templo velho, que precisava urgente trocar a madeira.

Lá dentro estava o Iwako-san deitado no chão, em cima de um desenho estranho de forma meio circular com algumas escrituras em volta, tudo em tinta preta — se é que aquilo era tinta. Em cima do seu peito, onde ficava a cicatriz esquisita, estava um amontoado de flores de ameixa, como se o estivessem preparando para o velório.

Hiyato estava sentado ao seu lado, e, mesmo na sua forma felina, percebia-se a apreensão em seu rosto.

Só falta a Yue-san...

Como um vulto, percebi que a Yue-san estava no fundo da sala, recitando alguma coisa inaudível de onde eu estava. O seu kimono não era mais vermelho, e sim de um preto tão escuro quanto o seu próprio cabelo. A única coisa perceptível era a sua pele branca, que contrastava com todo o resto.

Desprenda-se de tuas pétalas e obedeça ao meu chamado! — Foi a última e única frase da Yue-san que eu consegui entender.

Assim que ela terminou de recitar, uma baita de uma ventania se formou de onde estavam as flores de ameixa, que se desintegravam em uma fumaça roxa e púrpura, que logo infestou o local. O vento estava ficando tão forte que eu mal consegui me manter em pé sem me segurar no arco da porta. Das paredes, uma sombra meio translúcida e irregular se desprendia de todos os cantos e envolvia o pequeno redemoinho, como se tentasse contê-lo. Pelo padrão de movimento das sombras e da Yue-san, deduzi que era ela quem as estava controlando. A sua feição e postura rígida demonstravam a dificuldade que a Yue-san estava tendo para conter a fumaça arroxeada e a ventania.

Poder...! — ela gritava. — Eu preciso... de mais... poder!

No mesmo instante, Hiyato pôs-se ao seu lado e deu um belo rugido, daqueles que fazem os seus piores inimigos quererem te pagar um sorvete. Não sei como, mas o Hiyato manteve a intensidade do rugido até que a Yue-san, com muito esforço, fizesse com que as sombras finalmente envolvessem o redemoinho e toda a fumaça das flores de ameixas, condensando-os e aprisionando-os dentro do peito do Iwako-san.

Eu olhei ansiosa para o Iwako-san, esperando ter algum resultado imediato visível, mas ele apenas soltou um gemido e deixou a cabeça tombar para o lado. Não era muita coisa, mas eu sabia que ele estava bem.

— Graças aos deuses, acabou — suspirou a Yue, encostando-se na parede e fechando os olhos para respirar um pouco.

Hiyato simplesmente se esparramou no chão e soltou um grunhido de exaustão. Parecia que a energia dos dois tinha sido drenada, pois nenhum dos dois parecia se aguentar em pé.

— Então, Aohono Michi... — murmurou a Yue-san, desencostando-se da parede e andando em minha direção. — Parece que seremos só nós duas.

Cada passo dela era dado com muita cautela, e por alguns instantes ela me lembrou uma pantera, andando em direção à sua presa. Dei um passo para trás, mas acabei esbarrando-me na parede.

— C-como assim?

Ela chegou perto o suficiente para apoiar a mão direita na parede atrás de mim, bem ao lado do meu rosto, e encarar-me diretamente nos olhos. Eu pensei que minha vida ia acabar ali mesmo.

— Eu ainda tenho algumas perguntas para fazer a você...

Eu engoli em seco. Bem, se ela quer me fazer perguntas, pelo menos isso significa que eu terei de continuar viva para respondê-las... Eu acho.


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Notas finais do capítulo

(Hehehe, tenho que dizer, eu gostei muito desse capítulo)
Bem, galerinha, espero que tenham gostado tanto quanto eu xD
No meu próximo capítulo, darei uma caprichada para os românticos de plantão ;3
Beijinhos, e até a próxima! O/

— Chisana Rumiko



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