O Caminho da Expressão escrita por GMarques


Capítulo 4
Sangue Fresco.




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Pela rua eu vou com um único destino, para um único propósito. Aliás, este é o bordão de Konets, é isso que está gravado para todo o sempre na bandeira vermelha cor de sangue com o brasão das armas de Konets:

Com um único destino, para um único propósito.

Qual será o propósito de Konets? Transformar a vida de todos num inferno onde não se pode dizer uma simples palavra? Ou será que o propósito Konetista é realmente nos deixar na linha do "destino"? Será que algum dia alguém vai saber o real significado desta frase sem sentido?

A rua está, como sempre, sem sentido, igual ao bordão desta nação. Pessoas saindo do trabalho, para lá e para cá. Contrários gritando por liberdade, e num simples ato de soltar uma palavra sangue fresco jorra pelo chão.

A escola, ou melhor, Centro Educacional, está como sempre foi. A fachada não passa de um amontoado de janelas de metal e uma tinta na cor cinza intenso, mas, quem prova que é mesmo tinta? No alto está um letreiro velho no qual pode-se ler Centro Educacional. O L está prestes a cair.

Lucas e Helena estão me esperando na entrada como sempre. Eles estão falando de algo meio tolo, de um sorriso.

—Eu não estou brincando, Lucas, eu vi! Ela realmente sorriu! —Helena parece animada.

—Quem sorriu? —Me aproximo e pergunto.

—Uma mulher que a Helena jura ter visto rir no meio da rua. —Lucas parece zombar da história de Helena, um sorriso não é proibido, mas é raro.

—É verdade! —Helena rebate.

—Tanta coisa para se falar e vocês falam de sorrisos. Sorrir em via pública não é proibido não.

—Ainda. —E ela continua —Ainda não é proibido...

—Se eu pudesse eu mudava todo o passado. —Lucas comenta —Acabaria com as guerras e tudo mais! —Se eu pudesse também o faria.

—Cala a boca Lucas, aí vem GVDs! —Eu o advirto. Não é a primeira vez que evito que Lucas seja levado para longe pelos GVDs. Ele é um bom amigo, ele era meu vizinho quando meus pais foram mortos e me apoiou, de certo modo, a enfrentar o que acontecera.

—E mais uma vez Marcos salva o dia avisando o Lucas! —Helena ri.

—Vocês dois devem ser mais cautelosos! —Falo.

—E você tem que ter mais senso de humor. —Ela ri novamente.

Já estamos dentro do pátio interno principal do prédio, chegamos em cima da hora. Todos os dias somos obrigados a levantar a mão direita e recitar o juramento à bandeira:

Eu Marcos, juro perante a esta bandeira

obediência, ordem e paz.

E jamais desrespeitar as leis e a verdade

que esta formosa bandeira trás em si mesma.

Ao sistema! À paz! E à liberdade!

Konetistas adoram coisas sem sentidos... Ou pelo menos os líderes. Digo no plural porque nunca ninguém apareceu em nenhuma transmissão televisiva, de rádio ou pessoalmente para o público dizendo ser o presidente, rei, governador, ou seja lá o que deste país. A verdade é que nós somos administrados por pessoas que não conhecemos mas que conhecem detalhes sobre nós ao apertar de um botão.

Logo somos guiados a uma enorme sala, onde antes de entrar todos são, um a um, revistados. As cadeiras são enfileiradas uma atrás da outra e coladas ao chão. Guardas ficam em todos os cantos das paredes azul-mar da sala infinita que se estende de ponta a ponta. Qual o medo deles? Que os ataquemos com um livro?

A professora, um ser que mesmo sendo contra tudo o que está falando para nós deve aturar tudo com punho de ferro. O sistema manda, ela faz. O sistema mandou que ela desse aula deste jeito e ela dá aula deste jeito.

As palavras que saem da boca da professora que se fixa em pé diante de todos me dão ânsia. A professora mostra grande desinteresse no que fala, mas mesmo assim continua falando como se tivesse decorado um texto durante uma noite inteira, ou quem sabe dias... Algo sobre como Konets surgiu das cinzas de um mundo caótico de radiação e lixo, eles fazem questão de nos repetir isso todos os bimestres.

Cada frase, palavra, sílaba ou som que saem de sua boca me provocam um alto nível de desinteresse. Tudo que consigo fazer no momento é congelar meus movimentos e minha mente e repousar num mundo imaginário livre, um mundo que nunca existirá ou, pelo menos, não tão cedo. Qualquer ato de rebelião é inibido como uma vela que se apaga num simples soprar ou uma faísca que some de vista em poucos segundos, delirando-se no ar.

Todos somos numerados. Com um número que se combina a ordem alfabética de nossos nomes. Lucas e Helena ficam sentados muito longe de mim, graças aos nossos nomes com iniciais diferentes.

Tudo está certo, todos olhando atentamente para a professora. Todos com cara de nojo e desprezo para com as palavras que saem da boca da mulher. Todos trajando os seus uniformes azul e vermelho cor de sangue, as cores da bandeira.

Ponho a atenção num garoto que está só há algumas mesas afrente da minha, na fileira ao lado. Ele está um tanto quanto frustrado e às vezes faz cara rude e seca. Começo a pensar. Eu não vi ele na fila de revista. Ele não estaria tão longe de mim. A não ser que ele não tenha passado pela revista antes de entrar... Mas ninguém consegue passar os guardas, é impossível! Há algo errado aqui. Ele está tirando algo, parece uma arma, não sei. Me levanto, preciso gritar, sinto que todos aqui estarão mortos. Quando um guarda se move para vir me conter o garoto se levanta e grita:

—Annullare vincerà!

Junto com suas palavras, junto com o garoto, com a frase quase conhecida por todos. Suas mãos se levantam ao ar, com o objeto que eu havia observado e encarado, mas não reconhecido. Um círculo azul, um objeto esférico? Uma bomba. Não é uma bomba comum, é uma bomba paralítica. Basta apertar um botão e todos ao redor, todos os atingidos, param de se mover. Não reagem, caem ao chão, intactos e com uma única capacidade intacta, a capacidade de sentir dor e medo.

~~~

Ele levanta, junto a sua mão vai ao ar. A bomba não atinge quem a segura, mas é sempre bom mantê-la no ar.

O botão é acionado, e uma nuvem cósmica em forma de um anel azul-brilhante é solta espumando a sua fúria em vapor de gases paralíticos pela sala, sem piedade e sem deixar

nenhum em pé. O anel atravessa os corpos e, sem reação das vítimas, os lança ao chão, sem deixar chances de uma fuga.

Quando eu sou atingido perco o controle do meu corpo, uma corrente gelada passa pelo meu corpo e me derruba no chão, eu não consigo aguentar o meu próprio peso, não posso me levantar. Tudo o que consigo fazer é ver o resto dos que restaram caírem ao chão e sentir o chão estremecer com o bater dos corpos ao chão, sinto um pavor e uma agonia que me consomem.

Quando por fim todos estão no chão sem nenhuma ação, sem ter nenhuma noção do que está acontecendo, o "homem-bomba" sai correndo da sala em prantos, mas também como se estivesse chamando alguém. Ao abrir da porta, posso ver, pois caí virado para este lado, que não só a nossa sala estava caída, mas os guardas do corredor também, todo o Centro Educacional foi atingido ou não teve só um "homem-bomba".

Uma das poucas coisas que me sobrou além do medo, da visão e do tato, foi a capacidade de ouvir, acredite, eu não queria ter ficado com essa capacidade. Meu medo acelera, meu pranto e minha agonia também. Eu tento gritar, mas não posso, é como se eu não tivesse aprendido a falar, eu quero gritar, principalmente agora que homens entraram na sala, mas minha boca está congelada, como se alguém a tivesse costurado. Ouço tiros vindos de outras salas. Eu tento me mexer e sair a correr, mas não há reação, não há nenhuma resposta do meu corpo, não há nada!

Enquanto os meus pensamentos gritam eu faço o máximo de esforço para me mexer, a porta da sala recebeu dez homens, recebeu dez pessoas. Quem sabe treze; não tenho coragem, nem motivos lógicos para contar.

Todos armados, todos com uma cara que era totalmente diferente de todos os contrários que eu já vi na minha vida. Eles estão usando casacos escuros, têm o cabelo raspado em sua maioria e parecem nem ligar para o que estão prestes a fazer: matar. Não ligam para quem vão matar, para que família vão trazer a falta e a tristeza. Não ligam e nunca ligarão.

Um verdadeiro massacre começa, a sangue-frio eles estão sacando as armas e mirando para os corpos paralisados no chão e, sem piedade, sem nenhuma compaixão, puxam o gatilho. Um tiro seguido do outro, uma morte seguida da outra. Uma família acaba de perder um integrante, agora duas, três, seis...

Não há piedade, tudo aqui virou uma enorme poça de sangue fresco, sangue inocente derramado por pessoas que nem sabemos quem são.

Me vejo em apuros, uma arma está apontada para mim. Meu último suspiro? Tudo o que faço é fechar os olhos e pensar na minha irmã. Pensar como eu farei falta para ela e pensar em como ela terá de se virar sozinha. Ainda que eu tente gritar por piedade a minha voz não sai, ela está paralisada como todo o resto do meu corpo. E num piscar de olhos a arma dispara e o som desta ecoa pela sala. O tiro atinge abaixo de meu peito, perto da barriga, e uma enorme dor toma conta de mim.


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