Palavras de Heagle II escrita por Heagle


Capítulo 8
I had to let you go, to the setting sun




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– Há quase uma década desde a nossa última consulta, Marietta. – disse o psicólogo Eduardo, recepcionando-me em seu consultório.

Mantive-me quieta, limitando movimentos bruscos, como por exemplo conversar mais do que suficiente (falar havia se tornado um fardo para mim). Não estava bem de saúde; tivera alta do hospital há uma semana, apenas.

Sentei-me e ajeitei o porta-copos que ficava no braço do sofá. Ritual que repeti por muitos anos.

– Então... a que se deve seu retorno? Não quis falar por telefone...

Eduardo estava disposto falar comigo, mas eu nem tanto. Torci as mãos, revirei-me no sofá, senti um frio estranho na espinha e na barriga. Era difícil lembrar de tudo que ocorrera naqueles últimos três meses. Mas, de longe, foi mais difícil do que... ter... que falar. Novamente. De tudo.

– Sinta-se tranquila. – ele amenizou, olhando-me com aquele maldito olhar clínico. Odiava quando me analisavam. Então, tentando desviar sua atenção, abaixei a cabeça e pigarrei pela primeira vez.

– Ér...

Oh maldito silêncio que me sucumbia por esses tempos! Era hora de falar ou eu explodiria!

– Hugo... – pigarrei novamente levantando meu olhar pela primeira vez. – Está morto.

Era visível o esforço que eu fazia para falar sobre o assunto sem chorar ou pedir uma dose de whisky. Dei uma pausa. A garganta ficou seca no momento que eu teria que falar sobre o fato mais destrutivo da minha vida. O fato que me deixou sem chão por tanto tempo.

– E meu noi... digo... – apressei em corrigir, como se houvesse dito um palavrão. – Meu... ex-noivo... sumiu. Nunca mais o vi. E... eu... estou morrendo.

****

Foi desta forma que retornei ao psicólogo. E foi dessa maldita forma formal e direta que lembrei do pé na bunda que levei no dia do enterro de Hugo. E nem foi fácil também lembrar das trocentas coisas que ocorreram a partir de então.

Mas agora, sendo franca aqui, com vocês: CARALHO! MIL VEZES CARALHO! Como foi difícil cair na real, meu Deus! Demorei três meses para sacar que minha vida estava no buraco e que apenas eu poderia sair dessa. Com ajuda ou não, com depressão ou não, minha vida estava uma merda e não podia continuar assim.

Agora pra situar vocês sobre esse psicólogo Eduardo que surgiu do nada nessa porra de narrativa, vou explicar: acho que todos vocês devem lembrar que passei por bullying quando mais jovem e que tinha complexos como toda nerd adolescente e bla blá blá [insira aqui melancolias de uma mal comida, bjs], medo de morrer, medo do escuro e da puta que pariu, e pá. Certo, frequentei psicólogo por alguns anos e parei o tratamento depois que fiquei famosa. Não dava tempo [e Hugo não concordava porque falava que psicólogos eram pra gente louca. Coitado do defunto que mal sabia que estava certo: eu era louca!].

E bem, lá estava eu, depois de 10 anos, voltando ao meu local de tratamento para inicia-lo novamente. Contra vontade, confesso... mas reconheci que era necessário.

– Me surpreendi quando recebi sua ligação. – confessou Eduardo, cruzando os braços. – Por que quis voltar? Acredito que...

– Não foi por minha vontade. – respondi rispidamente (nessa época, para ajudar, estava na TPM de uma menstruação que pelo 6º mês não vinha, logo, estava um cão de mal humorada). – Me obrigaram. Por tudo que ocorreu.

– E o que ocorreu... depois do fim do noivado? – questionou, anotando algo naquela maldita agenda de psicólogo. Eu odiava isso, sempre fui curiosa, queria saber o que escrevia sobre mim. Podia ser uma receita de bolo (isso provaria minha teoria que psicólogos não ouvem nem 10% do que lamentamos) ou um desenho caricático meu. Sei lá, depende o quanto eu era chata e entediante.

– Por que me pergunta justo do noivado?

– Vejo que é o que mais lhe afeta. Bem mais que a morte de um ente querido.

Aquele morfético acabara de decifrar meus sentimentos em uma frase. Foda-se, agora que ele revelara toda minha intimidade, iria extravasar. Iria xingar até a mãe, bem à modo antiga Marietta (essa que morrera há algum tempo).

– AQUELE FILHO DA PUTA ME LARGOU NO DIA DO ENTERRO! – gritei, levantando-me do sofá em um pulo. Comecei a andar de um lado para o outro berrando e gesticulando gestos agressivos com a mão, conforme eu lembrava dos acontecimentos. Estava no mesmo ataque de histeria e revolta que tive quando fui convidar Matthew para integrar o elenco do filme (que eu fiquei berrando com o espelho e tal). Queria liberar aqueles sentimentos que pesavam minha alma há tanto tempo. Era a hora. – AQUELE PUUUUTOOO, QUE VAI TOMAR NO MEIO DO CUUUUUUUU! – detalhe: ênfase no cu, por favor, eu disse essa palavra com a boca cheia. Foi tanto destaque que Eduardo segurar uma risadinha, mas okay. – EU ESTAVA CONFUSA, MINHA VIDA ESTAVA UM INFERNO! TUDO MUDOU DO NADA! EU ERA UMA PSEUDO-JORNALISTA QUANDO BATERAM EM MINHA PORTA E FALARAM: HEY, VOCÊ É A ESCRITORA MAIS RICA DO MUNDO. COMO ASSIM EU ERA A MAIS RICA NESSA POOOORRRA DE MUNDO!? CARALHO, EU NEM TINHA SAÍDO DIREITO DA ADOLESCENCIA, AFINAL, EU NUNCA SAI DESSA FASE MALDITA! NEM MATURIDADE EU TINHA OU TENHO, SEI LÁ.

– Marietta... – tentou interromper Eduardo, mas lhe ameacei com um chute invisível.

– FICA QUIETO, TO TE PAGANDO PRA VOCÊ ME OUVIR, HOMEM! AGORA OUÇA. OUÇA QUE EU QUASE MORRI, FUI SEQUESTRADA, FUI TORTURADA E TUDO PARA ME ENVOLVER INTENSAMENTE COM UM GOSTOSO PROBLEMÁTICO QUE NA ÉPOCA AINDA COMIA MACONHA MAS PAROU POR MIM. E COOOOOMO AQUELE HOMEM ERA GOSTOSO, MEU DEEEEEEEEEEEEUS, EU CHAMAVA ELE DE OGRO... E EU SEI QUE PAREÇO A MEL FALANDO DISSO, MAS ELE ERA DEMAIS, CACEEEETE! E FOI NISSO QUE ME AFUNDEI NEEEESSSA POOOOOORRRRRRA DE VIDA!

Momento desabafo, quem nunca?

– AGORA MINHA VIDA ACABOU, ACABOU PORQUE ELE ME DESTRUIU, ACABOU COMIGO, ACABOU COM TUDO QUE EU ACREDITAVA! E ISSO FOI CULPA MINHA, DELE, DA VIDA, DO CARALHO, DO DEFUNDO QUE TÁ MOFANDO COM OS VERMES, ATÉ CULPA DO PORRA DO ZACKY QUE JÁ PLANEJAVA COMER NOSSO BOLO DE CASAMENTO. ELE ACABOU COMIGO, VOCÊ ENTENDEU?

– Entendi. – respondeu Eduardo, um pouquinho assustado com a minha crise passageira (não tão passageira assim). Deduzi que ele estava acostumado com aqueles pacientes que davam ataque do nada (soube, bem depois, que eu fui a primeira, mas okay), por isso tive liberdade de falar tudo. Mas, quando ele me pediu para que sentasse e CALMAMENTE (existe essa palavra e seus derivados no meu vocabulário?) e explicasse o sentido de ACABOU. ORAS BOLAS, ACABOU DE ACABOU, SEU BOBO.

– Okay... – assenti, respirando fundo e pensando por onde comer. Tá, já havia demonstrado meu ódio pelo meu ex, nosso histórico conturbado de semi-mortes e etc, agora só faltava falar porque eu estava na porra do consultório berrando feito doida. – Bem... depois que eu e Matthew... confessamos que nos gostávamos e iniciamos um relacionamento, deixamos de ser o que éramos. Ele deixou de ser ele, eu deixei se ser eu, parecia que a partir do namoro nossas personalidades haviam morrido e estávamos em uma coisa falsa, mais falsa do que antes, quando tentávamos nos odiar. E do nada, vi que isso afetou todos a nossa volta. Mel, Syn, Zacky, ninguém era mais o que costumava ser. Nosso namoro mudou a vida de todos, e não era algo bom. Quando soube da morte de Hugo me descontrolei.

– Um regresso à sua adolescência.

– Exato. Senti um medo absurdo de perde-lo, cheguei a pensar que era amor mas... eu só estava com medo de perder algo que ainda me ligava a vida antiga. Tão simples. Era tudo calmo, só eu e Mel, discutindo o quando meu marido era um escroto e o quanto os caras do Avenged eram gostosos. Mas isso mudou. Então... quando Matthew disse algumas coisas para mim no dia do enterro... senti que estava sendo enterrado, também, aquela Marietta que muitos gostavam. Que os leitores gostavam, que a família gostava ou que os outros gostavam. A que falava palavrão, a doida, a que agradava a todos... e do nada, me vi sendo enterrada ali também. E me afundei. Meus pais não colaboraram muito nessa fase, então fugi e me escondi na casa da avó da Mel. Bem, eu falo tanto da Mel e nem sei se você lembra dela, mas é minha melhor amiga e agente. Enfim... sem cortar o raciocínio, porque acho que estou me perdendo... fui para Bauru na casa da vó... e fiquei lá por muito tempo, sem dar noticias para meus pais, para meus amigos, para ninguém. Às vezes nem Mel sabia... cheguei a me trancar no quarto por duas semanas sem comer ou dormir. Nesse tempo, comecei a beber exageradamente. Nunca gostei muito de me embebedar e de fato, nunca fui alcóolatra, mas encontrei nas bebidas uma forma de me matar. E comecei a beber muito, muito mesmo que... um dia entrei em coma alcóolico.

Juro que não me orgulho disso. Entrar em coma alcóolico foi o sinal de que minha vida estava na reta final e que eu me afundava definitivamente no buraco. A depressão – eu pelo menos achava que era – havia tomado conta de mim. Nunca cogitei suicídio direto... mas essa crise de bebedeira foi uma forma alternativa disso se manifestar.

Foi o buraco do buraco.

Lembro bem que quando Mel soube que eu estava acordada, foi toda preocupada me xingar e estapear por eu ter feito essa besteira. Gritava tão alto que eu mal podia entender suas palavras. Só sabia que estava extremamente furiosa comigo.

– QUEM TE DÁ O DIREITO DE TENTAR FAZER ISSO MARIETTA? VOCÊ QUER ME MATAR DO CORAÇÃO, SUA MALDITA? MEU DEUS, SE MATTHEW NÃO PRECISA DE VOCÊ, EU AINDA PRECISO. NUNCA-MAIS-PENSE-EM-ME-DEIXAR!

Eu só lembro desse esporro porque me marcou muito. Ainda havia alguém que precisava de mim e fui extremamente egoísta de pensar nisso. Mel era absolutamente sozinha, como eu, e cabia uma a outra se consolar, se apoiar, se amar de uma forma que ninguém seria capaz de fazer. Mas eu esqueci disso e a magoei. Não foi fácil.

– E deduzo que tenha sido Melissa que chegou e te intimou a me procurar. – interpelou Eduardo, aparentemente assustado com o rumo da vida de sua antiga paciente. Sabendo que antes meu maior problema era superar a insegurança na escola...

– Me intimidou, você quer dizer. – corrigi, fazendo uma fusquinha. – Ele fez com que eu te ligasse do hospital. Pensei, sinceramente, em fugir enquanto eu estava vindo para cá. Mas refleti muito nesse tempo no hospital... e pelo que andou acontecendo. Acredito realmente que... preciso me salvar da depressão.

– Não diria depressão. Diria insegurança e imaturidade... seus antigos problemas, antes mal resolvidos.

– Não sei se seria isso.

– Isso explica seu medo de ficar sozinha, de se apavorar quando perdeu sua única ligação com a sua “fase simples”. A imaturidade de ter quase 26 anos e carregar lembranças e atitudes de alguém de 17. Digo mais: você não lamentou nem a morte do marido nem a perda do noivado. Você lamentou a morte de sua “vida antiga” e de seu “conto de fadas”.

– Você está dizendo que nunca amei Matthew? Eu daria minha vida por...

– Não digo desta forma, Marietta. Perceba: enquanto Matthew era o sonho impossível e fazia parte de um belo romance idealizado por você, estava tudo perfeito. Quando ele passou a se tornar realidade e você precisou lidar com a maturidade de manter esse conto de fadas... ou de até mesmo perceber que ele nunca existiu, porque Matthew estava longe de ser um príncipe... você se desesperou. Perdeu sua personalidade, se tornou outro alguém, não soube lidar com isso. Por isso a revolta com o término: chutaram seu conto de fadas, seu falso conto de fadas e nem permitiram que você mudasse isso.

AAAAAAAAAAAAAH DESGRAÇADO! Odeio frequentar um psicólogo que mais parecia um Sherlock Holmes. Vai tomar no cu, vai ser adivinha na casa do caralho, SEU PUTO. VAI TOMAR NO CU!

– Supondo que você esteja certo, por onde devo começar? Para acabar com tudo isso?

– O primeiro passo é saber que hoje... você está sozinha. E que nem de longe, isso é algo ruim. E o principal... a moral disso tudo que você passou.

Mesmo com medo de perguntar “Qual?”, acabei perguntado. Olhando para o relógio, vendo que nosso horário havia cessado, ele sorriu, concluindo sua sessão:

– Você não tem mais 17 anos. Encontramo-nos amanhã nesse mesmo horário, que acha?

Ainda abobalhada com a torrente de informações que eu havia recebido em apenas 50 minutos de conversa, assenti com a cabeça, despedindo-me.

A última frase ainda ressoava em minha mente, enquanto caminhava sem rumo pelas ruas da cidade. Estava segura de alguma forma; tinha certeza que durante minhas andanças, Henrique me perseguiu. Nunca me abandonaria, tanto pela sua lealdade de segurança quanto pela nossa amizade.

– Eu sei que não tenho mais 17 anos. – retruquei para mim mesma, pegando o celular e os fones de ouvido. Coloquei Untouchable I, do Anathema, porque a música, naqueles tempos, era como calmamente para mim. Foi bom, porque me ajudou a concluir que embora não fosse uma garota de 17, ainda agia como uma.

É negada... acho que o círculo fechou. De alguma forma, precisarei enfrentar Matthew, o desaparecido há meses. Nunca mais tive contato, noticias ou informações a seu respeito. Só sei que reatou publicamente seu casamento com Valary. Vi numa revista.

Acho que até foi bom para ele. Talvez seu conto de fadas não fosse exatamente como o meu. Boa hora de amadurecer, Marietta, e concluir que Matthew nunca foi seu. E, diferente do que chegou a pensar, você realmente o ama. E uma pessoa madura sempre quer o bem de quem se ama.

E se o bem de Matthew era Valary, ok. Primeiro passo. Seja feliz. I had to let you go, to the setting sun.


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